Corria o ano de 1941. As tropas de Adolf Hitler se lançaram contra o território soviético e, na marcha rumo a Moscou, encontraram populações judaicas condenadas à morte pela máquina nazista de extermínio.

Icchak Manski, judeu de 17 anos, morava perto de Vilna, metrópole do Báltico, e, aprisionado num gueto pelo inimigo, decidiu fugir para a floresta e lutar. Passou quatro anos no combate aos horrores da guerra, à constante escassez de alimentos e aos implacáveis invernos. Conviveu ainda com os irmãos Bielski e sua comunidade, mais de 1.200 pessoas, fugitivos da barbárie do nazismo que encontraram refúgio nos bosques da Bielorússia.

Icchak Manski sobreviveu ao Holocausto e vive em São Paulo há mais de 60 anos, onde mantém alguns hábitos antigos, como a inquietude, apesar da idade avançada e das dificuldades para locomoção, e como o elo afetivo com a sinagoga que freqüentou nos últimos anos. A seus amigos de reza, às vezes mencionava a história dos irmãos Bielski. Rápido e decidido nas ações, Manski costuma ser econômico nos relatos sobre os anos do sofrimento nas florestas européias. Recentemente, voltou a ser indagado com mais freqüência sobre os anos dramáticos da 2ª Guerra Mundial. E concedeu entrevista ao Instituto Morashá de Cultura.

A biografia de Manski se encontra com a impressionante história dos irmãos Bielski e dos "judeus da floresta", que foi parar em páginas de livros e nas telas de cinema, com o lançamento, no final do ano passado, de "Defiance", exibido no Brasil com o nome "Um Ato de Liberdade". Sua avant-première foi promovida pelo Instituto Morashá, em maio deste ano, no auditório da Escola Beit Yaacov em São Paulo. O ex-partisan, que nasceu em 1922 e chegou ao Brasil em 1947, assistiu ao filme estrelado por Daniel Craig, o atual "James Bond", no papel de Tuvia Bielski, o líder da comunidade.

"O filme eu vi, mas não foi bem assim", comentou, quase sempre lacônico, Icchak Manski. O sobrevivente da guerra, que às vezes entremeia o seu discurso em português com expressões em iídiche, refere-se ao clima de tensão que havia na comunidade refugiada na floresta. "A falta de comida era o maior problema, não tínhamos como comprar e, se plantássemos, levaríamos de cinco a seis meses para colher e cozinhar", recordou Manski.

Os irmãos Bielski, sob a liderança de Tuvia, levaram a comunidade para rincões remotos da mata, onde conseguiram abrigo da agressão nazista e onde puderam instalar, por exemplo, sinagoga, sapataria e barbearia. Os "judeus da floresta" chegaram a contabilizar 1.230 pessoas, em sua ampla maioria idosos, mulheres e crianças. As atividades armadas ficaram por conta de apenas cerca de 150 integrantes do grupo.

Icchak Manski preferiu a ofensiva. Em vez de permanecer com os "judeus da floresta", optou pela aproximação com os soviéticos, a fim de se engajar mais diretamente nos combates contra o inimigo nazista. Nos cerca de quatro anos de ações militares, o jovem judeu nunca se desgrudou de uma companhia: a metralhadora. A arma havia sido montada por ele próprio, a partir de peças soviéticas roubadas metodicamente de um escritório dos nazistas, ao longo de oito meses. Em 1941, os nazistas obrigaram Icchak a cuidar das dependências de um comitê montado para tratar das questões judaicas na região de Lida, a cidade natal da família Manski, e onde o pai trabalhava como açougueiro. "Casher, é claro", observou Ichaak, ao relatar sua história. Nas memórias da família, destaca-se também a figura materna, Sheine. "Adorava ouvir meu pai contar uma história sobre sua mãe", narrou Sonia, sua filha, arquiteta, nascida em São Paulo, e autora do livro Sem-Cerimônia, em que alguns trechos se dedicam a resgatar, com um texto irretocável, a história familiar.

Escreveu Sônia sobre a avó: "De acordo com meu pai, ela era uma 'justa' (que corresponde à linda palavra em hebraico tzadiká) pelos atos caridosos que praticava. Todas as sextas-feiras, não satisfeita de fazer pão apenas para sua família, assava fornadas sobressalentes para depois distribuir aos judeus carentes da cidade. O detalhe mais simpático era a ajuda que pedia aos filhos. Um de cada lado, carregavam uma alça da sacola. Para mim, a imagem dessa mulher a distribuir pães era a personificação da generosidade".

Além da religião, o sionismo também ocupava espaço importante na vida de Icchak Manski, seguidor das idéias de Zeev Jabotinsky, patrono das idéias de grupos sionistas direitistas. O jovem judeu de Lida não se importava em montar a charrete para ouvir palestras de seu guru político, por exemplo, em Vilna. "Havia o sonho de ir para Israel, o idealismo era muito grande", lembrou Icchak Manski. Sobre a situação de sua comunidade naquele começo de século 20, na Europa oriental, ele foi taxativo: "Havia muito anti-semitismo".

O auge da perseguição chegou com os nazistas, em 1941. Em seu livro, a filha Sonia alinhou memórias do pai sobre aquele momento trágico: "(...) Matanças, simplesmente. Como essa, num dia de maio, em que ordenaram a todos os judeus da cidade que se apresentassem em um pátio e fossem andando até um local em que existiam grandes valas recém-cavadas. Lá foram aleatoriamente divididos em duas filas. Quando meu pai viu que seu irmão tinha sido encaminhado para a fila que estava mais próxima desses buracos, imediatamente o arrastou para junto de si e do restante da família. Sua intuição estava certa. Enquanto sua família retornou completa para o gueto, não se pode dizer o mesmo dos integrantes da outra fila".

Impulsionado por sua inquietude característica, Ichaak Manski decidiu fugir do gueto. Havia conseguido furtar as valiosas peças para montar duas metralhadoras (uma delas, a que o acompanhou durante toda a guerra) e algumas espingardas. "Decidi fugir porque preferia morrer lutando. Por que eu haveria de me entregar, para eles me matarem?", questiona Icchak.

No dia da ação, o jovem avisou o pai de seus planos. Havia um grupo de 11 pessoas que pretendia escapar rumo à floresta, com munição e armas, a fim de mergulhar na atividade guerrilheira. Icchak, na narrativa registrada em livro pela filha, recordou que seu pai não acreditou que o filho desapareceria e saiu em busca dele, após uma longa espera por seu retorno. Enquanto o pai chamava, Icchak se escondeu atrás de uma árvore e ignorou os apelos paternos. "Ele iria me segurar e eu não queria. Ele não ia me deixar ir", explicou depois Icchak.

O futuro partisan não voltaria a ver os pais e a irmã mais nova. Estes foram assassinados no campo de concentração de Majdanek. Antes, Ichaak tentou resgatá-los. Mandou, para chamá-los, um emissário não judeu, a quem havia prometido efetuar um pagamento depois da guerra. O pai optou por permanecer no gueto porque sua mulher estava enferma. O irmão Moishe, meses depois, conseguiu escapar e também encontrou refúgio numa floresta da Bielorrússia. Mais tarde, com o final da guerra, acompanharia Icchak na vinda ao longínqüo Brasil.

A guerra deixou seqüelas indeléveis para Icchak Manski. A companhia inseparável da metralhadora, de quem não se afastava nem para dormir, deixou um ombro mais "curto", conseqüência do peso, entre 10 e 15 quilos, da arma. O partisan foi baleado três vezes: uma de raspão na cabeça e na orelha; outra, no ombro, e também na perna. Os projéteis inimigos se somavam, no inverno, à neve que se abatia sobre a floresta.

Para enfrentar o frio, o arsenal também era minguado. Bunkers e trincheiras improvisadas, cobertas com palha ou terra, podiam servir de abrigo. De um soldado alemão morto, Icchak Manski pegou sapatos para substituir os seus, que já estavam rasgados. Tomou ainda uma pistola guardada até o final da guerra. "Era melhor que o revólver russo", comparou.

Em 12 de julho de 1944, o encontro com o Exército Vermelho, que acelerava sua marcha rumo a Berlim. Icchak Manski pôde, então, voltar a sua cidade natal, onde reencontrou Moishe, o irmão. Mais tarde, visitou o campo de concentração de Majdanek, palco do assassinato de seu pai e da irmã. "Quando passei por Lublin, estive em Majdanek", relatou o ex-partisan à filha Sonia. "Tinha um armazém enorme de sapatos. Vi dois armazéns de roupas. E montanhas de ossos queimados. Vi os carrinhos que entravam nos fornos levando os corpos para serem queimados. Vi a cerca de arame eletrificado. Esse campo ficava a uns 10 km de Lublin".

Depois da guerra, Icchak Manski perambulou pela Europa, acabou na Itália e, com a ajuda da Joint, organização humanitária judaica, embarcou no porto de Gênova, no Fillipo Panamá, para desembarcar em paragens tropicais brasileiras. Aqui, transformou-se em empresário, casou-se e teve quatro filhas. Hoje, aposentado, transpira a mesma inquietude que o acompanhou ao longo da vida: afirma estar incomodado com a rotina permeada de poucos afazeres. Quer novos desafios. "Não gosto de ficar parado", sentencia, do alto dos seus mais de 86 anos de vida.

Depois da entrevista, fui levá-lo de volta para casa. Quando lhe contei que havia morado quatro anos em Moscou, como correspondente da Folha de S. Paulo, Ichaak Manski logo engatou um diálogo em russo. Lembrava-se do idioma usado na comunicação com os militares soviéticos, aliados na luta contra o nazismo.

Em certo momento, num intervalo de nosso diálogo, Icchak Manski cortou o silêncio ao começar a cantarolar uma música em russo. "Por que a nossa vida é assim?", perguntava um dos versos. Era, segundo ele, uma das canções mais ouvidas pelos partisans nas trincheiras cavadas nas florestas da Bielorússia.

O Jornalista Jaime Spitzcovsky é editor do site www.primapagina.com.br. Foi editor internacional e correspondente em Moscou e em Pequim