Há 60 anos, quando as tropas aliadas liberaram os campos de concentração, depararam-se com o até então inimaginável, cenas tão cruéis e brutais que transformariam para sempre a definição do mal. O que viram nos campos de Büchenwald, Dachau e Bergen-Belsen foi muito além das piores conjeturas sobre o destino dos judeus da Europa. Mal sabiam, então, que ainda haveriam de se deparar com uma realidade muito mais dramática: aqueles nem eram, ainda, os fatídicos campos de extermínio.

Data: 5 de abril de 1945 - dia em que soldados americanos entraram pela primeira vez em um campo de concentração nazista. Após seis anos de guerra e 12 desde que Hitler tomou o poder na Alemanha, um destacamento do exército americano, em seu avanço para reconquistar a Europa, depara-se acidentalmente diante do portão do campo de trabalho de Ohrdruf, um dos menores sub-campos de Büchenwald.

Ao adentrar pelo campo, os soldados, embora calejados pelos horrores da guerra, ficam estupefatos e enraivecidos com o que vêem diante de seus olhos, imagens que suas mentes são incapazes de absorver. Ao escrever uma reportagem sobre a libertação de um campo de concentração, um jornalista americano prefaciou a matéria com as palavras: "É meu dever descrever o inconcebível". Relata, ainda, o escritor Meyer Levin sobre aquele fatídico dia: "Algo sabíamos a respeito; o mundo ouvira relatos vagos... mas, até aquele momento, jamais víramos um campo de concentração nazista. Não podíamos imaginar o que estávamos por ver, naquela manhã. Foi como se, de repente, tivéssemos penetrado no âmago de um coração enegrecido, no interior de um coração totalmente depravado".

Daquele dia até o 8 de maio de 1945, dia da rendição incondicional da Alemanha, outros campos foram libertados por tropas norte-americanas e britânicas. Os americanos fizeram cair Buchenwald, em 11 de abril; Dachau, em 29; Mauthausen, em 5 de maio, para citar apenas alguns. Os britânicos abriram os portões de Bergen-Belsen, no dia 14 de abril. Os campos libertados pelos aliados ocidentais não eram propriamente de extermínio, mas de concentração. Milhares de seres humanos eram lá mantidos, enquanto se tomavam as providências para o seu "descarte final", ou, em casos raros, para algum tipo de trabalho degradante.

Em cada um desses campos, os aliados encontraram provas da crueldade nazista, provas daquilo que não se imagina um ser humano seja capaz de fazer a outro. Ruía por terra, vergonhosamente, a ilusão de que a modernidade e a cultura ocidental, com seu avanço tecnológico-científico, bem como filosófico, tinham criado, também, sociedades moralmente superiores.

Ainda que outros povos também tenham sido vítima da máquina mortífera nazista e que outros seres humanos, ciganos, eslavos, deficientes físicos ou homossexuais também tenham sido considerados "inferiores" e, portanto, escravizados e mortos pela doutrina nazista, indubitavelmente foi contra os judeus que a Alemanha de Hitler desencadeou uma guerra paralela. Para Hitler e seus comparsas, essa guerra era tão ou mais importante que o embate militar contra os aliados. Como disse o escritor e Prêmio Nobel, Elie Wiesel, o povo judeu foi caçado e assassinado pelos nazistas, onde quer que se encontrasse, pela única e simples razão de ser judeu. E isto não ocorreu contra nenhum outro povo. Foi uma guerra sem fronteiras, sem piedade, sem trégua. A matança continuou, implacável, até o dia em que a Alemanha se rendeu. Seis milhões de judeus foram brutalmente assassinados pelos nazistas durante a Shoá. Os que sobreviveram ficaram marcados física, psicológica e mentalmente para o resto de seus dias.

O campo nazista

O campo foi a instituição mais reveladora da essência da natureza da Alemanha nazista. Foi onde sua ideologia no tocante aos judeus foi posta em prática sem o menor pudor, sem o menor constrangimento moral. Eles eram forçados a viver em um mundo à margem, onde lhes eram negados quaisquer resquícios de humanidade, quaisquer direitos. Degradação, maus-tratos, sede, fome e frio eram uma constante. Nesse "pseudo-mundo", sobrava-lhes apenas dor e medo. Prisioneiros não-judeus testemunharam o tratamento "diferenciado" que os alemães reservavam aos judeus: brutalidade e crueldade "cientificamente" estruturadas e organizadas. Nos campos nazistas - quer fossem de concentração, trabalhos forçados ou extermínio - os judeus eram sistematicamente desumanizados, torturados, mortos.

Ao contrário do que se acredita, muitos campos foram construídos logo após Hitler assumir o poder, na Alemanha, e passaram a operar bem antes do início da II Guerra Mundial. Estima-se que durante o Terceiro Reich tenham sido criados 1.643 campos de concentração, além dos sub-campos satélites e dos 900 de trabalhos forçados. A partir de 1941, após a decisão da liderança nazista de eliminar o povo judeu por meio da "Solução Final", seis campos - Chelmno, Auschwitz, Birkenau, Treblinka, Sobibor, Maidanek e Belzec - foram deliberadamente planejados para o extermínio judeu, em massa. Construídos em território polonês, nas proximidades de linhas ferroviárias para "facilitar" o transporte dos contingentes vindos de todos os cantos da Europa, estes campos eram verdadeiras "fábricas de morte" nas quais todo o processo - da chegada à morte - não levava mais do que duas horas. O campo de Auschwitz-Birkenau, no pico de suas atividades, foi responsável por 12 mil mortes por dia. Estima-se que um milhão e meio de judeus foram assassinados em Auschwitz.

Em certo sentido, o termo "campo de extermínio" como uma categoria "especial" é enganoso. Na realidade, no caso dos judeus, todos os campos eram de extermínio, todos perseguiam o mesmo objetivo - acabar com todo um povo. Em cada um deles, diariamente morria um número muito elevado de judeus - a taxa de mortalidade judaica era infinitamente superior àquelas dos prisioneiros não-judeus. Os motivos eram os mais diversos: inanição, doenças, "experiências médicas", tortura, exaustão provocada por trabalhos forçados. Por infringir uma "regra" ou por mera diversão dos guardas ou dos kapos, os judeus recebiam surras terríveis ou um tiro fatal.

A inverossimilhança da Shoá

Tamanho era o crime e sua monstruosidade que, até o final da guerra, no mundo livre poucos acreditavam - ou melhor, queriam ou conseguiam crer - nas informações, relatórios e testemunhos sobre a macabra "Solução Final". Na introdução de seu livro, Os afogados e os sobreviventes, Primo Levi lembra a incredulidade geral diante das primeiras notícias, já em meados de 1942, sobre os campos nazistas.

A partir dessa data, os governos aliados passaram a receber informações e relatórios sobre os planos nazistas para "solucionar" o que chamavam de "Problema Judaico". Apesar de os meios de comunicação terem tido acesso a grande parte desses informes, o assunto não foi tema central de qualquer reportagem ou editorial da imprensa norte-americana ou britânica. Até os mais prestigiados jornais silenciaram.

A incredulidade persistiu mesmo depois de meados de 1944, quando as tropas soviéticas, em seu avanço pela Europa Oriental, libertaram Maidanek, campo de extermínio próximo a Lublin, Polônia. Apesar das tentativas nazistas de incendiar o local para encobrir seus crimes, os soldados russos encontraram 600 detentos ainda vivos e restos das câmaras de gás e pilhas de sapatos pertencentes às vítimas. Uma comissão de investigação soviético-polonesa foi enviada para verificar o que lá acontecera. Os resultados foram divulgados dois meses mais tarde. Alexander Werth, correspondente da BBC que acompanhava as tropas soviéticas, encaminhou uma matéria sobre o campo de Maidanek, mas seu editor não a veiculou. Considerou-a uma "proeza da propaganda russa".

Em agosto de 1944, tropas soviéticas entraram em Belzec, a seguir em Sobibor e, então, em Treblinka - todos os três já abandonados pelos nazistas, em fuga. As evidências dos crimes estavam por toda parte. Em setembro, repórteres norte-americanos foram convidados pelos soviéticos para visitar Maidanek e fizeram reportagens mostrando imagens de quase 800 mil sapatos encontrados. Contudo, ainda assim, o mundo hesitava em acreditar. Quando Auschwitz foi libertado pelo Exército Vermelho em 27 de janeiro de 1945, as autoridades soviéticas ocultaram o fato. Talvez, entre outros motivos para assim agir, o cansaço de serem acusados de sensacionalismo e propaganda enganosa. A rejeição das notícias diante de sua "absurdidade" fora prevista pelos próprios nazistas. Apesar de preocupados em eliminar as provas de seus atos, confiavam em sua impunidade. Sabiam que podiam contar com a incredulidade do público diante de barbaridades em tamanha escala. Primo Levi lembra de um fato verídico narrado pelo caçador de nazistas, Simon Wiesenthal. Um SS disse a um de seus prisioneiros: "Seja qual for o fim desta guerra, ganhamos a guerra contra vocês! Não restará ninguém para dar testemunho; mas ainda que alguém escape, o mundo não lhe dará crédito... Ainda que fiquem algumas provas e sobreviva alguém, as pessoas dirão que é tudo tão monstruoso que não merece crédito. Dirão que é exagero, propaganda aliada e acreditarão em nós, que negaremos tudo. Ninguém acreditará em vocês...".

Mas após a entrada dos aliados em Ohrdruf, Buchenwald, Dachau e Bergen-Belsen, o mundo foi forçado a aceitar a idéia de que milhares de alemães tinham perpetrado crueldades desumanas contra judeus indefesos - homens, mulheres, crianças de colo e idosos. Ninguém fora poupado.

Os rastros da maldade

Assombrosos são os relatos de todos os que entraram nos campos de concentração. Não conseguiam acreditar que o ser humano pudesse ser degradado àquele ponto, submetido a tamanha dor e sofrimento. Um jornalista escreveu sobre Buchenwald, em abril: "Não é possível assimilar o que aconteceu, ainda que alguém tenha visto os lugares com seus próprios olhos".

Fotografias e filmes são ainda mais assombrosos; são imagens que permanecem para sempre gravadas na memória. Um soldado norte-americano filmou depósitos repletos de corpos nus, empilhados até uma altura de 10 metros. Foto-jornalistas profissionais, como Margaret Bourke-White, Lee Miller e Dave Scherman, deslocavam-se com as tropas e estavam presentes quando Buchenwald e Dachau foram libertados. As fotos tiradas na ocasião integram um dos mais completos acervos de imagens sobre esses eventos, compondo um documento histórico inacreditável. Deram ao público norte-americano uma visão do sofrimento humano que resultou da política racista do Terceiro Reich. As fotos de Miller apareceram na revista Vogue, sob o título "Acredite... ".

Igualmente reveladora foi a descoberta de fotografias amadoras tiradas pelos soldados alemães, em seu dia-a-dia: nos campos, escoltando para a morte colunas de judeus nus - homens, mulheres e crianças; posando ao lado de um homem enforcado ou apontando a arma na cabeça de um judeu de joelhos. As cenas de dor e as condições abjetas às quais os prisioneiros haviam sido submetidos se repetiram campo a campo. Em seus testemunhos, os libertadores falavam do odor, terrível e inesquecível, de morte e excremento que tomava conta de todos os campos; das pilhas de corpos nus; das covas com centenas, às vezes milhares de cadáveres apodrecendo; as pilhas de sapatos, óculos, cabelos humanos... Era uma visão do inferno.

Chocantes também eram as deploráveis condições físicas e psicológicas em que se encontravam os judeus sobreviventes. Era difícil para os libertadores distinguir os vivos entre os moribundos e os já falecidos. Os que ainda estavam vivos eram criaturas famintas, esqueletos humanos - muitos pesando 30 quilos - com a cabeça raspada, olhos fundos, doentes. Às vezes catatônicos, a maioria não conseguindo mover-se, outros nem entendendo que estavam sendo libertados. Centenas morreram nos braços de seus libertadores, milhares sucumbiram nos dias e nas semanas seguintes. Médicos aliados que os socorreram não entendiam como aqueles corpos e mentes tinham conseguido resistir tanto tempo.

Em suas memórias, o rabino militar norte-americano, Eli Bohnen, descreveu seus sentimentos no dia 29 de abril, quando tropas dos EUA libertaram o campo de concentração de Dachau: "Eu tinha a sensação de ter que pedir desculpas ao nosso cachorro pelo fato de pertencer à raça humana. Quanto mais adentrávamos o campo e víamos os esqueletos revestidos de pele e as instalações características do campo de extermínio, mais eu me sentia inferior ao cachorro, porque, como ser humano, pertencia à raça responsável por Dachau".

O mundo precisa saber

No dia 12 de abril, os generais George Patton, Omar Bradley e Dwight Eisenhower, do exército norte-americano, chegam a Ohrdruf. Eisenhower, Comandante-em-chefe das Forças Aliadas e futuro Presidente dos Estados Unidos, inspecionou todo o campo. Queria ser testemunha ocular.

Em sua mensagem a Washington sobre a visita, Eisenhower escreveu: "Após ver, com meus próprios olhos, posso declarar inequivocamente que tudo que foi dito ou escrito, até agora, não consegue descrever os horrores".

As impressões de Eisenhower podem ser lidas em carta ao General George C. Marshall, de 15 de abril de 1945: "O que vi, ultrapassa qualquer possibilidade de descrição... As evidências concretas e os testemunhos verbais da inanição, crueldade e bestialidade são esmagadores... Fiz a visita deliberadamente; assim tenho provas, em primeira-mão, sobre tudo isso, na eventualidade de que porventura no futuro surja a idéia de atribuir tais alegações a 'mera propaganda".

Foi o General Eisenhower que, chocado, tomou uma decisão histórica: suas tropas precisavam ver os crimes nazistas e o mundo precisava saber a verdade. Ordenou que todos os soldados fossem a Ohrdruf ou a outros campos para ver com seus próprios olhos o que os nazistas haviam feito. Conheceriam, assim, a causa pela qual lutaram. O segundo passo do General foi convidar membros do Congresso norte-americano e um grupo de jornalistas, liderados por Joseph Pullitzer, para ver in loco os crimes nazistas. O grupo foi à Alemanha e visitou Buchenwald, em 24 de abril.

Em seu livro Ike, o soldado: como eles o conheceram, "Ike the Soldier: As They Knew Him," Merle Miller cita o discurso de Eisenhower, após a visita: "Vocês viram apenas um campo, ontem. Há muitos outros. O tratamento selvagem que estas pessoas receberam nos campos de concentração alemães é quase inacreditável. Quero que vejam, com seus olhos, e sejam porta-vozes em nome dos Estados Unidos".

A tragédia da Shoá começava a ser documentada, mas anos se passariam até que o mundo soubesse de toda a verdade. Á medida que os fatos se tornaram conhecidos através de fotografias, reportagens e noticiários, o Holocausto foi-se tornando, para o mundo, a metáfora universal do "mal absoluto". As perdas judaicas durante a Shoá foram assustadoras: 6 milhões dentre os seus haviam sido assassinados pelos nazistas, dois em cada três judeus europeus. Para os que sobreviveram, não haviam ainda chegado ao fim as suas provações. Sua redenção não viria pelas mãos do mundo livre, como se acreditava no final da guerra - mas somente três anos mais tarde, com a criação do Estado de Israel.

Bibliografia

· Sachar,Abram L., The Redemption of the Unwanted, St. Martin's/ Marek, New York

· Berenbaum, Michael, The World Must Know, Little, Brown and Company

· http://www.ushmm.org/

· Dawidowicz, Lucy, The War Against the Jews-1933-1945, Bantam Books