Não obstante os persistentes esforços da Sociedade de Medicina Interna Alemã (SAMI) para evitar que as atrocidades médicas realizadas no Terceiro Reich se tornassem públicas, as aberrações médicas ocorridas nesse período acabaram por vir à tona, levando à reconsideração de títulos honoríficos concedidos a médicos que praticaram atrocidades durante o nazismo.

O legado da medicina nazista e o papel da Sociedade Alemã tem sido tema de discussões no âmbito médico nas últimas décadas.

O desenvolvimento da prática da Clínica Médica e sua história na transição do século 18 para o século 19 passam, inexoravelmente, pela Medicina Interna, termo que hoje se refere à Prática Clínica, porém com limites imprecisos em relação às demais práticas da Clínica Médica. A Medicina Interna engloba especialidades como Ortopedia, Cirurgia, Ginecologia e Pediatria. O termo foi inicialmente usado em 1882, em um encontro de Clínica Médica intitulado “Deutsche Gesellschaft für Innere Medizin”. Não demoraria muito para o termo Medicina Interna cruzar o Oceano Atlântico e chegar aos Estados Unidos. Sob a influência da Sociedade Alemã de Medicina Interna (SAMI), o conceito rapidamente se difundiu nos Estados Unidos, com a fundação do American College of Physicians, em 1927. Em paralelo à criação dessa entidade, foi fundada também uma das revistas médicas de maior prestígio dos dias atuais, a Annals of Internal Medicine, coordenada pelo American College of Physicians.

Em 1932 a SAMI realizou seu congresso, no qual foi eleito como presidente o Dr. Leopold Lichtwitz, um clínico respeitado, chefe do Departamento de Medicina Interna do Hospital Rudolf Virchow, em Berlim. À época, essa entidade médica já contava com a participação de proeminentes médicos de origem judaica que viviam na Alemanha.

Em 1933, enquanto Dr. Lichtwitz preparava o próximo congresso da SAMI, Adolf Hitler ascendeu ao poder. O Dr Alfred Schittenhelm, médico pró-Nazismo, pediu aos membros da SAMI que destituíssem o Dr. Lichtwitz. Argumentava que o novo congresso da SAMI, que seria inaugurado no dia 20 de abril de 1933, cairia no dia do aniversário do Führer, e não faria sentido que o judeu Lichtwitz, presidente do congresso, assinasse uma carta de congratulações a Hitler – cujo ódio aos judeus era bem conhecido. Todos os médicos assinaram a carta pedindo a renúncia de Lichtwitz, mesmo os que não tinham afinidade com o Partido Nazista e até os vários críticos do governo. Poucas semanas após sua saída forçada da SAMI, Lichtwitz e sua esposa deixaram a Alemanha rumo à Suíça. Em seguida, o casal foi para os Estados Unidos.

Com o auxílio de outros judeus alemães imigrantes, Lichtwitz assumiu a chefia do Departamento de Medicina Interna do Hospital Montefiore, em New York, e recebeu uma cátedra na Columbia University, onde passou a lecionar.

Escreveu o livro Pathology of Regulations and Functions, que obteve grande sucesso. No entanto, a Gestapo não poupou críticas à obra, acusando Lichtwitz de “menções desrespeitosas” à classe médica nazista. Ele faleceria em 16 de março de 1943, em New Rochelle, NY, sem ter notícias da sua família que ficara na Europa. Seus dois irmãos foram mortos durante o Holocausto.

Médicos judeus na Alemanha Nazista

Em 1933, cerca de 11% de todos os médicos alemães no exercício da profissão eram judeus. Milhares desses médicos judeus atendiam dezenas de milhares de pacientes alemães. Ainda que Hitler houvesse decidido excluir todos os judeus da vida alemã, o rompimento dos laços entre esses médicos e seu vasto número de pacientes poderia causar um descontentamento generalizado. Ele sabia, portanto, que teria que agir com maior cautela que em relação a outras profissões. Mas não seriam de forma alguma poupados. O primeiro passo que levaria à destruição dos judeus europeus foi a promulgação de novas leis para “limpar” a nação alemã da presença judaica, e resultaram na exclusão dos judeus de áreas importantes: a própria estrutura estatal (Lei do Serviço Civil), a saúde (Lei dos Médicos) e a estrutura social (a revogação das licenças dos advogados judeus).

Já em abril de 1933, uma legislação afetou drasticamente as assim chamadas “atividades judaicas”, que eram a Medicina e o Direito. E pouco a pouco o governo nazista foi implementando leis e decretos que subsequentemente limitaram o pagamento devido aos médicos judeus pelos fundos públicos dos seguros de saúde. O governo da cidade de Berlim proibiu advogados e notários judeus de exercerem suas profissões; Munique proibiu os médicos judeus de tratarem pacientes não-judeus; e a Secretaria do Interior da Bavária proibiu que os judeus estudassem Medicina. E assim por diante até a exclusão total de todos os judeus da área médica em particular. Essas leis receberam a corroboração de importante parte da sociedade médica - assim como da jurídica - da época, tendo ambas abandonado seus princípios éticos e morais para incorporar as regras do nacional-socialismo.

Ao assumir a presidência da SAMI, o Dr. Alfred Schittenhelm, acima citado, adotou uma postura nacionalista, nazista e o discurso abjeto de “higiene racial” na prática de Medicina Interna, fazendo jus a suas convicções: filiou-se, em maio de 1933, ao Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães, tornou-se membro da Liga Alemã de Médicos1 e da Liga de Palestrantes Nacional-Socialista Alemã (a NS-Dozentenbund) e do Schutzstaffel (SS, a Tropa de Proteção nazista), alcançando, em 1938, a patente de SS-Standartenführer.

Uma das primeiras medidas adotadas pela SAMI foi a exclusão dos médicos judeus. Quando Hitler assumiu o poder, a Sociedade contava com 1.200 membros, dos quais 230 foram expulsos e perseguidos por serem de origem judaica. Estima-se que 31 desses médicos foram executados durante o Holocausto ou cometeram suicídio. Cinquenta e cinco desses profissionais emigraram para os Estados Unidos.

O Dr. Hans Adolf Krebs foi um dos médicos judeus que conseguiu deixar a Alemanha. Mundialmente reconhecido pelo que é hoje chamado de Ciclo de Krebs, fase da respiração celular que ocorre na matriz mitocondrial das células eucariontes, ele recebeu, em 1953, o Prêmio Nobel de Medicina por seu trabalho, que hoje é estudado nas aulas de Bioquímica nas faculdades de medicina.

Com o crescimento dos regimes totalitários fascistoides e pró-nazistas, a Suíça passou a ser, por algum tempo, o lugar para onde muitos perseguidos conseguiram emigrar. Entre eles, o Dr. Julius Bauer, eminente endocrinologista austríaco, que lecionava em Viena e escreveu vários artigos sobre sua área de especialização, um deles publicado em um jornal médico suíço. Pouco após a publicação, o Reichsarztefuhrer, chefe da Liga Alemã de Médicos, passou a atacar o trabalho, conclamando a um boicote internacional de seu autor.

Envolvimento da SAMI em crimes de prática médica

Entre 1933 e 1945, todos os presidentes da SAMI eram filiados ao Partido Nacional Socialista. Após a derrota do Terceiro Reich, o congresso que realizaram em 1948 fez discreta menção à “politização” pró-Nazismo da instituição. No entanto, foram homenageados na ocasião muitos médicos que participaram da entidade durante o período do Terceiro Reich como foi o caso de Dr. Alfred Schittenhelm, como vimos acima, responsável por implementar diretrizes nazistas na Sociedade.

Em 1967, Arthur Jones, um estudante de Lichtwitz que presidiu o congresso da entidade naquele ano, convidou Joannes Juda Groen, professor da Universidade Hebraica de Jerusalém, para palestrar no evento. Na ocasião, este último discorreu sobre as atrocidades cometidas no período nazista, solicitando revisão histórica sobre o comportamento da SAMI nesse período. Infelizmente, várias tentativas de fazer essa revisão acabaram frustradas ou ficaram incompletas, pois sempre eram realizadas por pessoas ligadas à Sociedade. Só pesquisas realizadas por pessoas totalmente descomprometidas com a SAMI tiveram sucesso em desvendar parte da verdade sobre suas funestas atividades durante o Terceiro Reich.

O resultado dessas pesquisas foi promover a exposição a um público muito maior sobre as atrocidades da época nazista. Por exemplo, o renomado gastroenterologista de Yale, Prof. Howard Spiro, desencadeou, em 1984, um forte movimento contra o título do então Prêmio da Falk Foundation da Alemanha, que levava o nome Hans Eppinger, médico austríaco nazista (de origem judaica!), chamando a atenção para todas as ambiguidades e os aspectos morais de sua conduta.

No campo de Dachau, médicos da Luftwaffe, a Força Aérea Alemã, e da Instituição de Aviação Experimental alemã realizavam experiências usando os prisioneiros como cobaias. Hans Eppinger foi um dos médicos envolvidos. Seu macabro “estudo” baseava-se em desidratar as cobaias humanas. Noventa ciganos foram isolados em uma área restrita e proibidos de beber água potável, apenas ingerindo água salgada. O objetivo “científico” da “experiência” era descobrir quantos dias um marinheiro nazista poderia sobreviver em alto-mar consumindo apenas água salgada e determinar que sintomas severos experimentariam dentro de 6-12 dias. Após a 2ª Guerra, Hans Eppinger se suicidou um mês antes de se apresentar nos Julgamentos de Nuremberg. O Prof. Howard Spiro defendia, com toda a propriedade, que os médicos que haviam praticado atrocidades durante o período nazista não deveriam ter sua memória homenageada.

O Dr. Spiro foi brilhante em chamar a atenção da comunidade médica mundial para a necessidade da biografia das pessoas homenageadas ser condizente com os valores morais, éticos e científicos das premiações médicas. O prêmio mudou de nome e passou a se chamar Hans Popper Prize em 1989, homenageando um especialista de fígado que fugiu do Nazismo e se tornou chefe de Patologia no Hospital Mount Sinai, de New York. Nessa mesma linha, eu mesmo publiquei, há dois anos, nesta Revista, um artigo sobre o tema, intitulado a Ética Médica Nazista.

Uma outra evidência histórica foi a medalha Gustav von Bergmann, também criada pela SAMI, homenageando o médico com esse nome que participou ativamente na adoção dos “princípios” médicos do Nazismo. Em 2013, o corpo diretivo da SAMI removeu essa premiação e a rebatizou de Medalha Leopold Lichtwitz.

Em 2016, a Universidade de Kiel retirou o nome de Alfred Schittenhelm da relação de seus membros honorários. 

No mundo acadêmico, é um consenso o fato de que a Sociedade de Medicina Interna da Alemanha, SAMI, demorou longos anos para trazer transparência ao que realmente ocorreu dentro da sua entidade entre 1933 e 1945. Nunca vamos saber o que de fato se passou, mas é fato que muitos médicos se submeteram a condutas deploráveis, sem coragem de resistir ou de o denunciar publicamente - e tampouco, acabada a Guerra, de revelar para o mundo o que de fato ocorrera. Vale ressaltar que alguns médicos, como os julgados em Nuremberg, participaram entusiasticamente de experimentos atrozes.

Tentando conviver com o passado

As manobras políticas da Sociedade de Medicina Interna Alemã durante a era nazista demoraram muitos anos para vir à tona. Após o término da 2ª Guerra Mundial, a SAMI não queria que sua imagem ficasse comprometida por sua participação no regime nazista e procurou ocultar muito do que ocorrera durante esse período. Buscaram manter uma imagem “despolitizada”. Mas, em 1980, em seu centenário, os discursos dos ex-presidentes que atuaram durante o período nazista foram encurtados em comparação aos extensos discursos de presidentes que presidiram em outros períodos.

Esforços no período pós-guerra em evitar confrontos com as atrocidades médicas realizadas durante o Nazismo persistiram durante muitos anos. No entanto, as aberrações médicas ocorridas nesse período acabaram por vir à tona.

Hoje temos o Código de Nuremberg, criado em 1947 após a 2a Guerra Mundial, que eliminou condutas experimentais sem respaldo científico e estudos sem princípios éticos da prática médica. A tradição de consolidar o legado de excelência na Medicina seguirá em frente, considerando, no entanto, a diversidade, a igualdade e a rejeição à complacência com condutas inaceitáveis, entre as quais o racismo.

No caso do Código de Nuremberg, em relação a Pesquisa Clínica em humanos, o denominador comum começa no Termo de Consentimento assinado por um voluntário, como é o caso de voluntários ao recebimento de uma vacina ainda em avaliação, ou aos testes de inovação com medicamentos novos para melhorar o prognóstico de doenças crônicas. E termina quando o Termo de Consentimento assinado é retirado pelo paciente ou voluntário em programas de vacinas, como é o caso das vacinas para prevenção da Covid-19.

Palavras Finais

A Medicina não tem exclusividade quando se faz necessária a reconsideração dos títulos honoríficos. A constatação pública do racismo de certa forma institucionalizado nos EUA levou, por exemplo, à retirada do nome de Woodrow Wilson da Princeton University School of Public and International Affairs, pois, como presidente dos EUA, várias de suas intervenções têm nítidas características de supremacia branca.

Reconsiderar nomes honoríficos na Medicina não é uma prática comum, mas que começou a ser mais utilizada após os horrores que gradualmente foram-se tornando públicos por relatos de pacientes sobreviventes do Holocausto. Hoje, mais uma vez reiteramos que médicos nazistas que praticaram atrocidades não devem ter sua memória e seu trabalho celebrados e homenageados quaisquer que tenham sido suas descobertas.

1 A Liga Alemã de Médicos, presidida pelo Ministro da Saúde do Reich, era uma filial do Partido Nazista com a missão de integrar a profissão médica alemã à visão de mundo nazista. A Liga foi organizada estritamente de acordo com os “ideais” do Führer.

Bibliografia:

 Schittenhelm A, Letter to Leopold Lichtwitz, 22 March 1933, Archive signature Paul Martin Collection Folder 77 located at the Institute for Medical Humanities, University of Bonn, Germany

To study race problems, German Medical Society will have new program, says chairman. New York Times April 20,1933.

 Bauer J., Gefahrliche  Schagworteauf dem Gebet der  Erbbiologie,Schweizer Medizinische Wochhernschift , 1935:65,63)

Scheinberg M.: Passado Nazista Altera Nome de Doença. Morashá, Ed. 75, 2012

Scheinberg M .: Ética médica nazista. Morashá, Ed. 97, 2017

 Mo. Med. 2013 Nov-Dec; 110(6): 486–488: German Medical Association Finally Apologizes For Atrocities Committed by German Physicians Under the Nazis [History of the German Society of Internal Medicine (DGIM) - Part 2: The DGIM in the Post-War Period].

Morton Scheinberg é especialista em doenças autoimunes, PhD pela Boston University, Professor Livre Docente pela USP, Master do American College of Rheumatology