Profundo conhecedor da Cabalá e de filosofias orientais, o rabino Laibl Wolf dedica-se, nas últimas três décadas, a transformar conhecimentos judaicos milenares em aplicações úteis ao cotidiano e à superação dos desafios da vida moderna.

O rabino, apoiado fortemente nas fontes do chassi-dismo, desenvolve ensinamentos descritos como “baseados na espiritualidade e altamente pragmáticos”.

Advogado e psicólogo, o rabino Wolf, além de aliar o misticismo judaico às demandas do dia-a-dia, destaca-se também pelas incursões no mundo da educação, onde caminha, por exemplo, como um especialista em questões de revolta na adolescência. Sua produção intelectual reúne ainda estudos e comparações de temas como ioga e meditação.

Em agosto passado, o Instituto Morashá de Cultura, A Hebraica e o Beit Chabad do Morumbi convidaram o rabino Laibl Wolf da Austrália, onde vive, ao Brasil, para uma séria de palestras. Em sua entrevista a Morashá, ele não falou apenas dos temas mais freqüentes em suas apresentações, como Cabalá, chassidismo e ensinamentos orientais. Comentou ainda o desafio do terrorismo e as ameaças enfrentadas por Israel.

Em seus artigos e palestras, o Senhor fala numa “Cabalá Prática” e numa “Cabalá Comportamental”. O que significam essas expressões?

Não são termos tradicionais, são termos que eu realmente utilizo. Cabalá é um ensinamento muito antigo da Torá e é escrita numa forma que deliberadamente esconde as sabedorias do povo em geral, e houve razões específicas para isso. Com o passar do tempo e com a chegada da era moderna, a vida ficou muito mais complexa e a informação ficou mais conflitante e mais difícil de compreender. Tivemos que recorrer a sabedorias antigas para encontrar nossos caminhos e, entre vários ensinamentos antigos, a Cabalá ficou bastante popular. Pessoalmente, não creio que algo puramente esotérico ou mesmo puramente intelectual tenha uma aplicação real na vida das pessoas. E, portanto, se recorremos a esses ensinamentos, queremos torná-los mais fáceis de aplicar no contexto do com-portamento diário, das expressões diárias, e especificamente, em interpretações diárias da vida, para que a vida possa ser mais estável e as pessoas, mais equilibradas num mundo mais difícil. 

E como a Cabalá entraria no cotidiano das pessoas?

Apenas ler a Cabalá não seria algo extremamente útil, a menos que se extrapolassem os ensinamentos e os aplicassem, por exemplo, para lidar com o sentimento de raiva. E falando sobre uma dificuldade comum que encontramos em sociedades ocidentais, temos a inabilidade das pessoas em absorver informações ou circunstâncias que despertam medo ou apresentam um desafio, e enfrentá-los de tal maneira que não resulte numa resposta negativa, mas em crescimento positivo. Por exemplo, se alguém observa a base do que é a emoção humana, identifica o que é a raiva, a ira, e então pratica uma mudança em processos que permitam uma interpretação diferente dos eventos. Isso falando em termos gerais. Em termos mais específicos, na tradição cabalística, nossa mente e nossas emoções são resultados de realidades espirituais que usam o corpo como sistema de comunicação e se somos capazes de entender como a parte espiritual se manifesta através da consciência do corpo, então podemos realmente re-treinar a maneira pela qual permitimos que essas energias fluam através de nós. A raiva, por exemplo, é sempre produto do medo. Todo sentimento de ira é baseado em algum temor. E a maneira pela qual o ser humano procura compensar esse medo é artificialmente “aumentar-se”. Faz isso com a voz e seu volume, com a linguagem corporal, para fazer-se maior do que é. E para ter também a satisfação psicológica de achar que controla alguém que está afetando seus limites naquele momento. Esses mecanismos vêm junto com a raiva, geralmente eleva-se o tom de voz, geralmente há um movimento ameaçador do corpo e a pessoa se sente momentaneamente capaz de controlar e de exercer poder sobre o meio ambiente ou sobre outra pessoa. É claro que isso dura pouco, porque é artificial. E no final do dia, essa pessoa tem uma frustração. O medo tem de ser desfeito, para que possamos direcionar o fluxo de nossa parte espiritual numa maneira com compaixão, de uma maneira empática. Por exemplo, se uma pessoa está gritando com você, em vez de você se perguntar “como ele ousa falar comigo dessa forma?” ou “quem ele pensa que é?”, você, ao contrário, pode re-treinar sua resposta automática, que seria aos gritos, e pensar o que se pode fazer para ajudá-lo, então a interpretação da situação é diferente. Não há elementos de medo. E a raiva simplesmente não emerge. A tarefa é ser capaz de repetir essas posturas de uma maneira em que elas se transformem na sua nova resposta, no seu “piloto automático”, a situações ameaçadoras. 

Para atingir essa nova postura é necessário desenvolver muito autocontrole, não? 

Você precisa de inspiração, o que significa alguém servindo de modelo para você. Você precisa de uma metodologia para o aprendizado. E então você precisa de prática, prática e prática. São os elementos de que você precisa. E embora pareça ser uma tarefa extraordinária, não é tão difícil. O segredo é estar realmente inspirado. Quando uma pessoa está inspirada, há o fluxo da vontade e o resto vem facilmente. É quando você não está inspirado que há dificuldade para assimilar algo.

Como o Sr. avalia a ioga?

Notei, nos últimos anos, quantos judeus nos EUA, na Austrália e imagino que seja o mesmo aqui no Brasil, voltaram-se à ioga como uma maneira de praticar a autodisciplina ou a conscientização da importância da busca da saúde. Acho que esse movimento é, em vários aspectos, bastante positivo, apesar de não ser o caminho judaico de buscar esses objetivos em nossas vidas. Em nossa abordagem, aprender como treinar posturas de emoções é algo que é muito bem construído em nossas fontes judaicas, especialmente como é explicado no chassidismo, que explica a Cabalá. Em vez de uma analogia com posturas corporais, que na tradição oriental a ioga permite, nós adotamos práticas, especialmente durante as rezas, durante a tefilá; e também além das rezas, de como treinar a mente e como treinar o coração para posturas definitivas, para quando chegar o momento de desafio, ao longo do dia, e para que sua consciência seja ágil, assim como o corpo é ágil, para enfrentar com sucesso qualquer que seja o desafio. 

As leis judaicas proíbem a prática da ioga?

Depende do professor. Se o professor usa ensinamentos orientais para explicar os processos, então não é útil para a alma judaica. Mas se é puramente uma atividade física, em busca de agilidade e de saúde, não vejo nenhum problema. 

Qual a importância e o papel da meditação no judaísmo?

Meditação, na maneira pela qual entendemos a palavra atualmente, não é muito importante no judaísmo. Em inglês, a palavra meditação sugere o que é de origem recente, vindo do Oriente nos últimos trinta, quarenta anos. E a percepção comum é a de “parar a mente”, ou de “esvaziar a mente”. Esses não são ensinamentos judaicos, bem ao contrário. Vão contra as intenções básicas de meditação em nossa tradição. Lembrando então que a palavra não é um termo exato, eu creio que o denominador comum por trás de todas as práticas de meditação é foco. Em que você se concentrou e por que você o faz é culturalmente pré-determinado e pode ser orientado espiritualmente; portanto, depende da tradição envolvida. Vou-lhe dar um exemplo da tradição judaica: focar um conceito ou um ensinamento em grande profundidade, de maneira que você o internaliza, ele passa a fazer parte de você e você é capaz de expressá-lo por meio de atos e de palavras. Chamamos isso de hitbonenut. Essa é uma forma de meditação. Na tradição chas-sídica, pode-se até usar música, que chamamos de nigun, como foco para uma atividade de meditação e pode-se praticar um determinado nigun por uma hora ou mais. Cada nigun tem seu objetivo específico, alguns mudam o estado emocional, alguns abrem a mente antes do aprendizado. Há muita utilidade em termos de meditação. Mas eu não subscrevo a idéia de que a meditação é uma solução, sozinha, para os problemas das pessoas.

O que significa levar uma vida “wholistic”, termo em inglês que o Sr. usa?

Creio que a palavra em inglês “wholistic” tem uma conotação de totalidade e em proporção. Acho que são os dois elementos de algo “holístico”. Por exemplo, hoje falamos em medicina “holística”, e falamos não apenas em termos de simplesmente curar por meio de uma intervenção química, o que é muito comum na medicina ocidental, mas usar outros tipos de terapias, que usam outras visões de o que representa a manutenção da saúde. Eu acredito, por exemplo, em judaísmo “holístico”, o que significa que alguém não enfatiza apenas um aspecto de aprendizado ou apenas de prática. Falam de ser um “judeu cardíaco”, que se sente muito judeu, mas não faz muita coisa. Existe o “judeu cerebral”, que é alguém que lê montes de livros, mas nada mais. E há o “judeu culinário”, que come guefilte fish na noite de sexta-feira e acha que isso é suficiente para ser judeu. Nós acreditamos numa abordagem “holística”. Tudo tem o seu lugar e momento apropriados e sua própria personalidade. É muito difícil se generalizar. Em nossos ensinamentos, a alma de cada pessoa tem uma missão específica na vida. E por isso há a reencarnação, para descer e viver novamente. Uma pessoa, ao fazer uma boa ação para outra pessoa, pode alcançar todo o objetivo daquela reencarnação. Para outra pessoa, deixar de fazer algo, pode representar a destruição de toda a missão. Nenhum de nós pode julgar outra pessoa. O que devemos fazer é respeitar cada pessoa, sem levar em consideração o que ela aparenta ser e o que ela parece expressar. Todas as pessoas têm seu objetivo.

Como descobrir qual a missão de cada um?

É uma questão séria e difícil de responder. O que D´us faz é colocar ao nosso redor um conjunto de circunstâncias que perfeitamente combinam com o objetivo da missão daquela alma. E, portanto, as habilidades inatas de uma pessoa são também um indicador, um sinal. O lugar, o país, a cidade onde a pessoa é criada é outro sinal. As relações, as pessoas que D´us coloca em nossas vidas são outra pista. Não há portanto uma resposta exata à sua pergunta. Mas a missão do ser humano em sua vida é usar sabedoria, ser capaz de concluir, a partir desses vários fatores que mencionei, a resposta a essa pergunta: em última análise, é um caminho para a realização dessa pessoa. 

O Sr. usa várias vezes o seguinte ensinamento: “nossa capacidade para espalhar luz, sustentam nossos mentores chassídicos, é muito mais poderosa do que a mais intensa escuridão”. Poderia comentá-lo?

É um ensinamento bastante conhecido. Um pouco de luz afasta um monte de escuridão. Eu acredito intensamente que, na essência, os seres humanos possuem disposições positivas. E são essas virtudes que todos procuram expressar durante a vida. Quando uma pessoa é ferida, especialmente as que são mais jovens, no seu subconsciente ficam desapontadas com as pessoas, com a vida. Elas cobrem essas luzes e parecem expressar escuridão. E o objetivo que cada um de nós tem é de ser alguém que acenda luzes. Isso significa que em todas as nossas relações, em todos os nossos encontros, devemos manter uma conscientização de que o objetivo desse encontro é que possa permitir que a luz da outra pessoa brilhe, que ela traga o lado bom, que ela traga as características positivas, especialmente quando falamos de casamento. O marido e a esposa às vezes se esquecem que todo o objetivo do casamento é que um se torne um professor do outro e que cada um tem a missão de tirar o que há de melhor no outro. Em minha prática de aconselhamento, infelizmente é freqüente a situação oposta. Esse é um desafio que eu tenho. E que todos têm. Na essência, todos buscam expressar suas virtudes positivas.

O Sr. também sustenta que o comportamento anti-social vem da falta de auto-estima. Como se dá esse fenômeno?

Esse fenômeno está ligado à natureza básica do ser humano. O ser humano busca, em sua vida, ter importância; quer sentir que sua vida tem um significado. Quando então as circunstâncias da vida buscam afastar a importância da vida, isso ofende os mais profundos esforços da pessoa. Quando uma criança é criticada pelos pais ou professores com freqüência, ela começa a questionar sua importância, ela vai ter de compensar isso de alguma forma. E a compensação para a falta de importância é uma vida com ira, executando atos negativos em busca de um reconhecimento. E como isso vem de uma postura negativa, da falta de importância, os atos de reconhecimento são aqueles que pedem para a sociedade olhar para você. E a melhor maneira de consegui-lo é ferindo a sociedade. Quebrando uma janela, fazendo pichações e até coisas piores. Se um indivíduo tem a sensação de sua relevância pessoal, então ele não precisa da atenção e do reconhecimento das outras pessoas. O reconhecimento vem de dentro dele. E não ocorre, portanto, essa busca infantil para chamar atenção, que em última análise é a essência de muitos crimes. Escolas e lares são as arenas primordiais onde a auto-estima pode ser alimentada. E são exatamente as arenas onde hoje isso não ocorre. Há a desestruturação de famílias. E em salas de aula, a educação é definida apenas como quanta informação pode ser transmitida o mais rapidamente possível, de olho nos exames. Isso não é educação. Educação é instilar na criança um reconhecimento de suas qualidades. E o professor tem de ser um catalisador social que cria na classe um cenário sociológico no qual a criança faz descobertas sobre si mesma. E é por isso que acho que nosso sistema educacional está infelizmente produzindo técnicos, em vez de seres humanos bem ajustados. 

Como foi seu encontro com o Dalai Lama, líder espiritual budista?

Foi muito interessante. Eu não fui à Índia, ele veio à Austrália. Não planejava encontrar-me com ele. Mas foi o resultado de um curso que eu lecionava na universidade sobre comparação entre ensinamentos judaicos e orientais. Notei que havia dois monges budistas na turma. E quando o Dalai Lama visitava a Austrália, recebi um telefonema do seu escritório, sobre a possibilidade de nos encontrarmos. O encontro foi às 4 horas da madrugada, ficamos juntos por duas horas e meia. Ele estava muito interessado em saber como o povo judeu sobreviveu na diáspora por tanto tempo, ele estava muito interessado na vida familiar judaica, de como a família judaica é tão unida, e estava interessado nos ensinamentos espirituais judaicos. 

O Sr. tem um vídeo no qual compara a espiritualidade da Cabalá com conceitos orientais. O que o Senhor poderia nos contar sobre essa comparação?


Provavelmente seria mais importante entender por que deveria um rabino fazer tal comparação. A resposta é que há dezenas de milhares de judeus, talvez mais, estudando ou pertencendo a grupos orientais ou, mais especificamente, a grupos budistas. São muitas vezes judeus que procuram uma expressão espiritual, que buscam uma disciplina espiritual na vida e que estão ávidos por isso e não o encontram na comunidade judaica, no establishment, nas sinagogas. E por isso se afastam de nós. Eu tenho admiração por seus motivos, sabendo que o judaísmo realmente tem uma dimensão espiritual muito profunda que infelizmente muitas vezes não é ensinada ou praticada. Busco então ensinar paralelos que essas pessoas encontram na tradição oriental, demonstrando que eles podem ser encontrados na tradição judaica, também. O objetivo do curso comparativo é demonstrar que há espiritualidade nos ensinamentos judaicos e que curiosamente muitos dos ensinamentos do Oriente são na realidade derivados de ensinamentos nossos, que remontam aos tempos de Abrahão.

Como o Sr. avalia o cenário internacional em que vivemos, sobretudo após os atentados de 11 de setembro de 2001?

Quando o organismo humano tem um câncer, vejamos o que é esse fenômeno: o câncer são células comuns que passam a se multiplicar numa velocidade que causa destruição no organismo. Portanto, a maneira com a qual enfrentamos o câncer é tentando eliminar esse câncer, com radioterapia, quimiote-rapia, mecanismos para destruí-lo. Às vezes com sucesso, às vezes não. A melhor política para uma boa saúde, em geral, é o aspecto de prevenção e de manutenção, porque o organismo tem várias moléstias, todo o tempo. E conta com um sistema imunológico que nos mantém intactos. Medidas preventivas ajudam a fortalecer a imunidade. O mesmo ocorre no mundo de hoje. Em outras palavras, há manifestações de doenças orgânicas na nossa sociedade. Temos o crescimento de algumas formas de câncer em nossa sociedade. Pessoas que em outra situação seriam bons seres humanos atuam como agentes radicais em nosso organismo, provocando feridas e lesões. A reação a isso inicialmente deve ser erradicar esse câncer. Usamos as armas como as leis, como quimiote-rapia e como radioterapia, para tentar curar a sociedade. Mas isso não vai funcionar no longo prazo. No longo prazo, o que o organismo do mundo precisa é prevenção e manutenção. E para isso voltamos a nossa discussão anterior. As pessoas têm que nascer e se desenvolver em condições que lhes permitam sentir que são contribuintes positivos para a vida, com relevância, com a sensação de missão espiritual. E quando as crianças são criadas nesse ambiente, elas então não vão agir como células de um câncer no organismo. Portanto, a solução em última análise repousa, novamente, em inspiração, quando as pessoas se influenciam de uma maneira positiva, por meio de modelos positivos, mostrando mais luz ao mundo. Nessas circunstâncias, podemos tentar superar o novo câncer, o terrorismo.