A vida e a obra de Antonio José da Silva, o Judeu, tem atraído o interesse de estudiosos brasileiros. Nascido no Brasil, cresceu e estudou em Portugal, onde conquistou fama como teatrólogo.

Na história da literatura portuguesa, como na brasileira, figura um nome comum - Antônio José da Silva, o Judeu. Este cognome, Judeu, indica tratar-se da mesma pessoa. Antônio José da Silva, terceira geração de família brasileira, nasceu a 8 de maio de 1705 no Rio de Janeiro, onde passou a primeira fase da infância. Em Portugal cresceu, estudou, criou fama de teatrólogo e, em Portugal, sua vida chegou abruptamente a trágico fim. Antônio José, assim como seus dois irmãos mais velhos, André e Baltazar, recebeu as águas batismais na pia da Sé do Rio de Janeiro. Como eles, todos os tios nada conheciam do judaísmo que os avós haviam abjurado em Portugal antes de se trasladarem para o Brasil. Era uma família numerosa, de médicos, advogados, comerciantes, cristãos-novos abastados. Boa presa para os Tribunais do Santo Oficio, que não só procuravam castigar os hereges, como confiscar todos os seus bens. João Mendes da Silva, pai de Antônio José, parecia estar a salvo de qualquer suspeita. Advogado benquisto, praticante devoto da religião que abraçara, porém sua esposa, Lourença Coutinho, não pôde escapar das malhas inquisitórias. Acusavam-na de fazer a limpeza da casa às sextas-feiras, provavelmente para descansar no sábado.

Foi assim que Antônio José, aos oito anos de idade, ouviu dizer pela primeira vez que seus avós, bisavós e ele próprio, eram judeus. E não podia compreender então o crime pelo qual sua família estava sendo punida. De repente fora retirada da esplêndida vivenda em que morava e jogada no porão de um barco apinhado de outros infelizes. A angústia desgarrando-se do seu peito, à proporção que se distanciava do Rio de Janeiro, só foi traduzida anos mais tarde nos versos de uma das suas "óperas": "Tirana ausência / que me roubaste e me levaste / da alma o melhor / Ai de quem sente / de um bem ausente / a ingrata dor".

Chegando a Portugal os três irmãos entraram num lar sem mãe. Só quando Lourença Coutinho saiu penitenciada, a vida da família se normalizou. Jamais, porém, restabeleceu-se a felicidade completa, porque, como escreveu Antônio José, "Na confusão da dor o bem perdido/nunca se encontra/ainda que achado". Aos 21 anos Antônio José fazia o curso de Direito na Universidade de Coimbra. Inteligente, poeta, gozava de popularidade entre os amigos, alguns nobres como o conde de Ericeira, em cuja casa se reunia regularmente um grupo de intelectuais, entre eles Francisco Xavier de Oliveira e o padre Álvares de Aguiar. Numa dessas reuniões, estes dois últimos e Antônio José levaram a ridículo um livro infamante contra os judeus. Dias depois os três pagariam pela imprudência. No dia 8 de agosto de 1726, inesperadamente, compareceram na casa dos Silva os Familiares do Santo Ofício, e deram voz de prisão não somente a Antônio José, mas também a sua mãe, Lourença Coutinho. Ao princípio, ele nem sequer mediu a extensão da pena que o esperava. Quando o conde de Villar Mayor entregou-o ao Alcaide Fernando Cardoso, ainda estava altivo e até riu-se quando lhe vasculharam os bolsos e os encontraram vazios. Ao ser interrogado sobre que religião professava, respondeu que nenhuma e "só ia à igreja por cumprimento do mundo". Fizeram-lhe então saber que o acusavam de judaizante e estava obrigado a denun-ciar "todas as pessoas com quem comunicou as Leis de Moisés, fossem vivas ou mortas, parentes ou não". Estupefato, o réu manteve-se em silêncio. Foi recambiado para a enxovia, com a recomendação de recordar nomes e fatos sem nada omitir. Até mortos...

No próximo interrogatório Antônio José denunciou uma tia já falecida, que lhe havia aconselhado jejuar no "Dia Grande". De acordo com o Santo Ofício, porém, uma só pessoa delatada não era bastante para a absolvição do réu. Interrogado seis vezes, na ansiedade de se libertar o moço denunciava parentes e amigos, sem porém afirmar nada. Dizia apenas que se identificavam por uma senha: "Fazes o jejum do 'Dia Grande'?" Contudo o Tribunal considerou que as suas confissões "tinham faltas e diminuições". "Visto deixar de dizer de sua mãe, Lourença Coutinho... seja o réu posto a tormento". Fizeram-no jurar que guardaria segredo absoluto de tudo que visse, ouvisse ou sentisse. Enquanto durou o castigo e ele repetia que nada mais tinha a confessar, continuou o tormento e só foi retirado da "polé" quando perdeu a fala. E foi registrado que ele gritou muito, chamando sempre por D'us somente. Durante o suplício; implorando misericórdia a seu D'us, diria intimamente Antônio José: "Oh! D'us, se sois justo/Como assim tiranamente /a este mísero inocente/chegas hoje a castigar".

Depois de abjuração, penitência, juramento de jamais recair em heresia, Antônio José foi absolvido. Dominado pelo pavor de que qualquer ato seu irrefletido pudesse agravar a situação de sua mãe, ainda encarcerada, ou arrastá-lo de novo à prisão, ele isolava-se, evitava parentes, fugia dos amigos cristãos-novos, e para que não houvesse dúvidas de que cumpria o que jurara, freqüentava os conventos acobertando-se de suspeitas sob o convívio dos eclesiásticos. Três anos angustiosos passaram até que finalmente Lourença Coutinho foi penitenciada, a 16 de outubro de 1729. Pouco a pouco Antônio José reanimou-se. Nesse mesmo ano escreveu um libreto para uma "ópera" que iria ser representada entre os festejos nupciais do príncipe José. Seu nome entrava em palácio. Nessa época o teatro era a maior atração na corte de D. João V. e só os nobres assistiam as peças trazidas pelas companhias italianas, francesas e espanholas.

Antônio José morava no "Pátio da Comédia" e se contagiou do entusiasmo teatral à sua vizinhança. Decidiu escrever "óperas" não só para uma elite mas para o povo em geral. Estreou-se com "Vida do Grande D. Quixote de La Mancha", plasmando sobre a obra de Cervantes novas situações. Ainda usufruindo as glórias dessa "ópera" estreada em outubro de 1733, justamente quando era apresentada a segunda, "Esopaida ou a Vida de Esopo", Antônio José casou-se com Leonor Maria de Carvalho, sua prima, que já havia sofrido as perseguições do Santo Ofício.

Ao passo que o teatro do Bairro Alto mais atraía espectadores, aqueles freqüentados pela fidalguia se esvaziavam. As outras Companhias viam no "Judeu" um rival temível, ou mesmo invencível. Mas aí estavam os Inquisidores já se movendo para esmagar o irreverente cristão-novo, descobrindo nas "óperas" indiretas mordazes que escaparam aos censores. Era óbvio que Antônio José revelava ao público o segredo que devia ser inviolável: seus próprios tormentos, recitados em vários versos, principalmente na peça "Anfitrião": "Que delito fiz eu para que sinta/o peso desta aspérrima cadeia/nos horrores de um cárcere penoso." Urgia emudecê-lo. Antônio José estava longe de suspeitar que se armava sobre sua cabeça a tempestade; inebriado como vivia com as bonanças da glória. Chegava, com a sua sétima peça, "Variedades de Prometeu", ao pináculo da fama.

Seu nome, o mais popular em Lisboa, era acatado até pelo rei. Ensaiava a oitava "ópera", Precipícios de Faetone", em 1737, quando a sua própria tragédia se anunciou. Começou pelos problemas domésticos. A escrava Leonor Gomes, como vingança, porque contrariada em seus amores, foi ao Tribunal do Santo Ofício "levantar falsos testemunhos a Antônio José e a toda a gente da casa."

A 5 de outubro de 1737 Antônio José e Leonor Maria festejavam o segundo aniversário de sua filha Lourencinha. Por coincidência, nessa mesma data e dia, sábado, caiu o Yom Kipur, chamado então "Dia Grande". Estavam todos os Silva reunidos quando, inesperadamente, estranhos visitantes invadiram a casa e em nome do Santo Ofício deram voz de prisão a Antônio José, Leonor Maria e Lourença Coutinho. Eram vítimas da denúncia de Leonor Gomes. No entanto nessa denúncia a escrava nada assegurou. Só chegava a conclusões baseada em suposições. Nunca pensou ela que iriam detê-la também. Atirada numa cela sem luz, gritava e repetia seu desejo de desmentir tudo o que dissera. Fizeram-na calar. Um dia apareceu morta, misteriosamente.

Entretanto Antônio José encerrado na cela 6a. do corredor meio-novo ignorava a sorte da família. Pensava em Lourencinha, arrancada dos seus braços, e repetia tresloucado: "Em meus gemidos bramo, peno/sinto e choro, vendo, oh! D'us! o que adoro/noutros braços descansar" Nunca lhe disseram que Leonor Maria dentro da prisão dera à luz a um menino, cujo destino jamais se soube. Antônio José estiolava-se na prisão, até que um dia soube-se que o preso da cela número 6 jejuava durante dias seguidos.

Boa notícia para os algozes. Deram ordem para que o espiassem. Durante uma semana os espias viram a mesma coisa: um homem de mediana estatura, feições finas, muito pálido, cabelos castanhos escuros, quase sempre permanecia estendido na cama, ou caminhava em círculos pela cela. Sem falar. sem ler, sem escrever, na solidão, o teatrólogo rememoraria os versos da sua última "ópera", "O Precipício de Faetone": "Ouve D'us os ecos, os clamores / de um mísero infeliz / a quem a sorte / dá na vida o rigor da mesma morte". Ao anoitecer ele fazia esforços para divisar alguma estrela na diminuta réstia do céu que conseguia ver por uma fenda aberta acima da porta. Acendia o candeeiro. E só então, pela primeira vez, fazia uma refeição frugal. Baseados na evidência de que Antônio José não tocava em alimento todo o dia, achavam que provavelmente ele fazia o jejum judaico. Faltava a prova da palavra. Para a ouvir, puseram-lhe dois companheiros na cela. Eram dois criminosos que compravam a liberdade afirmando que Antônio José os convidara para seguir a Lei de Moisés. A declaração dos criminosos, a juízo dos inquisidores, pesou mais do que o testemunho e rogos de pessoas respeitáveis, consta até que do rei, que teriam intercedido pelo ilustre Judeu. Bem razão tinha Antônio José quando escreveu: "Sabei que justiça é coisa pintada. Já sei infeliz que como és cega não verás da sentença a iniqüidade".

No Auto da Fé de 18 de outubro de 1739, entre os prisioneiros que em longa procissão iam ouvir a sentença, encontravam-se Leonor Maria e Lourença Coutinho. Viram Antônio José e ele também as viu, num rápido e último olhar de despedida. De cabeça raspada, descalço, mãos algemadas, Antônio José, o Judeu, caminhava cabisbaixo. Tranqüilo, porém, sobre a sorte da esposa e da mãe, que podia saber pelas suas vestes. Quanto a ele, levando sobre o sambenito, entre aplicações vermelhas que representavam chamas, o seu retrato cercado de demônios, o destino era a fogueira.

Não seria, porém, queimado vivo. Só os judeus tinham essa morte cruel. Antônio José da Silva, o advogado, fora condenado como judaizante, o que lhe valia pena benigna. Amarrado a um poste, e depois de degolado, atirado às labaredas. Sua Majestade, o rei D. João V, os altos dignitários, os senhores Inquisidores e toda a população curiosa assistiram o último espetáculo do "Judeu". Desta vez, sem risos. Nessa mesma noite aplaudia-se o final do "Precipício de Faetone", quando o filho do sol ascende para o Infinito num carro em chamas.

por Sultana Levy Rosenblatt, colaboradora de Morashá, que vive em Virgínia, nos Estados Unidos. Tem vários livros publicados no Brasil.