As relações entre Israel e Rússia enfrentam, desde setembro, seu maior desafio nos tempos da aproximação capitaneada, há alguns anos, por Binyamin Netanyahu e Vladimir Putin. Apesar de críticas de Jerusalém e Washington, Moscou entregou a Damasco um sofisticado sistema de mísseis antiaéreos, após a derrubada de um avião russo por disparos feitos a partir de base síria. O novo armamento, chamado de S-300, deverá dificultar ações israelenses contra inimigos entrincheirados em solo sírio.

No dia 17 de setembro, uma aeronave russa, modelo Iliushin-20, com 15 militares numa missão de reconhecimento, foi abatida perto do porto sírio de Latakia por míssil disparado pelo sistema de defesa do regime de Bashar Al Assad. Todos os passageiros morreram.

Disparos das forças sírias buscavam atingir quatro caças de Israel, que bombardearam um armazém com armas destinadas ao grupo libanês Hezbolá e a outras milícias financiadas pelo Irã. Nos últimos anos, foram registrados centenas de bombardeios israelenses contra alvos iranianos em território controlado pelo ditador Bashar Al Assad. O primeiro-ministro Binyamin Netanyahu já deixou claro a estratégia de impedir que o regime de Teerã enraíze presença militar na Síria.

Rússia e Irã intervieram na guerra da Síria em 2015, com o objetivo de impedir a queda de seu aliado, Bashar Al Assad. Até aquele momento, o regime sírio colecionava sucessivas derrotas nos conflitos iniciados em 2011, enfrentando diversos grupos rebeldes sunitas, alguns deles apoiados pelos EUA e Arábia Saudita.

A ditadura de Al Assad, controlada pela minoria alauíta (aliada dos xiitas), enfrenta também terroristas do Estado Islâmico e de grupos ligados à Al Qaeda. Diante da iminência da queda do aliado, Putin decidiu intervir na Síria, interessado ainda em impedir a consolidação de bases do terror numa região relativamente próxima ao sul da Rússia. O Kremlin também vislumbrou na ação militar a valiosa oportunidade de demonstrar força e prestígio perdidos desde o fim da Guerra Fria, há cerca de 30 anos.

A partir de setembro de 2015, aviões russos passaram a controlar boa parte do espaço aéreo sírio. O Irã enviou assessores militares e milicianos, por meio de grupos xiitas como o libanês Hezbolá. A combinação russo-iraniana mudou o curso da guerra na Síria, com a derrota dos rebeldes e a sobrevivência do regime de Bashar Al Assad.

Para Putin, a vitória na Síria não significou apenas a permanência no poder de um tradicional cliente de armas, relacionamento alimentado desde os tempos de Hafez Al Assad, que morreu em 2000 e pai do atual ditador. O Kremlin, com a força de sua intervenção iniciada em 2015, transformou-se no principal personagem a decidir os contornos da realidade política e militar de Damasco.

Desde o final da União Soviética, Moscou não contava com tanta influência em uma crise internacional. Vladimir Putin certamente utiliza a realidade síria como fator de fortalecimento político nos cenários doméstico e internacional.

Israel exemplifica a revitalização da diplomacia de Moscou, em especial no Oriente Médio. Binyamin Netanyahu, interessado em impedir o enraizamento do Irã na Síria, passou a investir no diálogo com Vladimir Putin, a fim de ter sinal verde para implementar sua estratégia de defesa.

O governo israelense deixou claro a Moscou não tolerar a transferência de armas iranianas para o Hezbolá. Passou, na Síria, a bombardear, de forma cirúrgica, comboios com carregamentos bélicos e instalações destinadas a fortalecer a presença de Teerã e de seus aliados em território sírio.

Para os bombardeios, Israel precisa contar com compreensão de Moscou, responsável pelo controle de boa parte do espaço aéreo sírio. Netanyahu investiu na aproximação diplomática com Putin e obteve, do Kremlin, sinal verde para a estratégia. E, a fim de evitar choques entre aviões israelenses e russos, foi instalada uma “hotline” entre militares dos dois países, para que Israel avise, com antecedência, sobre seus ataques.

Putin, portanto, equilibra-se entre os compromissos assumidos com Netanyahu e a aliança com o regime de Teerã, com quem mantém laços políticos, econômicos e militares. O presidente russo cultiva laços com Israel de olho em trocas tecnológicas e também apostando que pode usar canais israelenses para ajudar a dialogar com os EUA, num momento de deterioração das relações entre Washington e Moscou.

Equilibrar-se entre as demandas de Israel e Irã permite a Putin despontar como pivô a decidir rumos da disputa entre arqui-inimigos e a desenhar contornos atuais do Oriente Médio, numa flagrante demonstração de poder. Importante lembrar que os governos Obama e Trump, por diferentes abordagens ideológicas, optaram por participação limitada no cenário sírio.

Nas frequentes conversas com Putin, Netanyahu reitera a demanda de retirada total do Irã e seus aliados do território sírio. Moscou não acata a exigência na totalidade, mas comprometeu-se a limitar a presença iraniana a cerca de 80 quilômetros da fronteira da Síria com Israel.

No complexo tabuleiro geopolítico e militar da Síria, Israel aposta na diplomacia com a Rússia e nos bombardeios contra alvos iranianos para impedir o fortalecimento de Teerã em mais um país fronteiriço, lembrando que o Hezbolá, principal força militar e política do Líbano, é movido a controle remoto pelo Irã.

No episódio de 17 de setembro, quando o avião russo de reconhecimento foi abatido por fogo sírio, o Ministério da Defesa da Rússia de imediato responsabilizou Israel, argumentando que um dos caças israelenses “se havia escondido” atrás da aeronave enviada por Moscou. Argumentou ainda que seus militares não haviam sido notificados do bombardeio com suficiente antecedência.

O governo Netanyahu rejeitou a acusação e apresentou evidências de que seus caças, no momento do disparo da defesa antiaérea síria, já estavam em espaço aéreo israelense. Sobre a operação em Latakia, afirmou ainda ter avisado os russos com 12 minutos de antecedência.

Putin, para diminuir a temperatura na crise diplomática, descreveu o episódio como “um encadeamento de circunstâncias acidentais e trágicas”. No entanto, quando se imaginava o capítulo como encerrado, o Kremlin anunciou a entrega, a Damasco, do sistema de defesa antiaéreo S-300, que moderniza e eleva condições militares da ditadura síria.

Havia mais de cinco anos que o regime de Bashar Al Assad reivindicava a entrega do S-300. Damasco aproveitou o episódio de 17 de setembro para intensificar a pressão pela obtenção do sistema responsável por aumentar o alcance de sua defesa antiaérea. Putin, ao final, calculou que a entrega seria uma forma de aplacar pressão e de manter a política de buscar equilíbrio entre Israel e Irã.

Na segunda quinzena de setembro, Netanyahu e Putin conversaram ao telefone pelo menos três vezes. De Washington também veio pressão. O secretário de Estado Mike Pompeo descreveu a entrega do S-300 como “uma séria escalada”.

Em Jerusalém, Netanyahu recebeu, no começo de outubro, a visita de Maxim Akimov, vice premiê russo. As incursões aéreas na Síria vão continuar, pois correspondem a “legítima autodefesa, já que o Irã e seus aliados afirmam sua intenção de nos destruir”, declarou o primeiro-ministro israelense. E, acrescentou Netanyahu, as diferenças atuais com Moscou “serão resolvidas”.

Especialistas apontam a capacidade israelense de superar o sistema antiaéreo S-300. As operações, no entanto, deverão ficar mais complexas. E Israel, certamente, manterá a opção de se esforçar para evitar que o Irã se fortaleça no território da vizinha Síria.

Jaime Spitzcovsky foi editor internacional e correspondente da Folha de S. Paulo em Moscou e em Pequim