O presidente turco, Recep Tayyp Erdogan, em quase 20 anos de poder e dono de uma agenda nacionalista e populista, transformou o país de um aliado de Israel e de países ocidentais, nos anos 1990, em um desestabilizador do Oriente Médio e de regiões próximas, com apoio a grupos terroristas e intervenções militares fora de suas fronteiras.

Erdogan e seu partido, o AKP (Justiça e Desenvolvimento), governam desde 2002 e, com uma orientação religiosa e de nacionalismo nostálgico dos tempos de poder do Império Otomano (séculos 13 a 20), afastam a Turquia das tendências secularistas e pró-ocidentais, alicerces da modernização do país em décadas passadas.

Em 1923, Mustafa Kemal Ataturk proclamou a república, a ser construída das ruínas de um império que viu, na derrota na 1ª Guerra Mundial (1914-1918), momento decisivo em sua decadência. O kemalismo levou a Turquia a separar Estado de religião, num movimento inédito no mundo islâmico e apontou para a aproximação com países europeus como diretriz fundamental da Turquia pós-império.

Ataturk introduziu o caminho da secularização e da ocidentalização, mas não da democratização. Militar, manteve ainda um sistema autoritário, com as Forças Armadas como espinha dorsal do novo regime, construído também a partir de acordos internacionais, como os tratados de Sèvres (1920) e de Lausanne (1923), assinados com as grandes potências e países vizinhos.

E, mantendo posição de neutralidade durante a maior parte do conflito, a Turquia se posicionou ao lado dos aliados meses antes do final da 2ª Guerra Mundial. No cenário a seguir, da rivalidade global entre EUA e União Soviética, a liderança turca consolidou a aliança com Washington e o país passou a integrar a Otan, aliança militar liderada pela Casa Branca e criada em 1949.

Naquela época, em 1947, a Turquia votou nas Nações Unidas contra a resolução 181, da Partilha da Palestina, refletindo posição do bloco islâmico. No entanto, dois anos depois, mudou de rumo, reconheceu o Estado de Israel e se tornou o primeiro país do mundo islâmico a fazê-lo.

As relações bilaterais, porém, sofreram com altos e baixos nos anos seguintes. Dois momentos de crise ilustram as turbulências. Em 1956, Ancara convocou de volta seu embaixador em Israel, em protesto pelas ações militares israelenses, em aliança com britânicos e franceses, contra o Egito de Gamal Abdel Nasser.

Cerca de duas décadas mais tarde, em 1975, o governo turco apoiou a infame resolução da ONU a equiparar sionismo a racismo, revogada pela própria organização em 1991. E, nessa última votação, a Turquia se absteve. No entanto, foi exatamente na década de 1990 que as relações entre Ancara e Jerusalém passaram a se aprimorar e atingiram o melhor momento da sua história. Como pano de fundo, o início de diálogo entre israelenses e palestinos, resultado direto do fim da Guerra Fria e da derrota do campo soviético, alicerce fundamental para rejeição ao diálogo de Yasser Arafat.

A Turquia também aumentava a aposta, à época, em sua aproximação com países ocidentais e até mesmo numa eventual adesão à União Europeia. As relações florescentes com Israel, nos campos político, econômico e militar, eram usadas por governos turcos como argumento para evidenciar as opções geopolíticas de um país que gostava de se definir como “o mais ocidental do Oriente e o mais oriental do Ocidente”, devido à sua privilegiada posição geográfica, numa área em que se encontram os continentes europeu e asiático.

Em meio ao avanço da democracia turca, ao fortalecimento de diplomacia pró-Europa e da herança secular de Ataturk, sempre protegida pelos militares, o comércio e o turismo entre Turquia e Israel se expandiram significativamente, assim como a cooperação no setor de segurança. Os países se viam como trincheiras contra o terrorismo e o extremismo religioso.

À época, analistas internacionais chegaram a apontar o “modelo turco” como uma alternativa para países islâmicos, a ser estimulado por países ocidentais: sistema democrático e secular, em uma população majoritariamente muçulmana. Os EUA chegaram a defender a inclusão da Turquia na União Europeia, como forma de fortalecer a aliança com Ancara.

Em 1997, integrantes da cúpula militar turca visitaram Israel, e um navio de guerra chegou a aportar em Haifa, num cenário marcado ainda por exercícios navais regulares conjuntos e o uso de espaço aéreo turco para treinamento de pilotos israelenses. O Estado Judeu mergulhava em sua principal aliança com um integrante do mundo muçulmano.

Naquela década, a economia turca se expandia em ritmo acelerado, tornando-se um dos principais exemplos dos chamados países-emergentes. O crescimento econômico foi puxado pelas exportações de bens industrializados e agrícolas à Europa, assim como pelo surgimento de oportunidades de negócios para empresas turcas em regiões da antiga União Soviética, área geograficamente muito próxima e, por vezes, rica em gás e petróleo, como Azerbaijão e Cazaquistão.

O dinamismo da economia alterou o tecido social turco, com o surgimento e ascensão de uma nova classe média, oriunda sobretudo das áreas afastadas de metrópoles como Istambul e Ancara. Essa parcela da população começou a aumentar sua atuação política, trazendo ideias mais conservadoras para o debate público na Turquia.

O protagonismo dessa nova classe média permitiu o crescimento de grupos políticos apoiados em ideias religiosas, o que foi aproveitado pelo AKP e por seu líder, Recep Erdogan. Em 2002, eles venceram a eleição nacional e chegaram ao poder, apoiados nessa nova classe média mais conservadora e mais religiosa. Começa então uma nova fase da história turca e de sua relação com os países ocidentais, com Israel e com o cenário internacional.

Recebido com muito ceticismo no cenário global, Erdogan iniciou seu governo com promessas de manter a linha pró-Ocidente, as relações com Israel e o modelo secular de Ataturk. A linha autoritária e populista, no entanto, não demorou muito para se impor e colocar a Turquia no caminho de um regime que desrespeita a democracia, injeta nacionalismo e religião em seu sistema político, além de reorientar a diplomacia.

Em quase duas décadas no poder, Erdogan enveredou pelo caminho do chamado “neo-otomanismo”, arquitetado para resgatar valores e nostalgia do período imperial. A doutrina serve como plataforma para desmontar os avanços democráticos e a herança kemalista. No plano doméstico, abandonou-se o parlamentarismo e se implantou um regime presidencialista, permitindo a concentração de poderes nas mãos de Erdogan, apelidado, por seus detratores, de o “novo sultão”.

Na política externa, Erdogan promoveu profundas mudanças. Abandonou o pilar pró-Ocidente, afastou-se da União Europeia e, como nova prioridade diplomática, passou a investir na expansão de influência turca em áreas dominadas, no passado, pelo Império Otomano. Bálcãs, Mediterrâneo Oriental, Oriente Médio e Norte da África voltaram a ocupar o foco dos estrategistas de Ancara. Regiões do Cáucaso e da Ásia Central também passaram a compor a lista.

Embora a Turquia continue na Otan, Erdogan e sua agenda autoritária entraram em choque com os EUA, sobretudo na administração Obama, e passaram a se aproximar da Rússia, inimigo histórico dos otomanos. A aproximação com Moscou significou mais um fator de irritação na relação com uma União Europeia liderada por França e Alemanha.

A Turquia de Erdogan passou a expandir sua influência no mundo árabe e sunita, e se colocou como líder, ao lado do Catar, do campo defensor de grupos radicais como a Irmandade Muçulmana e Hamas, em contraposição aos países da região mais identificados por alianças com EUA e nações ocidentais, como Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e Egito.

Erdogan passou a também usar presença militar para garantir o alcance de sua influência. Abriu base no Catar, interveio na guerra da Líbia e invadiu a Síria, para garantir controle da porção norte do país árabe e tentar enfraquecer os curdos, inimigos históricos de Ancara.

Com uma política externa intervencionista e apoiando grupos islâmicos radicais, Erdogan optou por dar apoio e abrigo a líderes da organização terrorista Hamas e a hostilizar Israel. Em 2009, o líder turco abandonou, de forma abrupta, um painel no Fórum Econômico Mundial de Davos com o então presidente israelense Shimon Peres, sinalizando o afastamento do ex-aliado.

No ano seguinte, a crise bilateral chegou ao ápice. Uma flotilha zarpou da Turquia com destino a Gaza, a fim de demonstrar apoio ao Hamas, ignorou advertências de Israel para interromper a provocação e, quando comandos israelenses agiram para impedir a chegada da embarcação Mavi Marmara, 10 ativistas turcos morreram nos enfrentamentos.

Recep Erdogan aproveitou o episódio para retirar seu embaixador de Israel e expulsou o representante diplomático israelense em Ancara. Os laços, no entanto, não foram formalmente rompidos.

As relações continuaram em estado de deterioração. Erdogan passou a se aproximar da Venezuela de Hugo Chávez e manteve o namoro com Nicolás Maduro, colocando a Turquia como um dos poucos apoiadores do ditador venezuelano no cenário internacional.

Israel e Turquia também se viram em campos opostos na crescente intensificação de tensões no Mediterrâneo Oriental, onde recentes descobertas de campos submarinos de gás natural levaram a novas movimentações navais na região, com diversos países reivindicando soberania de áreas ricas em recursos naturais. Tal disputa acrescenta mais um capítulo na rivalidade histórica entre Turquia e Grécia.

Gregos, com apoio de cipriotas, se aliaram a israelenses e egípcios para conter as ameaças da Turquia. Exercícios navais dos dois campos adversários aumentaram tensões nos últimos meses no Mediterrâneo Oriental.

O apetite expansionista de Erdogan levou-o também a apoiar decisivamente o aliado Azerbaijão na recente guerra com a Armênia, na disputa pelo controle de uma região conhecida como Nagorno-Karabah. O conflito, em 2020, deixou milhares de mortos e foi interrompido graças a uma intervenção da Rússia, que obrigou as duas ex-repúblicas soviéticas a um entendimento, apesar da vantagem bélica, nas últimas batalhas, dos azerbaijanos, aliados de Erdogan.

A disputa no espaço da antiga URSS contribuiu para deteriorar ainda mais as relações entre Turquia e França, colocando o presidente Emmanuel Macron como um dos principais adversários de Erdogan no cenário internacional. O governo francês apoia a Armênia, em lado oposto à política externa turca, pró-Azerbaijão, num embate registrado também em outros pontos do tabuleiro geopolítico, a exemplo do Mediterrâneo Oriental ou da guerra da Líbia.

A chegada de Joe Biden à Casa Branca, com a posse em janeiro, adiciona mais nuvens cinzentas nas relações da Turquia com os EUA, pois a nova administração norte-americana certamente vai enfatizar o tema de respeito à democracia e aos direitos humanos. E, diante dessa perspectiva, surgiram especulações de que Erdogan poderia optar por recuperar e melhorar o diálogo com Israel, a fim de usar o governo israelense como ponte para destravar eventual diálogo entre Ancara e Washington.

Segue a lógica: pressionado por profunda crise econômica e pela pandemia, o governo turco diminuiria em alguns tons sua política externa agressiva e antiocidental, interessada em melhorar laços comerciais com os EUA e seus aliados. Relatos na mídia israelense registram alguns sinais de Erdogan no sentido da reaproximação. A ver. Líderes populistas, como o da Turquia, gostam de usar a imprevisibilidade como ingrediente de sua ação política.

Jaime Spitzcovsky colunista da Folha de S.Paulo, foi correspondente do jornal em Moscou e em Pequim.