Sábios, comentaristas bíblicos e até mesmo o próprio Moisés, empenharam-se em dar um significado a esse incidente, relatado no quarto livro da Torá, Bamidbar.

O Texto narra que os Filhos de Israel, após terem vagado pelo deserto durante quarenta anos, chegam a Kadesh, na fronteira da Terra Prometida. Não há água por perto e o povo está sedento. Como faziam sempre que algo lhes afligia ou preocupava, lamentaram-se a Moisés: ..."Se, ao menos, tivéssemos perecido quando morreram nossos irmãos [na revolta de Korach]"... "Por que trouxeste a Congregação do Eterno a este deserto para que, aqui, nós e nossos animais, perecêssemos? E por que nos fizeste sair do Egito, para nos trazer a este lugar do mal?..." (Números, 20: 3-5).

Moisés e seu irmão Aarão rezaram a D'us para que surgisse água para o povo. O Eterno respondeu, ordenando a Moisés: …"Toma teu cajado e reúne a congregação, tu e teu irmão Aarão, e, na presença deles, dirige-te à rocha, e da rocha jorrará água". O povo judeu reuniu-se diante da pedra e Moisés clamou: "Agora, escutai, ó rebeldes! Será que tiraremos água desta rocha para saciar vossa sede?" E Moisés levantou sua mão e, com o cajado, bateu duas vezes na pedra. Dela jorra água em abundância e o povo e os animais se saciam. A seguir, D'us diz a Moisés: "Como não acreditaste em Mim, para me santificar aos olhos dos Filhos de Israel, não te caberá levá-los à Terra que Eu lhes dei".

O erro de Moshé, aos olhos dos Sábios

O que teria Moisés feito de errado nesse incidente, que ficou conhecido como as "Águas da discórdia"? Rashi, comentarista clássico da Torá, ressalta que D'us instruiu Moisés a falar à pedra - e não a golpeá-la. E explica que, tivesse ele extraído água da rocha apenas por se ter dirigido à mesma, ter-se-ia realizado um milagre de proporções muito maiores, e, este sim, haveria "santificado a Mim, vosso D'us, aos olhos dos Filhos de Israel".

O Rabi Moshé ben Maimon, Maimônides, oferece uma explicação diferente: o pecado de Moisés teria sido perder a paciência com o povo judeu, quando seus membros reclamaram acerca da falta d'água. Pessoa alguma, sobretudo um líder de sua estatura, considerado o homem mais espiritual que já existiu, deveria dar sinais de impaciência, ao falar. Segundo Maimônides, teria sido o desabafo "Escutai, o rebeldes!", bradado por Moisés, o que lhe teria custado a entrada na Terra Santa.

Rabi Moshé ben Nachman, Nachmânides, por sua vez, não aceita nenhuma das duas explicações acima. Esse místico comentarista bíblico levanta a seguinte colocação: se foi tão errado Moisés ter golpeado a rocha, para que lhe teria o Todo Poderoso ordenado levar consigo o cajado, quando da extração de água para o povo judeu? De fato, a Torá ressalta que Moisés "tomou o cajado diante do Eterno, como Este lhe ordenara" (Números, 20: 9). Ademais, em ocasião anterior, D'us instruíra Moisés a extrair água da rocha, golpeando-a (Êxodo, 17:6). Não teria sido razoável Moisés supor que D'us lhe dissesse levar consigo o cajado para servir idêntico propósito?"

Nachmânides também contesta a explicação de Maimônides, justificando que o episódio das "Águas da discórdia" não foi a primeira vez em que Moshé se mostrou enfurecido com os Filhos de Israel. Durante 40 anos o povo judeu reclamou, rebelou-se e pecou diante de seu líder. E muito embora Moshé os amasse e protegesse, incondicionalmente, sempre os repreendia - até mesmo por motivos bem menos importantes. Por que, então, seria punido dessa vez, em que lhes falou com rispidez, e não nas instâncias anteriores?

Segundo Nachmânides, Moisés errou ao dizer ao povo judeu: "Extrairemos, nós, portanto, água desta rocha para saciá-los?". As palavras do profeta, explica-nos o sábio, poderia induzir-nos a acreditar que fora Moshé - e não D'us - quem realizara o milagre de tirar água de uma simples pedra. Qualquer um - especialmente um líder espiritual - que leva as glórias por um feito sobrenatural está usurpando o lugar do Criador. No instante em que um líder do povo judeu desenvolver seu próprio ego, ele terá fracassado em sua missão. Nachmânides encontra respaldo para sua explicação nas palavras de D'us a Moisés: "Por não teres acreditado em Mim"…, que seriam uma indicação de que Moisés falhara não em uma questão de atitude - tal como golpear a rocha ou se dirigir a seu povo com impaciência - mas em uma questão de fé. Mas, obviamente, também a explicação de Nachmânides é passível de ser contestada, pois, como atesta a própria Torá, homem algum jamais se aproximou do grau de humildade pessoal e de entendimento sobre o Divino alcançado por Moisés.

Outros sábios tentaram encontrar diferentes justificativas para o episódio das "Águas da discórdia". Cada um de seus comentários ensina importantes lições, pois, como está no Talmud, os ensinamentos de nossos Sábios, ainda que se contradigam, são portadores das Palavras de D'us. Mas, isto posto, não podemos deixar de nos perguntar: se Moshé cometeu tão grave pecado a ponto de lhe ser vetado o acesso à Terra de Israel, qual a razão para tanta polêmica sobre qual teria sido o seu erro? A Torá Escrita não o explicita, em passagem alguma. Quando um sábio o culpa de um determinado erro, outro prontamente o isenta. Considerando-se cada uma das explicações em separado, Moisés é culpado de vários delitos; mas, quando consideradas em conjunto, estes anulam-se mutuamente, isentando Moshé Rabenu de qualquer culpa que seja.

A versão "oficial" diz que Moisés teria desobedecido a uma ordem Divina. Tendo-lhe sido ordenado falar à rocha, ele a tinha golpeado com seu cajado. Mas a questão se complica ainda mais quando nos conta a Torá Oral que Moisés, de fato, iniciou por falar à rocha. Mas tal ação não fez jorrar a água. Por essa razão, o profeta faz o que lhe ordenara o Todo Poderoso em ocasião anterior: bate na pedra com o bastão. E é então que brota a água - contudo, em escassa quantidade. Havia que jorrar com mais intensidade e volume para poder saciar o povo judeu todo e seus animais. E é quando Moshé volta a golpear a rocha. De acordo com o Midrash, o próprio Moshé ficou perplexo com as conseqüências do incidente. Após a comunicação de que não poderia adentrar a Terra Prometida, ele teria dito ao Criador: "Trata-se de uma armadilha contra mim!". A Torá de certa forma respalda a queixa de que todo o episódio teria sido um pretexto utilizado por D'us para vetar sua entrada na Terra de Israel, pois, como veremos adiante, o Eterno "aguardou" 40 anos para "encontrar" um motivo para decretar que Moisés morreria no deserto.

O primeiro Tishá b'Av

Quarenta anos antes do incidente das "Águas da discórdia" ocorreu um evento que marcou, para sempre, a História Judaica. Doze homens - os líderes de cada uma das Tribos de Israel - são enviados em uma missão de espionagem à Terra Santa. Ao voltarem, dez dos doze "espiões", relatam ao povo judeu que a Terra, de fato, era grandiosa, mas que não teriam condições de a conquistar, já que não tinham chance alguma frente aos gigantes que a habitavam. E, muito embora D'us lhes houvesse prometido que conquistariam a Terra, ao ouvir o relato dos espiões, os judeus caem em prantos, desesperados. Essas lamentações e pranto desenfreados ocorreram na noite de Tishá b'Av - nono dia do mês de Menachem Av, no calendário hebraico.

Desapontado com a falta de fé de Seu Povo, D'us decreta que a geração que saíra do Egito, em sua totalidade - a dizer, os homens com mais de 20 anos - pereceriam no deserto. As únicas exceções seriam os dois espiões que não haviam sustentado o relato dos demais dez. E estes eram Yehoshua, filho de Nun, e Caleb, filho de Yefuneh.

Moisés e Aarão não eram culpados pelo pecado dos "espiões" ou pelo erro do povo que, ao chorar na noite de Tishá b'Av, demonstrou uma falta de fé em D'us. Eles deveriam ter sido incluídos, juntamente com Yehoshua e Caleb, entre os homens com mais de 20 anos que teriam o mérito de pisar na Terra Santa. Contudo, sabemos que isso não ocorreu - o que revela que seu destino também fora selado naquela noite de 9 de Av. Mas, como não haviam cometido pecado algum, D'us "buscara" um motivo para lhes negar aquele mérito. E este se apresentou, 40 anos mais tarde, no episódio das "Águas da discórdia". Toda a situação que o envolvera - a ordem que Moisés recebeu de levar seu bastão e de falar à rocha, não de a golpear - tudo aquilo fora concebido para o confundir e o fazer "tropeçar". "Trata-se de uma armadilha que Tu armaste contra mim", cita o Midrash como sendo as palavras que Moshé teria proferido ao Todo Poderoso.

Mas, por que razão teria D'us assim agido, especialmente em se tratando de Seu servo mais fiel? Se Moshé era inocente do pecado de sua geração, por que teria sido forçado a partilhar de sua sorte? O Midrash usa a seguinte parábola para o explicar: "Um pastor recebeu de seu rei a incumbência de cuidar e alimentar um rebanho de ovelhas, mas o pastor, descuidado, deixou-as dispersarem-se. Ao tentar entrar no palácio real, de volta, o rei não lhe permite a entrada, dizendo: 'Quando for recuperado o rebanho que lhe confiei, também você será readmitido'...".

Moisés não apenas foi o maior profeta da História da humanidade. Foi, também, modelo supremo do líder judeu, pastor fiel e zeloso, como o chama o Zohar. E um pastor fiel e zeloso é aquele que jamais deixa de lado seu rebanho, sem perder de vista nenhum de seus membros, pelos quais assume contínua e total responsabilidade. A geração que errou no episódio dos "espiões" foi aquela que Moisés, pessoalmente, conduzira para fora do Egito. Para proteger seu povo, ele tivera que enfrentar tudo e todos - o império egípcio, os inimigos do povo judeu com quem lutou no deserto e, até mesmo D'us, quando Ele ameaçou aniquilá-los. Durante sua longa jornada de 40 anos pelo deserto, Moisés lhes ensinou a Torá, cuidando de todas as suas necessidades materiais e espirituais. Ele não poderia - nem lhe teria permitido D'us - entrar na Terra de Israel, deixando-os sós, para trás. "És o líder dessa gente", lembra-lhe o Eterno; "seu destino é o teu destino".

O mesmo pode ser aplicado a muitos Sábios que seguiram os passos de Moshé Rabenu. Se alguém se perguntar por que tantos nunca pisaram na Terra de Israel, é porque eles, como Moisés, não podiam e nem desejariam deixar para trás de si o Povo Judeu. Enquanto um único judeu viver na Diáspora, sujeito aos perigos da perseguição e da assimilação, o Moshé de sua geração permanecerá "para trás", a fim de cuidar "de seu rebanho".

Explicação mística

Há outra explicação, esta mística, para o fato de Moshé não ter entrado na Terra de Israel. Tudo o que o profeta conseguiu era eterno. A Torá que nos transmitiu é eterna e jamais será abandonada pelo povo judeu. O Mishkan, Tabernáculo que ele ergueu em pleno deserto, nunca foi destruído - como o foram o Primeiro e o Segundo Templos, ambos extintos na trágica data de Tishá b'Av. A tradição ensina que o Mishkan foi misteriosamente escondido, onde até hoje permanece intacto. E preservadas, também o foram, as duas primeiras estelas de safira, contendo os Dez Mandamentos, que Moisés se viu forçado a quebrar, e que foram abrigadas no Aron Hacodesh, que ainda segundo a tradição está oculto em algum ponto, sob o Monte do Templo, em Jerusalém. (Morasha 49).

Os místicos revelam ser esta a razão para o veto à entrada de Moisés na Terra de Israel. Se ele tivesse sido o construtor do Templo Sagrado, este jamais teria sido destruído. Tivesse ele liderado nosso povo já em sua Terra, de lá jamais teríamos sido exilados. E, sendo assim, não tivesse ele morrido no deserto, o povo judeu jamais se teria dispersado pelos quatro cantos da Terra.

Não temos idéia do tipo de país que nossos antepassados teriam construído, se nunca tivessem sido exilados. Mas o que sabemos é que se jamais tivesse existido o primeiro Tishá b'Av - o relato dos espiões e o pranto generalizado de nosso povo; se não tivesse Moshé sido impedido de entrar na Terra de Israel; se não tivesse o Templo sido arrasado e nosso povo, exilado… o mundo seria, hoje, um lugar muito diferente, bem mais sombrio do que é. Pois coube aos judeus a missão e a dádiva Divina de ajudar e curar.

Próximo está o dia, porém, em que estará terminada a missão de nosso povo fora de Israel. Quando isto ocorrer, o Templo Sagrado será reconstruído e se iniciará uma era de paz, justiça e prosperidade para toda a humanidade. Segundo uma opinião do Talmud, isto deverá ocorrerá no nono dia do mês de Av, Tishá b'Av. Tudo indica que a justiça poética agrada aos olhos de D'us. Isto porque justamente no dia em que houve um incidente com dez espiões, que custou a Moisés a sua entrada em Israel e levou nosso povo ao exílio, há de ser o dia em que tal exílio se extinguirá. Será esse o dia em que Mashiach, a incorporação do espírito e da liderança de Moshé Rabenu, conduzirá o povo judeu, em sua totalidade, para fora do deserto e para dentro da Terra de Israel.

Bibliografia

Torah Chumash Bamidbar - The Book of Numbers; Edited by Rabbi Moshe Wisnefsky; Kehot Publications,

Tauber, Yanki, Land and See; www.chabad.org

Tauber,Yanki Waters of Strife - The Price of Leadership; www.chabad.org