Ícone feminista, primeira mulher judia a fazer parte do seleto grupo de juízes da Corte Suprema dos Estados Unidos, e fenômeno cultural pop, com meros 1, 55 m ela foi um gigante desta geração.

Ruth Bader Ginsburg fez história. Foi um ícone moral, um farol de sagacidade. Sempre comprometida com uma justiça progressista, ao longo de toda sua carreira ela lutou pela igualdade de gênero e os direitos civis, derrubando barreiras no combate ao flagrante machismo enquanto galgava o auge de sua profissão e pavimentava o caminho para que as mulheres pudessem ser consideradas iguais aos homens perante a lei. Graças a seu trabalho, as gerações futuras não terão que enfrentar os obstáculos que ela própria teve que superar.

Extremamente tímida e de fala mansa, ela escolhia com cuidado cada uma de suas palavras e acreditava que a pessoa não deveria falar enquanto estivesse com raiva. Sempre cuidadosamente vestida, tornou-se também um símbolo da moda, tendo figurado em várias listas das “mais bem vestidas”.

Manteve, ao longo de sua vida, uma forte identidade judaica, certa da importância da tradição e dos valores judaicos para sua vida e sua carreira. Era a única juíza da Corte Suprema com uma mezuzá afixada no umbral da porta de seu gabinete, e tinha afixada na parede uma citação da Torá : “Tzedek, tzedek tirdof” (Deut.16-20) – “A justiça, e somente a justiça, seguirás...”.

O mundo perdeu essa extraordinária mulher no dia 18 de setembro de 2020. As notícias de sua morte alcançaram o mundo após o início de Rosh Hashaná. Ruth BaderGinsburg tinha 87 anos e trabalhou até o fim de suas forças. Ela faleceu vítima de uma metástase de pâncreas.

Sua Vida

Ruth Joan Bader nasceu no Brooklyn, Nova York, em 15 de março de 1933. Seus pais, Nathan e Celia Bader, eram imigrantes. O pai, natural de Odessa, na Ucrânia, emigrara para os Estados Unidos com sua família aos 13 anos. A mãe, mulher forte e brilhante, nasceu nos Estados Unidos, quatro meses após sua família ter emigrado da Polônia.

Ruth cresceu como filha única. Sua irmã mais velha morrera de meningite, aos 6 anos, quando ela tinha apenas 14 meses. A família vivia do comércio, com o dinheiro sempre contado, proveniente de umas lojinhas de uma porta só.

Na juventude seus pais não tinham meios que lhes permitissem cursar a faculdade, mas davam grande valor à instrução e ao trabalho. Em 14 de junho de 1993, quando a Juíza Ginsburg estava no Jardim de Rosas da Casa Branca com o Presidente Bill Clinton, para o anúncio de sua nomeação à Suprema Corte, ela deixou o Presidente em lágrimas com o tributo que prestou à sua mãe: “Rezo para que eu possa ser tudo o que ela teria sido se vivesse em uma era em que as mulheres pudessem aspirar e alcançar, e em que as filhas fossem tão valorizadas quanto os filhos”.

Os membros da família Bader eram judeus tradicionais. Ruth frequentava a sinagoga e, durante o verão, as colônias de férias dos jovens judeus, sempre participando das celebrações do Shabat.

Pouco depois do término da 2ª Guerra, Ruth escreveu um artigo intitulado “Um Povo”, no boletim de sua sinagoga, sobre a importância de um mundo livre de preconceitos, após os horrores do Holocausto. Em 2016, em seu livro “My Own Words” (Minhas próprias palavras), ela republicaria esse artigo. Entre outros, ela escreveu: “Nunca devemos esquecer os horrores a que foram submetidos nossos irmãos em Bergen-Belsen e nos demais campos de concentração nazistas. É possível haver um mundo feliz, novamente, e esse mundo voltará a existir quando os homens criarem um vínculo forte entre si, um vínculo inquebrantável perante um preconceito construído ou uma circunstância passageira”.

No colegial, que ela cursou na James MadisonHigh School, no Brooklyn, Ruth brilhava nos estudos e sempre esteve profundamente envolvida nas atividades estudantis. Entre outros, foi editora do jornal e participava da orquestra de alunos. Na véspera da formatura de Ruth do colegial, sua mãe sucumbiu a um câncer contra o qual ela lutava há vários anos. Ela sentou shivá e não participou da formatura.

Faculdade e casamento

Ruth foi uma aluna excelente durante o High School e, com isso, recebeu bolsa completa para estudar na Cornell University.

Em um documentário da rede PBS da TV americana, “Os americanos judeus”, Ruth contou como, no dormitório das alunas do 1º ano de Cornell, ela e outras moças perceberam que eram todas judias, como se a faculdade as tivesse colocado juntas, para que não “contaminassem” os demais alunos.

E foi lá em Cornell que ela conheceu um rapaz judeu, “Marty”, Martin David Ginsburg. Ela estava no 1º ano e Martin no 2º. Foi imediata a conexão entre os dois, dando início a uma parceria de coração e intelecto que duraria até a morte dele, em 2010. Como ela contaria, mais tarde: “Conhecer Marty foi a coisa mais feliz que me aconteceu, em toda a vida. Ele foi o único rapaz que conheci que se importava com o fato de eu ter um cérebro”.

Quando ela estava no 3º ano da faculdade eles ficaram noivos e, em 1954, depois que se formou, casaram-se em uma cerimônia tradicional judaica. A futura juíza formou-se em Estudos Governamentais. O casal teve dois filhos, Jane, professora de Direito da Propriedade Intelectual, na Faculdade de Direito de Colúmbia, e James, produtor de gravações de música clássica, em Chicago. Tiveram quatro netos e uma bisneta.

No dia de seu casamento, Ruth recebeu da sogra um conselho, que ela considerou dos mais importantes em sua vida, segundo escreveu em 2016, no New York Times: “Em todo bom casamento, ser um pouco surdo ajuda muito”. A Juíza Ginsburg ainda revelou que seguira esse conselho assiduamente “não apenas em casa, nos 56 anos de parceria sem igual. Usei, também, em todo lugar em que trabalhei, inclusive na Suprema Corte. Quando alguém diz uma palavra sem pensar, desagradável, o melhor é se desligar. Reagir com raiva ou aborrecimento não ajudará a sua capacidade de persuasão”.

Ruth e Martin tinham personalidades diferentes. Ela era séria, tímida e reservada. Nas reuniões sociais, falava pouco, já Marty era o conversador, bem-humorado, e, em geral, o centro das conversas. Era carismático e estava sempre pronto para contar uma piada da qual quase sempre ele próprio era o alvo. E Ruth deixava-o falar pelos dois. A sólida profundidade de sua relação era visível a todos que os conheciam bem.

A vida deles era uma constante parceria, construída sobre bases sólidas de apoio e sacrifício mútuo. Marty era diferente dos homens de então. O relacionamento entre eles refletia uma igualdade de gênero muito avançada para a época. Sua família e suas carreiras refletiam uma parceria igual. Revezavam-se no cuidado aos filhos e no trabalho doméstico. Era Marty, um cozinheiro nato e gourmet, o responsável por preparar as refeições da família – ela era uma péssima cozinheira e os filhos a proibiam de entrar na cozinha.

Marty sempre foi o maior defensor da carreira da esposa e foi seu empenho, aliado a grande dedicação ao trabalho e ao brilhantismo de Ruth, que a alçariam à Suprema Corte. Ao falar de Marty, Ruth costumava repetir “Tive um grande companheiro, parceiro em minha vida, que considerava meu trabalho tão importante quanto o seu. E isso fez toda a diferença para mim”.

Os primeiros anos de seu casamento foram difíceis. Em 1954, após terminar o 1º ano de Direito, Martin foi convocado para o serviço militar e serviu dois anos no Forte Sill, em Oklahoma. E o casal se mudou para lá.

Ruth conseguiu um emprego na Secretaria de Previdência Social, mas quando contou que estava grávida foi rebaixada para um trabalho burocrático, com salário inferior. Na década de 1950 a lei permitia a discriminação contra mulheres grávidas. Em 1955, nasceu a primeira filha do casal, Jane. No ano seguinte, Martin deu baixa do exército e o casal Ginsburg voltou à Faculdade de Direito de Harvard.

Ruth tinha sido aceita para esse seleto grupo praticamente masculino – era uma das nove únicas moças em meio a 552 alunos. Em uma ocasião, o reitor Erwin Griswold convidou todas as nove moças para um jantar, e perguntou a cada uma delas: “Como você justifica estar ocupando um lugar, nessa turma, que deveria ter sido preenchido por um homem? ”.

Era um desafio enorme ser mulher no quase “santuário masculino” que era a Faculdade de Direito de Harvard. As mulheres eram raridade no corpo docente e, em aula, os professores nunca – ou raramente – lhes faziam perguntas, e aquela que tivesse a chance de falar, tinha que estar preparada para “arrasar”!

A vida de Ruth era corrida. Estudava entre as aulas, pois precisava voar para casa, à tarde, antes da babá de Jane ir embora. Mas nada a detinha e ela teve resultados acadêmicos excelentes. Foi a primeira mulher a escrever na revista da faculdade, a reputada Harvard Law Review, para a qual contribuíam apenas os melhores dentre os melhores. No 3o ano da faculdade, Martin foi diagnosticado com câncer testicular. Os prognósticos eram terríveis, mas havia uma pequena esperança e o casal se agarrou a ela. Ele foi operado, submetido depois ao tratamento de radiação e pouco frequentou as aulas. Ruth foi o esteio de sua família. Além de frequentar suas próprias aulas, ajudou Marty a estudar, datilografando as anotações de seus colegas e os trabalhos dele quando ele próprio não tinha forças para fazê-lo. Seu próprio trabalho da faculdade ela só pegava depois que o marido adormecesse e que ela cuidasse da pequena Jane.

Martin se recuperou e conseguiu se formar. Aceitou uma posição em uma conceituada firma de advocacia em Nova York. Ruth, então, pede permissão a Harvard para terminar seu curso na Faculdade de Direito de Colúmbia, em Nova York, mas ainda assim receber o diploma de Harvard – mas isso lhe foi negado. Anos mais tarde, a Faculdade de Direito de Harvard mudou sua política, passando a permitir que seus alunos, em situação semelhante, completassem o curso em outras faculdades de igual mérito, recebendo o diploma de Harvard.

Ruth se transferiu para a Columbia University, onde era uma das 12 moças em uma turma de 241 rapazes, e se formou em primeiro lugar da turma. Foi editora da Revista de Direito de Colúmbia, a primeira mulher a ter trabalhado nas duas das maiores publicações de Direito do mundo.

Em 2011, Harvard lhe concedeu um título honorário em cerimônia em que Placido Domingo, que também recebia um título semelhante, dedicou-lhe uma música. Para a Juíza Ginsburg, amante do canto lírico e da ópera, foi uma das mais gratas experiências que teve na vida.

Início de carreira

Apesar de seu invejável currículo, Ruth não foi aceita pelos escritórios de advocacia em que procurou emprego, em Nova York. Na década de 1950, as firmas mais tradicionais engatinhavam ainda no processo de contratar judeus. Mas, de uma tacada só, uma advogada mulher, judia e mãe era querer demais dos conservadores da época.

Em 1959 Ruth trabalhou como assistente de juiz no gabinete do Exmo. Juiz Edmund L. Palmieri, da Corte Distrital dos Estados Unidos no Distrito de Nova York. Dois anos depois, ela voltou à Columbia University para fazer um projeto sobre Direito Civil da Suécia.  

Já conformada de que não conseguiria entrar para um escritório de advocacia, Ruth se torna professora de Direito na Faculdade Rutgers, em 1963. Ela foi a segunda mulher a ser contratada para lecionar nessa faculdade. Na época, em todas as faculdades de Direito americanas, juntas, não havia mais de 20 professoras mulheres. E lá ela lecionou o que talvez tenham sido os primeiros cursos que trataram do direito das mulheres perante a lei.

Enquanto lecionava nessa faculdade, Ruth engravidou pela segunda vez e, por medo de perder o cargo, escondeu a gravidez. Seu filho, James, nasceu em setembro de 1965.

Em 1972, deixou Rutgers e começou a lecionar na Faculdade de Direito de Colúmbia. Foi a primeira professora titular, do sexo feminino, na instituição. Deu cursos e seminários sobre Processo Civil, Direito Constitucional e Discriminação de Gênero, chegando a compilar o primeiro livro de casos sobre discriminação baseada em gênero. Seguiu lecionando em Colúmbia até 1980.

Luta por Igualdade de Direitos

Em paralelo a lecionar Direito, Ruth fazia trabalho voluntário na União de Liberdades Civis da América (A.C.L.U.). Foi Diretora Jurídica dessa entidade de 1973 a 1980, e fez parte de seu Conselho Nacional de Diretores, de 1974 a 1980.

Em 1971, teve papel de destaque no lançamento do Projeto dos Direitos das Mulheres, da A.C.L.U., do qual foi a primeira diretora. Era comum ouvi-la citar a abolicionista Sarah Grimké, que defendia que a luta pelos direitos das mulheres se equiparava à luta pela abolição da escravatura: “Não peço favores para meu gênero. Peço apenas a nossos irmãos que tirem o pé de nosso pescoço”.

RBG, suas iniciais e como passou a ser conhecida, foi um dos primeiros advogados americanos que desafiaram as leis de discriminação das pessoas em virtude de seu gênero. O que poucos sabem é que vários de seus casos mais importantes defendiam homens – não mulheres – alvo de discriminação.

Apresentar os homens como “vítimas” era altamente estratégico de sua parte, pois Ruth sabia que estaria se dirigindo a juízes e advogados exclusivamente do sexo masculino. Seus argumentos eram brilhantes: “Por que razão os homens são tratados com menos generosidade do que as mulheres; só pelo fato de serem homens? O que o governo deve a um gênero, deve também ao outro. Isso é óbvio…”.

Ela estrategicamente escolheu contestar as leis que visavam proteger as mulheres – leis baseadas em noções estereotipadas das aptidões e necessidades masculinas e femininas. Ia com muita cautela, alinhavando uma por uma as leis sexistas, ao invés de se arriscar a pedir à Suprema Corte que abolisse todas as leis que tratavam homens e mulheres de maneira desigual.

Em 1975, por exemplo, ela defendeu o caso (Weinberger v. Wiesenfeld) de um jovem viúvo que teve seus benefícios negados após perder a esposa durante o parto. Ele precisava dos benefícios da previdência para poder ficar em casa e cuidar do recém-nascido, mas de acordo com a lei previdenciária apenas as mulheres tinham direito a esses benefícios.

Ruth defendeu esse caso perante a Corte Suprema argumentando que não havia razão para seu cliente ser discriminado por ser homem – e não receber os mesmos benefícios a que teria direito uma mulher. Aquele caso era o exemplo perfeito de que “a discriminação com base em gênero prejudicava a todos, indiscriminadamente”, ela declarou.

Os juízes da Corte Suprema derrubaram aquela discriminação, permitindo que os maridos recebam benefícios de cônjuge sobrevivente. Com esse caso, ela também demonstrou que o cuidado dos filhos não era um papel determinado pelo gênero feminino, exclusivamente.

A 14a Emenda da Constituição garante a todos os cidadãos “igual proteção perante a lei”. O objetivo dela era persuadir a Suprema Corte de que essa Emenda se aplicava não apenas à discriminação racial, mas também à discriminação de gênero. Como explicou em 1993, durante a audiência de confirmação para a mais alta Corte de Justiça americana, “enquanto a discriminação de raça era imediatamente vista como perniciosa, odiosa e intolerável, as leis que discriminavam as mulheres eram sempre justificadas como protetoras das mulheres”. Sendo assim, ela escolhia casos que pudessem demonstrar que o uso do gênero como base para tratamento diferenciado era danoso tanto às mulheres quanto aos homens.

Com uma estratégia clara e uma esmerada seleção de casos, ela persuadiu uma Suprema Corte totalmente integrada por homens, caso a caso, que existia, sim, uma discriminação contra as mulheres.

RBG defendeu, com sucesso, perante a Suprema Corte, seis casos que se tornaram históricos sobre igualdade de gênero – vencendo cinco deles. Sem esses casos, como comentou a revista New Yorker em 2018, “o mundo do trabalho seria totalmente diferente”.

Até a era Ginsburg, a Suprema Corte nunca havia reconhecido a discriminação de gênero como tema de preocupação constitucional. O objetivo dela era fazer os juízes que a integravam entenderem que se tratava de princípio fundamental da Constituição americana que as mulheres fossem vistas como iguais aos homens em seu status e em seus direitos.

Defensora vitalícia da igualdade de gênero, Ruth gostava de dizer, brincando, que o número de mulheres na Corte Suprema seria satisfatório no dia em que os nove assentos existentes fossem ocupados por nove mulheres.

Conhecida, como já dissemos, por sua timidez inata, ela contou, certa vez, que, em sua primeira defesa perante a Corte Suprema, seu nervosismo era tanto que ela nem almoçara, por medo de que pudesse vomitar diante dos juízes. Mas essa timidez sumiu por encanto quando percebeu que havia muito a ser feito e ela tinha conquistado “ouvintes cativos” dentre os juízes mais poderosos dos EUA.

Tribunal de Recursos dos Estados Unidos

Em 1980, Ruth foi indicada pelo Presidente Jimmy Carter para o Tribunal de Recursos dos EUA para a região do Distrito de Colúmbia. Ao receber essa indicação, seu marido, Marty, que era considerado um dos melhores advogados tributaristas de Nova York, deixou seu lucrativo escritório e se mudou para Washington com ela e os filhos, passando a dar aulas de Direito Tributário na Faculdade de Direito da Georgetown University.

Ainda que RBG seja descrita como liberal e progressista, seus dias no Tribunal de Recursos foram marcados pela moderação, votando, muitas vezes com os conservadores.

A Suprema Corte

Em 1993, ao surgir uma vaga na Corte Suprema, Marty começou a fazer o lobby para que Ruth fosse considerada para o cargo, usando todos os seus contatos empresariais e políticos. Não fosse por seu empenho, como disse o ex-Presidente Clinton, Ruth nunca teria chegado à lista de finalistas. Ela não era a preferida de Clinton, mas uma conversa privada de 90 minutos com a Juíza bastou para que ele tomasse sua decisão. A confirmação pelo Senado foi fácil – 96 contra 3. Ela se tornou a segunda juíza mulher da Suprema Corte e a primeira mulher judia na importante posição.

Ao ser sabatinada pelo Congresso, em 1993, RBG assim respondeu ao Senador Edward Kennedy, quando este lhe sugeriu que sua experiência pessoal e pioneira no tema da discriminação de gênero também a sensibilizaria para a discriminação racial: “Tenho todos meus sentidos despertos para a discriminação. Cresci durante a 2ª Guerra Mundial em uma família judia. Guardo lembranças de criança, ainda antes da Guerra, de estar em um carro com meus pais e passar por um resort [na Pensilvânia], que tinha um cartaz à porta, dizendo: ‘Entrada proibida a cachorros e judeus’. Avisos como esse eram comuns neste país durante a minha infância. Um judeu que viveu na América durante a 2a Guerra Mundial tem que ser sensível à discriminação!”.

Ela costumava dizer que seus antepassados “tiveram a visão de deixar sua terra natal em uma época em que a ascendência e a fé judaicas significavam exposição a pogroms e à degradação do valor do ser humano”.

Ao entrar para a Suprema Corte, em 1993, Ruth estava determinada a ser educada e calorosa. E em todos os seus 27 anos de carreira, ela foi amável, feliz e cordial, sempre.

Como juíza, ela era considerada parte do bloco liberal-moderado, uma voz forte a favor da igualdade de gênero, do direito dos trabalhadores e da separação entre Igreja e Estado. Mas, quando a Suprema Corte passou para a direita, a Juíza Ginsburg se tornou uma de suas vozes mais liberais e abertas.

RBG era considerada uma grande juíza, uma mente privilegiada cujas conclusões eram vinculantes, em muitos casos. Tinha um ritmo vigoroso de trabalho. Foram de sua autoria cerca de 200 relatórios majoritários e se tornou conhecida por seus eloquentes votos vencidos, suas dissidências. Suas opiniões eram muito bem estruturadas, com frases diretas e claramente elaboradas. No entanto, foram seus votos dissidentes, especialmente os que ela anunciava do assento de juiz, os que mereceram grande atenção. Eram contundentes, por vezes mordazes, mesmo.

A Juíza Ginsburg também foi uma das integrantes da Corte Suprema mais querida pelos colegas mesmo quando tinham sérias discordâncias sobre a lei. Ela era muito próxima ao Presidente do Tribunal, o conservador Juiz Antonin Scalia e sua mulher. Mas, no tribunal, eles não poderiam ser mais diferentes. O Juiz Scalia brincou, certa vez, dizendo: “O que se pode não gostar na Ruth, tirando fora suas opiniões sobre a lei? ”. Ela também era muito próxima do arqui-conservador Juiz Clarence Thomas e do Juiz Brett Kavanaugh, que contou que mesmo sendo de lados opostos do espectro ideológico, o humanismo de Ruth era fonte de inspiração para ele. “Americano algum fez mais do que a Juíza Ginsburg para garantir igualdade de justiça para as mulheres”, o Juiz disse após a morte da amiga e colega.

Mesmo com a crescente polarização, raiva e divisão que se vê nos Estados Unidos, RBG harmonizava tudo com calor humano e civilidade. Ela foi um exemplo de que ainda é possível se encontrar um terreno comum e respeito mútuo entre os seres humanos mesmo quando têm opiniões políticas divergentes.

Sua aparência impecável também foi outro de seus marcos. Usando o cabelo sempre preso e os trajes simples e elegantes do costureiro Giorgio Armani, ela os mesclava, às vezes, com casacos extravagantes que adquiria em viagens por lugares exóticos. Eram sua marca registrada, também, suas golas rendadas, broches brilhantes e óculos chamativos. E sobretudo os elásticos trabalhados com que prendia o cabelo. Tudo isso e, especialmente, sua indiscutível classe a levaram, inúmeras vezes, às listas das mais elegantes, como já dissemos.

A Morte de Marty

Marty faleceu devido a um câncer em julho de 2010, aos 78 anos e após 56 anos de casamento. No final da vida deixou um bilhete, ao lado da cama, escrito à mão em um bloco amarelo, para que sua mulher o encontrasse. “Minha queridíssima Ruth. Você é a única pessoa a quem amei em minha vida, deixando um pouco de lado meus pais, nossos filhos e seus filhos, e a admirei e amei praticamente desde o dia em que nos vimos, pela primeira vez, em Cornell. Que maravilha foi acompanhar seu progresso ao pináculo do mundo do Direito! ”

Seu Judaísmo

A Juíza Ruth Bader Ginsburg sempre expressou seus valores e sua herança judaica. Atuava nas causas e organizações comunitárias. Sua neta a chamava de “Bobbe” (vovó, em iídiche) e ela era a única, na Suprema Corte, a ter uma mezuzá em sua porta, como vimos acima.

Ruth e Marty mandaram os filhos às aulas de hebraico e judaísmo, enquanto viveram em Nova York. Passavam o Seder de Pessach com parentes e, como contou a neta, Clara Spera, ela passava todos as Grandes Festas com sua avó.

A Juíza Ginsburg sempre dizia que sua herança judaica influenciava seu trabalho: “Sou uma juíza que nasceu, cresceu e amadureceu orgulhosa de ser judia. A busca exigente por justiça, paz e esclarecimento percorrem toda a história e a tradição do Judaísmo. Espero que nos meus anos na Corte Suprema dos Estados Unidos, eu tenha a força e a coragem de permanecer constantemente a serviço dessa busca incessante”, ela declarou perante o American Jewish Committee, em 1996. Disse também, na ocasião: “As leis de proteção para os oprimidos, os pobres, os solitários, são evidentes no trabalho dos meus antecessores judeus na Suprema Corte o mandamento de perseguir a justiça é o fio condutor que nos une, a todos”.

Ela foi a primeira mulher judia na Corte, seguindo os passos de conceituados juristas judeus, como Brandeis, Cardozo e Frankfurter. Em um discurso na Universidade Brandeis, ela afirmou que Louis Brandeis, o primeiro juiz judeu da Suprema Corte norte-americana, havia inspirado seu trabalho em defesa dos direitos e das liberdades civis.

Foi também muito ligada ao trabalho do Holocaust Memorial Museum, de Washington e, em 2004, foi a oradora oficial da comemoração do Dia do Holocausto e da Recordação, falando sobre o papel da lei na prevenção de atrocidades.

Um de seus atos para os advogados judeus foi o precedente oficial, em 2003, de que poder-se-ia abrir mão da tradição da “Primeira 2ª Feira de Outubro”, por um propósito de força maior. Há uma lei federal que dita que a legislatura da Suprema Corte começa na primeira 2ª feira desse mês. Desde 1975, a Suprema Corte iniciava cada período com a apresentação de sustentações orais. Em 2003, a primeira 2a feira de outubro coincidia justamente com Yom Kipur. A Juíza Ginsburg e o Juiz Breyer foram ao Presidente da Corte, Juiz Rehnquist, indicando que os advogados costumam esperar a carreira toda para poder falar perante a Suprema Corte. Para muitos deles, era a única oportunidade na vida de fazer uma argumentação perante a Suprema Corte. E se um advogado judeu quisesse se apresentar? Não deveríamos fazer esse advogado ter que escolher entre cumprir os mandamentos de sua fé e se apresentar perante a Corte. E aquilo persuadiu o presidente a mudar o calendário...

RBG visitou Israel várias vezes. Na década de 1970, participou de uma conferência internacional em Israel que discutia a posição das mulheres de acordo com as leis seculares e da Halachá, em Israel e nos EUA. Durante décadas após essa viagem, ela continuou indo a Israel e sempre comentava sobre seu sistema jurídico. Em 2000, foi homenageada pelo Knesset juntamente com outras personalidades femininas tanto de Israel quanto dos EUA.

Em 2017, ela recebeu um prêmio pelo conjunto de sua obra da Fundação Genesis, conhecido com o “Prêmio Nobel de Israel”. Ela deveria ter recebido o próprio prêmio, no valor de um milhão de dólares, mas declinou-o por temer que um prêmio nesse valor, em espécie, pudesse violar as leis da ética.

De improvável ícone pop à Notória RBG

A Juíza Ruth Bader Ginsburg, já com mais de 80 anos, torna-se verdadeiro ícone para a geração mais jovem quando uma estudante de Direito, Shana Knizhnik, criou uma conta no Tumblr dedicada a ela. E a chamou de “A Notória RBG” – numa referência ao falecido rapper, The Notorious BIG. Isso levou Ruth ao mundo de uma nova geração de feministas e fez dela uma figura cult.

De repente, seu rosto estava em canecas e camisetas. Ela era sempre representada no programa Saturday Night Live e seus argumentos “bombavam” na Internet. The Notorious RBG foi o título de um documentário-campeão e de vários livros. No dia após sua publicação, em 2015, a biografia “A Notória RBG: A Vida e a Época de Ruth Bader Ginsburg”, por Irin Carmon e S. Knizhnik, chegou ao topo da lista de best-sellers. No ano seguinte a editora Simon & Schuster publicou uma biografia dela para crianças com o título “Eu discordo”.

“Estava além da minha imaginação pensar que um dia eu seria a Notória RBG”, Ruth disse. “Estou com 86 anos e as pessoas de todas as idades ainda querem tirar uma foto comigo”...

Sua saúde e sua morte

A partir de 1999, Ruth foi acometida por vários tipos de câncer, além de ter tido várias fraturas de costelas e ter um stent colocado em uma artéria. Ela marcava sempre as quimioterapias para 6a feira para poder se recuperar nos fins de semana e estar pronta para as suas famosas sustentações orais. E trabalharia até seus últimos dia de vida.

Em dezembro de 2018 surgiram dois tumores pequenos em um lado de seu pulmão, e ela foi ficando muito magra e fragilizada. Mas apenas na aparência, pois era de uma força de vontade incrível, não interrompendo suas atividades físicas com um personal trainer, que até publicou um livro sobre o severo regime de exercícios de sua famosa e antiga cliente.           

No dia 18 de setembro de 2020 Ruth Bader Ginsburg faleceu. Alguns dia antes a Juíza expressara seu último pedido, como contou sua neta Clara Spera. “Meu desejo mais ardoroso é não ser substituída até que um novo presidente tenha prestado juramento”. Seu desejo não foi atendido.

A Juíza foi a primeira mulher e a primeira pessoa judia a ser velada no Capitólio dos Estados Unidos, honra que foi concedida a poucos, como os ex-presidentes Lincoln, Reagan e Kennedy.

As manifestações por sua morte foram inúmeras. “Não haverá outra como ela”, disse Hillary Clinton, ex-Secretária de Estado dos EUA. E Bibi Netanyahu, Primeiro Ministro de Israel, solidarizou-se com o povo americano, declarando, ao fim de suas palavras que ...“Ela tinha orgulho de sua herança judaica – e o Povo Judeu sempre terá orgulho dela”.

BIBLIOGRAFIA

Ginsburg, Ruth Bader, My Own Words, 2018, Kindle Edition