De 1990 a 1994, vivi em Moscou, onde a questão judaica se fazia presente com vigorosa freqüência e onde a comunidade atravessava um emocionante renascimento, depois de décadas da repressão soviética. Mas, nos meus contatos com chineses, muitas vezes era surpreendido pela indagação: 'Judeu, o que é judeu?'

De 1990 a 1994, vivi em Moscou, onde a questão judaica se fazia presente com vigorosa freqüência e onde a comunidade atravessava um emocionante renascimento, depois de décadas da repressão soviética. Mas, nos meus contatos com chineses, muitas vezes era surpreendido pela indagação: “Judeu, o que é judeu?”

O desconhecimento não aparecia quando me relacionava com habitantes mais cultos e mais educados do país mais populoso do planeta, abrigo para 1,3 bilhão de habitantes. No entanto, os chineses mais informados, ao saberem de minha origem, muitas vezes reagiam com a mesma observação, apoiando-senum estereótipo: “Vocês são muito inteligentes, são como Henry Kissinger”.

O nome do ex-secretário de Estado norte-americano freqüentemente saía de bocas chinesas com muitos pecadilhos de pronúncia, com a letra “l” se infiltrando no lugar do “r” e produzindo um estranho nome como “Enly”. Mas, sotaques à parte, não tardei a entender a associação com Kissinger. 

O estrategista norte-americano foi o mago responsável pela aproximação de Washington com Pequim nos anos 70, num golpe magistral de geopolítica que ajudou, durante a Guerra Fria, a aumentar pressão sobre a União Soviética e a tirar a China do seu isolamento diplomático. Henry Kissinger, portanto, passou a ser festejado pela propaganda oficial do Partido Comunista da China, e suas biografias destacavam o fato de ser judeu (“youtairen”, em chinês). 

Também era majoritariamente norte-americana, com empresários e estudantes, a comunidade judaica de Pequim, onde morei. Não havia sinagoga ou rabino na capital chinesa, mas isso não representava a impossibilidade de realizar, por exemplo, as cerimônias de Shabat. A iniciativa comunitária alugava – e pelo que soube recentemente, ainda aluga – salão de festas num prédio chamado Capital Mansion. Lá, também se realizavam festividades como Purim, Pessach ou Chanuká.

Além da presença avassaladora dos norte-americanos, havia israelenses e europeus, entre os quais os franceses despontavam como maioria. Tinha gente até de Luxemburgo, mas uma das presenças mais exóticas era a do jornalista brasileiro. “Judeu brasileiro? É a primeira vez que vejo um”. Essa correspondia a uma das saudações mais freqüentes que eu recebia no hospitaleiro ambiente da comunidade judaica pequinesa.

Em uma de minhas recorrentes viagens à trepidante Xangai, um dos corações econômicos da China, resolvi buscar eventuais vestígios da antiga presença judaica na cidade. Rumei ao bairro de Hongkou, onde houve um gueto judaico e, no parque local, encontrei então somente uma placa com o seguinte texto: “Área designada para refugiados apátridas – De 1937 a 1941 milhares de judeus vieram a Xangai, fugindo da perseguição nazista. As autoridades da ocupação japonesa os consideravam ‘refugiados apátridas’ e estabeleceram esta área delimitada para restringir seu local de residência e de negócios”. Os dizeres estavam gravados em chinês, inglês e hebraico. 

Auxiliado por uma tradutora chinesa, tentei conversar com alguns usuários do parque, em especial os mais velhos. Perguntava se eles guardavam lembrança da presença judaica em Xangai, que praticamente se evaporou com o advento da Revolução Comunista, em 1949. Não contei com a sorte de encontrar alguém que tivesse convivido com os judeus xangaienses. Um idoso, respondendo à minha indagação, abriu um sorriso e disse ter vivido no interior da China em sua juventude, sem conhecer judeus. Mas mostrou-se desejoso de manter o diálogo e me perguntou: “O senhor é judeu como o Henry Kissinger?”

Jaime Spitzcovsky é diretor da PrimaPagina, produtora de conteúdo jornalístico e integrante do Grupo de Análise de Conjuntura Internacional da USP. Foi correspondente da Folha de S. Paulo em Moscou e em Pequim.