No período medieval, os otomanos, conquistando o Império árabe, absorveram numerosas comunidades judaicas, entre as quais a dos moçárabes do Oriente Médio, modernamente conhecidos como judeus-orientais.
Diferenciando-se em muitos aspectos dos sefaradim, em especial pelo ladino (misto de palavras espanholas, portuguesas, hebraicas, árabes e turcas), os judeus-orientais se comunicam em árabe. Além da língua, outras diferenças marcam esses dois grupos, genericamente conhecidos como sefaradim.
No período em que os sefaradim atingiram na Península Ibérica expressividade cultural (séculos XI ao XIV), eminentes cientistas judeus das ciências matemáticas e náuticas produziram estudos teóricos, cartas geográficas e instrumentos de navegação que permitiram ao mundo europeu ocidental transpor, por via marítima, seus limites geográficos. Os Grandes Descobrimentos Marítimos empreendidos por portugueses e espanhóis inauguraram uma nova era, a Idade Moderna, reveladora das transformações políticas, econômicas, sociais e culturais na Europa.
Apesar do significado cultural, os sefaradim, depois de dramaticamente sobreviver às diversas tentativas de conversões forçadas, foram expulsos da Península Ibérica. A partir de 1492, grande número desses judeus dispersou-se por terras do Mediterrâneo. Os otomanos, que detinham jurisdição sobre os Bálcãs, o Norte da África e o Oriente Médio, receberam abertamente os sefaradim em seus domínios.
Logo que se instalaram nas vastas regiões do Império Otomano, os sefaradim entraram em contato com as antigas comunidades judaicas de origens culturais diversas. O encontro provocou estranhamen-tos recíprocos, fenômeno que ocorreu em cada região onde os judeus ibéricos foram acolhidos. Provenientes de uma sociedade diferenciada, a comunidade dos expulsos era melhor estruturada e de nível cultural mais elevado. Estas circunstâncias levaram a que exercessem influência dominante sobre os judeus de outras origens e em várias áreas.
Apesar da determinação sefaradi em manter a identidade ibérica, especialmente pela preservação do ladino, constatou-se que houve nos domínios otomanos três processos distintos da interação: a assimilação total dos exilados com os autóctones; preservação completa ou parcial da cultura dos exilados; e, finalmente, a influência direta e recíproca entre os dois grupos(2). Embora a velocidade desses processos dependesse de variáveis presentes nos diferentes espaços geográficos, o sistema otomano das Millet favoreceu a manutenção das diferenças culturais.
No início do século XX, viviam no Império Otomano 400 mil judeus. Representavam a quinta maior comunidade do mundo, depois de Rússia, Austro-Hungria, Estados Unidos e Alemanha. No conjunto numérico, incluem-se os ashquenazim europeus que, atraídos pela tolerância, transferiram-se, desde o século XVI, para os domínios otomanos fugindo das discriminações anti-semitas, sempre presentes nas terras européias. Esses judeus, de biotipo diferente, comunicavam-se em iídishe (mescla de vocábulos alemães, eslavos e hebraicos) e, no geral, assimilaram-se ou acomodaram-se na estrutura social otomana, relacionando-se com judeus de melhor status, formando associações comerciais familiares, mutuamente vantajosas.
A investida do neo-colonialismo europeu no Oriente Médio, no século XVIII, provocou a gradual quebra do sistema das Millet. Os judeus das principais cidades do Império Otomano passaram a viver em quarteirões, mantendo-se unidos em função da coleta de taxas, da manutenção da ordem e da moralidade comunitária. Os limites desses quarteirões não eram bem definidos e a concentração populacional no espaço era voluntária, objetivando a salvaguarda da religião e da vida social judaica. Embora os judeus se concentrassem em “bairros”, era possível encontrar famílias de judeus vivendo em outros locais, segundo seus interesses particulares.
Em fins do século XIX, os judeus do Oriente Médio compunham comunidades confiáveis, organizadas, conservadoras e de moral rígida. A maioria dos sefaradim vivia nos grandes centros urbanos de Istambul, Salônica e Esmirna, perto dos dirigentes otomanos, seus protetores. Cosmopolitas e liberais, esses judeus mantinham a religião de forma tradicional e conservadora, sob supervisão de eminentes rabinos, formados em yeshivot das cidades turcas. Os rabinos e os estudantes das academias religiosas enfrentavam os novos tempos, assistindo à ocidentalização e secularização das instituições judaicas.
Istambul, a antiga Constantinopla, centro administrativo e comercial do Império Otomano, passagem marítima do Mar Negro e do Mediterrâneo, constituía uma verdadeira praça de câmbios, onde produtos do velho e do novo mundo eram comercializados. Foi nesta cidade que a maior comunidade judaica se organizou e se tornou modelo para todas as outras. Conhecida como “cidade-mãe do judaísmo”, Istambul foi, durante longo período, ponto de encontro dos judeus da Diáspora, centro de recepção de doações e ajuda aos ishuvim de Jerusalém, Hebron, Tiberíades e Safed, antigas cidades do atual Estado de Israel. De Istambul, capital do Império Otomano, o sultão solenemente consagrava o Chacham-Bashi, cuja autoridade se estendia a todos os judeus, inclusive aos instalados nos lugares santificados da Palestina. O tradicional respeito a esse Grande Rabino tem consagrado a um sefaradi do Estado de Israel a outorga do título “Rishón-Le-Zion”.
Depois de Istambul, Salônica, com seus 80 mil judeus, numa população de 173 mil habitantes no início deste século, foi uma verdadeira cidade judaica. Suas indústrias e o dinamismo de seu porto (desativado aos sábados), transformaram a cidade de Salônica, fundada por sefaradim, numa cidade-líder da rota comercial da indústria têxtil do século XIX.
Sua história foi trágica. Em 1917, um grande incêndio, cuja origem se ignora, destruiu, literalmente, todos os bairros judaicos com suas 34 sinagogas, 10 yeshivot e 11 escolas. A proibição dos governantes gregos em não reconstruir esses prédios danificados levou 20 mil judeus a emigrar para Israel e cidades da Europa ocidental. Os judeus que permaneceram em Salônica acabaram exterminados nos campos de concentração quando as tropas nazistas invadiram a cidade, em 1941.
A cidade-porto de Esmirna foi palco das profundas dissidências entre gregos e turcos. A ocupação grega em 1919 provocou uma forte reação turca através de incêndios catastróficos que forçaram a população, particularmente a judaica, a se transferir para outras cidades do Oriente Médio. Desde o início do século, o serviço militar, obrigatório para as minorias a partir da Revolução dos “Jovens Turcos”, de 1909, levou grande número de judeus de Esmirna a emigrar. Falando fluentemente o francês, absorvido nas escolas da Alliance Israélite Universelle e nas confessionais católicas, muitos esmirlis se transferiram para Paris e outras cidades francesas. Na América buscaram os países latinos em vista da proximidade da língua materna com o espanhol e o português. Em vista desta circunstância, os sefaradim rapidamente se acomodaram nas sociedades para onde escolheram se transferir.
Os otomanos, conquistando terras hoje pertencentes ao Líbano, Síria e Israel, governaram na observância do pluriculturalismo étnico-religioso. Os árabes, grupo majoritário das províncias otomanas no Oriente Médio, guardadas as diferenças religiosas, preservaram as tradicionais relações econômicas e sociais com os judeus, minoria religiosa com a qual mais se identificavam. Ligadas ao comércio local e regional, as cidades árabes surpreendiam pela agitação humana, dinamismo dos negócios e intensa atividade comercial, em que grande número de judeus participavam. Damasco, com 10 mil judeus, e Alepo, com 6 mil, destacaram-se no início do século XX pelas prósperas e auto-suficientes comunidades que, tradicionalmente, mantinham-se no profundo apego à vida religiosa e aos costumes tradicionais.
É interessante apontar que os treze séculos de convivência entre judeus e árabes-muçulmanos no Oriente Médio levaram a uma verdadeira simbiose sócio-cultural entre os grupos. As raízes comuns do árabe e hebraico, as leis do matrimônio, a poligamia e as leis religiosas dietéticas se prestaram para aproximar os dois povos. Os judeus assimilaram em larga medida, além da língua árabe, os modos de pensar e os padrões de comportamento árabe, alimentando uma tradição judaico-islâmica paralela à judaico-cristã do mundo ocidental. Apesar da proximidade, muçulmanos e judeus mantinham-se separados pela religião. A “arabização” não atingiu a religião e as profundas e seculares tradições judaicas.
A entrada de cristãos-europeus em diversas regiões do Império Otomano, a partir do século XIX, alterou profundamente as relações entre judeus, cristãos e muçulmanos, em especial no Oriente Médio. A introdução de produtos industrializados desestruturou a vida econômica das cidades árabes otomanas, sustentada por artesãos muçulmanos. A insatisfação geral, o apoio ocidental aos cristãos e o anti-semitismo, expresso por acusações de “crime-ritual” comuns no ocidente medieval, abalaram as relações entre judeus, cristãos e muçulmanos em várias cidades do Império Otomano. O “Caso Damasco”, no ano de 1840, foi o mais famoso exemplo disso(3). Embora a intervenção de eminentes judeus europeus e de autoridades otomanas resolvesse o impasse, inocentando o grupo judaico envolvido, outras acusações se sucederam em diversas cidades do Oriente Médio. Como conseqüência, grande número de judeus sírios do período se transferiram para outras cidades do Oriente Médio, entre as quais Beirute e Cairo. A partir do século XX, famílias de judeus alepinos e damasquinos, economicamente bem estruturadas, iniciaram processo emigratório para países da América, entre os quais Argentina, México e Brasil.
Geograficamente bem posicionado, o porto de Beirute, no Líbano, transformou-se num importante centro, por onde mercadorias facilmente se escoavam e de onde peregrinos-cristãos – europeus e americanos – iniciavam trajetória em direção às cidades santas. O cosmopolitismo de Beirute atraía os que se sentiam marginalizados e perseguidos no Oriente Médio. A maior parte dos cristãos – maronitas, católicos e ortodoxos – residia na cidade. Judeus-orientais de Sidon, Damasco, Alepo, Safed, Jerusalém e outras cidades buscaram Beirute quando as manifestações do nacionalismo árabe recrudesceram no Oriente Médio. A população judaica da cidade exigiu o funcionamento de três grandes sinagogas e de 12 menores. A Alliance Israélite Universelle, com os seus 1.200 alunos, e outras escolas serviram a comunidade que, na década de 40, atingiu um número aproximado de 6 mil judeus.
O Egito, no nordeste da África, distante de Istambul, declarou-se, em 1768, no governo de Ali Bey, independente do Império Otomano. A institucionalização da proteção aos judeus por Mohamed Ali, em meados do século XVIII, levou a que as cidades de Alexandria e Cairo se transformassem em centros de recepção de judeus de todas as origens. Napoleão Bonaparte, comandante das tropas francesas de 1798, tomou o Egito e o modernizou, construindo hospitais e escolas onde se ministrava a educação francesa. A abertura do Canal de Suez, em 1869, ampliou o processo de ocidentalização do país. Suas cidades se transformaram em grandes centros comerciais, atraindo grande número de negociantes europeus, entre os quais os ashquenazim. No ano de 1947, às vésperas do nascimento do Estado de Israel pela ONU, viviam no Egito 60 mil judeus atendidos por 45 sinagogas, 15 em Alexandria e 30 na cidade do Cairo. O extremismo e o panarabismo de Nasser, governante egípcio da década de 50, impediram a manutenção das comunidades judaicas, levando toda a população judaica a um novo êxodo. Nessa nova diáspora, grande número de famílias escolheu, na América do Sul, a cidade de São Paulo.
Notas:
(1) Autora do “A Inquisição no Brasil”: Trajetória de vida de um capitão-mor judaízante. São Paulo: CEJ da USP, 1984 e Lembranças.... Presente do Passa- do (org). São Paulo: Hebraica, 1996. As idéias do artigo foram extraídas da tese de doutorado apresentada ao Departamento de História da USP, sob o título: “Primeiras comunidades judaicas do Oriente Médio em São Paulo e no Rio de Janeiro“.
(2) Issachar Ben Ami. Sefaradi: Aculturação e Assimilação. In: Ibéria Judaica, Roteiros da Memória. São Paulo: EDUSP, 1996.
(3) Veja Revista Morashá, abril de 1995. Veja Revista Morashá, abril de 1995.