Há 60 anos, no dia 20 de novembro de 1945, foi instalado na cidade de nuremberg, alemanha, o tribunal aliado que, ao fim do conflito mundial, julgou os líderes nazistas por seus crimes de guerra e contra a humanidade, com ênfase no assassinato de milhões de judeus.

É senso comum admitir que a história é sempre escrita pelos vitoriosos. Mas não foi este o legado do Tribunal de Nuremberg. Antes de tudo, os criminosos de guerra nazistas tiveram um direito que eles próprios jamais concederam a suas vítimas: o da defesa. O tribunal não era movido por sentimento de vingança. Sua finalidade era fazer prevalecer o princípio humanitário do ritual da justiça e conferir veracidade documental aos relatos dos assassinatos em massa, os quais no final da guerra muita gente julgou inverossímeis.

De fato, era incrível acreditar que seres humanos pudessem elaborar um plano tão eficiente, tão minucioso, com tanta capacidade para separar e aprisionar seis milhões de judeus dentre as populações de centenas de cidades da Europa e aniquilá-los da forma mais indigna e abjeta de que se tem notícia no curso da história. O Tribunal de Nuremberg abriu uma chaga na alma dos homens de bem em todas as partes do mundo, chaga que continua - e deve continuar - aberta, mesmo decorridos 60 anos de sua exposição.

Seguem partes de interrogatórios e vereditos referentes a alguns dos principais acusados no processo. Um dos réus mais visados foi o almirante Karl Doenitz, por ter sucedido oficialmente a Hitler e negociado a rendição incondicional da Alemanha nazista. Ele se defendeu dizendo que toda a culpa deveria recair não sobre os militares, mas sobre os políticos que levaram o nazismo ao poder e iniciaram a guerra. A acusação, entretanto, mostrou documentos referentes à chamada "Ordem Lacônia", de 1942, na qual Doenitz proibiu qualquer socorro aos náufragos de embarcações aliadas atingidas, argumentando que o inimigo não se importava com as mulheres e crianças alemãs nas cidades que bombardeava. A exemplo de quase todos os demais réus, Doenitz afirmou que ignorava a existência dos campos de extermínio. Admitiu que, por volta de 1938, soube de algumas perseguições contra os judeus, "mas estava muito ocupado com problemas navais para me preocupar com os judeus". Foi condenado a dez anos de prisão, vindo a morrer em 1980.

Hans Frank, governador da Polônia ocupada, também conhecido como o "Carrasco de Cracóvia", chegou a confessar, em parte, sua culpa. De forma surpreendente, declarou à promotoria que não se deixasse enganar por aqueles que dissessem não saber de nada "porque todos percebíamos que havia algo terrivelmente errado no sistema". Acrescentou que Hitler desgraçara a Alemanha para sempre e traíra o povo alemão que tanto o amava. No tocante aos judeus, afirmou que o programa do partido nazista não previa a eliminação física dos mesmos e que essa medida foi tomada pelo próprio Hitler, no decorrer da guerra. Entretanto, uma página de seu diário, exibida no tribunal, continha os seguintes dizeres: "Os judeus devem ser eliminados. Cada vez que pegarmos um deles, será o seu fim". E mais adiante: "É claro que não vou conseguir eliminar todos os judeus da Polônia em apenas um ano". Hans Frank teve o veredito de "culpado" e foi enforcado no dia 16 de outubro de 1946.

Wilhelm Frick, jurista e ministro do interior do regime nazista, foi o redator final das leis de Nuremberg, que começaram por privar os judeus de seus direitos civis e acabaram evoluindo para a concepção e instalação dos campos de extermínio. Frick, porém, teve a desfaçatez de declarar perante o tribunal que não era anti-semita e que aquelas leis de sua responsabilidade se deviam a razões científicas, ou seja, à preservação da pureza do sangue alemão. Foi enforcado em 16 de outubro de 1946.

A par das transcrições dos interrogatórios dos réus e dos pronunciamentos da defesa e acusação, uma das fontes mais importantes sobre o tribunal está no livro, há pouco lançado no Brasil, "As Entrevistas de Nuremberg", que reproduz as anotações do psiquiatra americano Leon Goldensohn, falecido em 1961. Competiu-lhe a tarefa, designado pelo governo dos Estados Unidos, de dialogar freqüentemente com todos os acusados, tendo como avaliar suas condições psicológicas no decorrer do processo.

Apesar de judeu, Goldensohn conseguiu conter a emoção e realizou um trabalho estritamente profissional, buscando, na infância e juventude dos réus, os motivos que poderiam tê-los levado a praticar crimes tão hediondos.Quando conversou, por exemplo, com o marechal Wilhelm Keitel, que se considerava um militar de impecável estirpe e que também foi condenado à forca, dele ouviu: "Nunca soube da brutalidade durante a guerra. Nunca se falou uma palavra sobre a perseguição ou assassinatos de judeus. Hitler era um grande psicólogo, nesse particular. Sabia que não podia exigir essas coisas de um cavalheiro e oficial, nem sequer mencionar tais idéias". Quanto ao chanceler Ribbentrop, outro condenado à morte, o psiquiatra anotou: "Ele disse que, a longo prazo, historicamente, o extermínio dos judeus sempre seria uma mancha na história da Alemanha, mas que era, de certa forma, atribuível ao fato de Hitler ter perdido seu senso de medida e, por estar perdendo a guerra, ter perdido totalmente a razão no tocante aos judeus".

De todos os réus, o mais controvertido e polêmico foi, sem dúvida, Hermann Goering, comandante da força aérea alemã e, a rigor, o número dois do nazismo, depois de Hitler. Ao contrário dos réus que se sentiram intimidados perante os juizes das nações aliadas (Estados Unidos, França, Inglaterra e União Soviética), Goering parecia exercer liderança e autoridade em relação aos demais acusados. Foi o mais preciso e também o mais insolente nas respostas aos interrogatórios, declarando, a certa altura: "Este é um julgamento político comandado pelos vitoriosos e será uma boa coisa quando a Alemanha se der conta disso. Recebíamos ordens e tínhamos que obedecer ao chefe do estado. Mas, não éramos um bando de criminosos que se reunia na calada da noite para planejar massacres. Os quatro verdadeiros e principais conspiradores não estão aqui: "Hitler, Himmler, Bormann e Goebbels". Dentre todos os réus, também foi o que mais se abriu nas conversas com o psiquiatra e, de suas palavras, é possível perceber que ele simplesmente não sabia distinguir o bem do mal.

Justificou com desfaçatez o fato de ter pilhado centenas de obras de arte, de grande valor, nos países sob ocupação nazista: "Sempre gostei de viver cercado por coisas bonitas". Este aspecto de sua personalidade ficou evidente quando disse a Goldensohn: " Tenho pensado acerca de suas perguntas insistentes sobre o meu tempo de menino.

Cheguei à conclusão de que não havia diferença entre eu menino e eu adulto, mesmo hoje. Acredito que o menino tinha todas as marcas que mais tarde apareceriam no adulto". Sobre a destruição de inúmeros bens de judeus alemães, repreendeu seus subordinados; "Era melhor ter matado duzentos judeus do que perder patrimônios tão valiosos".

Procurou isentar-se de quaisquer culpas quando afirmou: "Perdi terreno com Hitler e, em 1943, já estava em desgraça. Em 1944, Hitler nem falava mais comigo. Gradualmente a coisa ia piorando. Ele cismou, então, que eu estava tentando substituí-lo e ordenou minha prisão e execução. Cheguei a ser detido pela SS por uma ordem assinada por Bormann. Entretanto, um de meus grupos de pára-quedistas me resgatou". Sempre que foi confrontado pelo promotor americano Jackson, que exibiu documentos à corte e conduziu seu interrogatório com paciência e perspicácia, Goering apelou para a falta de memória. Muitas vezes disse ignorar o conteúdo das leis anti-semitas que assinou e quando Jackson lhe exibia sua assinatura nos papéis, respondia com uma ponta de cinismo: "Se a minha assinatura está aí, então fui eu mesmo que assinei".

No tocante aos campos de extermínio, tornou a ser cínico: "Certa vez, soube que uns poucos milhares de pessoas haviam sido mortas. Pensei que fosse propaganda do inimigo. Quando indaguei a respeito, disseram-me que era propaganda mesmo. Ouvi o nome de Eichmann aqui, pela primeira vez. Que os judeus deviam ser evacuados da Alemanha estava claro, mas não exterminados. Depois da guerra os judeus deviam ser evacuados para a Palestina ou outra parte. Não assumo a responsabilidade por coisas que ignorava, como as atrocidades e os campos de concentração". Hermann Goering recebeu o veredito de "culpado", foi condenado à forca, mas se suicidou em sua cela com uma pílula de veneno, provavelmente fornecida por sua mulher, pouco antes do horário marcado para a execução.

Fritz Sauckel, que tinha um pequeno bigode à feição de Hitler, foi o responsável pelo trabalho escravo de cinco milhões de pessoas durante o regime nazista. Durante o processo manteve-se todo o tempo na defensiva e enfatizou que mantinha sua admiração por Hitler porque os maiores responsáveis pelos crimes de guerra, no seu entender, eram Himmler, Bormann e Goebbels. Ao psiquiatra americano declarou que jamais tinha percebido qualquer atitude anti-semita em sua família e que era natural que tivesse assimilado as idéias do partido nazista quando a este se filiou.

Ficou convencido de que a questão judaica deveria ser enfrentada e "que mesmo entre os judeus havia os sionistas que concordavam que os judeus são uma raça e que deviam ter seu próprio país" (O movimento sionista jamais atribuiu aos judeus a condição de raça, mas de povo). Sauckel veio a governar a província da Turíngia, onde, segundo afirmou, jamais presenciou qualquer perseguição aos judeus. Quando lhe exibiram provas de que havia estado no campo de concentração de Buchenwald, localizado na Turíngia, disse que sua jurisdição não incluía o campo "porque aquele território pertencia a Himmler". Foi enforcado no dia 16 de outubro de 1946.

De todos os horrores revelados no Tribunal de Nuremberg, o depoimento mais chocante não foi emitido por nenhum réu, mas por uma testemunha, Rudolf Hoess, comandante do campo de extermínio de Auschwitz.

Segue parte de seu interrogatório.

Promotor - De 1940 a 1943 o senhor comandou o campo de Auschwitz. É verdade?

Hoess - Sim.

Promotor - E, durante esse tempo, centenas de milhares de seres humanos ali foram mortos. Isto é correto?

Hoess - Sim.

Promotor - É verdade que o senhor não anotou a quantidade de vítimas porque estava proibido de fazê-lo?

Hoess - Está correto.

Promotor - E também é correto que somente um homem, chamado Eichmann, tinha esses números? Que este homem cumpria a tarefa de juntar e organizar as vítimas?

Hoess - Sim. Promotor - É verdade que Eichmann lhe revelou que mais de dois milhões de judeus foram aniquilados em Auschwitz?

Hoess - É verdade.

Promotor - Homens, mulheres e crianças?

Hoess - Sim.

Promotor - É verdade que em 1941 o senhor foi chamado a Berlim para se encontrar com Himmler. O que foi discutido nessa ocasião?

Hoess - Ele me disse que Hitler havia emitido uma ordem para a solução final do problema judaico e que nós, da SS, deveríamos cumprir essa ordem. Se isso não fosse feito, os judeus destruiriam a Alemanha. Eichmann havia escolhido Auschwitz por por estar numa região isolada e ter fácil acesso ferroviário.

Promotor - Essa solução final deveria ser tratada como um segredo de estado?

Hoess - Sim. Ele enfatizou este ponto. Eu não poderia dizer nada, nem mesmo ao meu superior. Tudo deveria ficar entre nós dois.

Promotor - O senhor cumpriu essa promessa?

Hoess - Quebrei-a somente com minha mulher, que tinha ouvido rumores sobre o que se passava no campo.

Promotor - Quando o senhor conheceu Eichmann?

Hoess - Um mês depois de receber a ordem de Himmler. Ele veio a Auschwitz para acertar comigo os detalhes da operação e somente dele eu deveria receber qualquer ordem.

Promotor - Quando os transportes começaram a trazer os judeus, quantos vieram ao campo?

Hoess - Os trens eram diários e traziam cerca de duas mil pessoas. Dois médicos da SS avaliavam a capacidade de trabalho dos prisioneiros.

Promotor - Depois da chegada, os prisioneiros eram desprovidos de tudo que possuíam? É verdade que tinham que se despir e entregar seus valores?

Hoess - É verdade.

Promotor - E eram imediatamente levados para as execuções?

Hoess - Eram.

Promotor - Essas pessoas sabiam o que lhes estava aguardando?

Hoess - A maioria, não, porque havia placas em diferentes idiomas indicando locais de desinfecção ou chuveiros.

Promotor - O senhor me declarou em depoimento anterior que as mortes nas câmaras de gás ocorriam num tempo de três a quinze minutos. É verdade?

Hoess - Sim.

Promotor - Alguma vez o senhor sentiu pena das vítimas, pensando na sua família e nos seus próprios filhos?

Hoess - Senti.

Promotor - E, como apesar disso, conseguia perpetrar suas ações?

Hoess - A despeito do sentimento, o argumento mais decisivo era a ordem que eu recebera de Himmler.

Nas entrevistas com o psiquiatra, Hoess confessou que antes de acionar o extermínio em Auschwitz, fez um aprendizado no campo de Treblinka. Revelou que ali foram erguidos dez pequenos compartimentos de cimento, como se fossem cabanas, onde cerca de duzentas pessoas eram comprimidas, a ponto de os militares terem de fazer força para fechar as portas.

Ao lado das cabanas instalaram motores de caminhões que, através de um exaustor, expeliam durante uma hora gás carbônico para dentro: "Não sei quanto tempo as pessoas levavam para morrer, mas quando as portas eram abertas, não sobrava ninguém". Os pormenores descritos por Hoess, sobre Auschwitz, são impressionantes por seu conteúdo e pela frieza com que os narrou: "Era um prédio grande e moderno, com quatro câmaras de gás subterrâneas e cinco fornos crematórios acima. Queimar duas mil pessoas levava cerca de 24 horas, em todos os fornos. Mas, ocorriam atrasos na cremação porque era mais fácil exterminar com gás do que cremar". Nesse espectro de horror, era chocante que Hoess, a mulher e os filhos morassem com todo o conforto junto a Auschwitz, numa ampla residência rodeada por um jardim, situada antes do grande portão.

Esse cenário nos remete a uma situação de insuportável surrealismo: na vizinhança das câmaras de gás e dos fornos crematórios, uma família alemã comia e dormia, brincava ou brigava, lia os jornais e ouvia música como se nada de anormal estivesse acontecendo a centenas de metros de sua casa. Das diversas conversas entre o psiquiatra e o carrasco, é possível compor o diálogo seguinte. Goldensohn: "O que sua mulher dizia sobre o que ali se passava?" Hoess: "Minha mulher só soube em 1942. Ela me perguntou a respeito e eu disse que era verdade". Goldensohn: "Como ela reagiu?" Hoess: "Achou cruel, mas eu lhe contei a conversa mantida com Himmler e ela não tocou mais no assunto". Goldensohn: "Qual você acha que dever ser seu castigo?" Resposta: "Ser enforcado". Rudolf Hoess, mais tarde julgado por um tribunal polonês, foi condenado à forca e executado - em Auschwitz, no dia 7 de abril de 1947.

Os trabalhos do Tribunal de Nuremberg se estenderam por 403 sessões, de novembro de 1945 a outubro de 1946. Foram ouvidas mais de uma centena de testemunhas e examinados milhares de documentos. De todo o corpo jurídico aliado, a atuação mais destacada foi a do promotor Robert H. Jackson, então brilhante integrante da Suprema Corte dos Estados Unidos e homem de confiança do presidente Roosevelt. Suas alegações finais ecoam até hoje: "Nós acusamos que todas as atrocidades contra os judeus foram a manifestação e a culminação do plano nazista, no qual, a cada um dos réus cabe sua parte. Embora alguns tenham agora reconhecido que esses crimes de fato ocorreram, nenhum deles se opôs à política do extermínio, nem a tentou revogar ou modificar. Foi a determinação de extinguir os judeus que cimentou sua conspiração em comum".

Zevi Ghivelder é escritor e jornalista

Bibliografia:

"As Entrevistas de Nuremberg", Leon Goldensohn, Companhia das Letras, 2005;

"America's Advocate: Robert H. Jackson", Bobbs-Merrill, 1958;

"The Nurnberg Case", Robert H. Jackson, Cooper Square Publishers, 1971.

Os réus do processo

Albert Speer - Ministro de armamentos e munições. Confidente de Hitler. Condenado a vinte anos.

Alfred Jodl - Chefe de operações do alto comando nazista. Condenado à forca.

Alfred Rosenberg - Filósofo do anti-semitismo e governador-geral do leste europeu. Condenado à forca.

Arthur Seys-Inquart - Chanceler da Áustria e, depois, governador da Holanda ocupada. Condenado à forca.

Erich Raeder - Comandante da marinha alemã. Condenado à prisão perpétua.

Baldur von Schirach - Líder da Juventude Hitlerista. Condenado a vinte anos.

Ernst Kaltenbrunner - Chefe da Polícia de Segurança. Condenado à forca.

Franz von Papen - Vice-chanceler e embaixador na Turquia. Absolvido e depois condenado por outro tribunal a oito anos.

Fritz Sauckel - Chefe do recrutamento do trabalho escravo. Condenado à forca.

Hans Frank - Governador da Polônia ocupada. Condenado à forca.

Hans Fritzche - Diretor do departamento de rádio do Ministério da Propaganda. Absolvido em Nuremberg, mas condenado a nove anos de prisão por outro tribunal.

Hermann Goering - Segundo na hierarquia nazista. Suicidou-se antes de ser enforcado.

Joachim von Ribbentrop - Ministro das relações exteriores. Condenado à forca.

Hjalmar Schacht - Presidente do Banco do Reich. Absolvido.

Julius Streicher - Editor do jornal anti-semita Der Sturmer. Condenado à forca.

Karl Doenitz - Comandante da armada naval alemã. Sucessor oficial de Hitler. Condenado a dez anos.

Konstantin von Neurath - Ministro das relações exteriores e, depois, governador da Boêmia e da Morávia ocupadas. Condenado a quinze anos de prisão.

Rudolf Hess - Vice de Hitler. Condenado à prisão perpétua.

Walther Funk - Ministro da Economia. Condenado à prisão perpétua.

Wilhelm Frick - Ministro do Interior. Condenado à forca.

Wilhelm Keitel - Chefe do estado-maior do alto comando do exército. Condenado à forca.