Em 2002, a Biblioteca Nacional de Israel, em Jerusalém, recebeu valioso material iconográfico do acervo que pertenceu ao artista Gyula Zilzer, incluindo documentos pessoais, fotografias, correspondência, obras literárias, desenhos e litografias. A seguir, um retrato do perfil deste artista judeu húngaro, que, de certa forma, previu a catástrofe que iria se abater sobre os judeus da Europa.      

Gyula Zilzer nasceu em Budapeste, em 1898. Filho de artistas talentosos, já na sua juventude demonstrara forte interesse por pintura além das máquinas, invenções e avanços tecnológicos.

Em 1917 deixa a Hungria para ir para a Rússia com dois amigos, Trotzer e Mintzoi. Sua ida foi possível uma vez que o governo húngaro mantinha relações diplomáticas amistosas com a nova nação, após a Revolução Bolchevique de 1917.

Ao lá chegar, desenvolveu com os dois amigos um torpedo controlado por ondas de rádio ou por radiação eletromagnética, e os jovens inventores foram convidados a trabalhar em uma fábrica militar para construir esse torpedo em favor dos soviéticos. O projeto em questão não vingou e os três retornaram a Budapeste. O torpedo acabou sendo patenteado secretamente pelos alemães, servindo de base para inovações tecnológicas, como o discador de telefone e um inovador sistema de controle de mísseis.

Em novembro de 1918, a Hungria foi proclamada república independente. Meses depois, em 1919, era deposta a coalizão governamental, assumindo, em seu lugar, a extrema esquerda comunista, liderada por Bela Kun. Entre as lideranças do movimento, figuravam inúmeros judeus, inclusive o próprio Kun. Desencadeia-se no país uma onda de “terror vermelho” e, após cinco meses de violência, o governo é derrubado por uma coalizão conservadora nacionalista.

De imediato instala-se no país um regime autoritário, assumindo o governo o almirante Miklos Horthy, que ficaria 24 anos à frente do país. Comunistas e judeus se tornam alvo do “terror branco”. O antissemitismo que toma conta do país é acirrado pela crise econômica e o temor de uma revolução socialista.

De volta a Budapeste, Gyula Zilzer é impedido de continuar seus estudos acadêmicos em engenharia, pois, entre outras legislações antijudaicas havia sido aprovada uma lei, de aplicação do princípio de numerus clausus, que limitava o número de estudantes de origem judaica nas universidades húngaras.

Em 1919, ele deixa a Hungria e vai para Trieste, na Itália. Lá funda uma fábrica com outros sócios, enquanto nas horas vagas começa a se dedicar à pintura. Em 1922, já exibindo o grande talento que o caracterizaria, Zilzer vai para Munique, onde fica um ano, estudando desenho na escola do renomado mestre alemão Hans Hoffman.

Em 1924, de volta a Trieste, ele consegue adquirir um certificado que atesta “sua condição de cristão” e retorna à Hungria. Matricula-se na Academia de Belas Artes de Budapeste, onde estuda com renomados mestres como Vaszary János e Csók István.

Quando os membros da Academia descobrem sua identidade judaica, Zilzer é imediatamente afastado da instituição, com a alegação de que lhe “faltava talento”.

Mas, o “veredicto” dos membros da Academia não o desencoraja e continua a pintar uma coleção de belas litografias, intitulada Kaleidoskop (caleidoscópio). O sucesso desse trabalho lhe permitiu deixar definitivamente a Hungria.

Paris foi a residência de Gyula Zilzer entre 1924-1932. Na França, trabalhou para a revista Clarté e no jornal L´Humanité, ambosinstrumentos de comunicação do partido comunista, mobilizando intelectuais franceses contra a 1a Guerra Mundial. Essa revista, criada entre 1916 e 1917, provém do título do romance do escritor comunista, Henri Barbusse (1873-1935), publicado em 1919. Ele era um pacifista, e seus textos demonstravam um crescente ódio aos militares. Mais tarde, ele se torna comunista.

A partir de 1929, as matérias de Zilzer adquirem caráter antifascista, sendo os alvos preferidos Adolf Hitler e Benito Mussolini.

Gyula se casa com Mary Fuchs, uma judia húngara.

ÁLBUM “KALEIDOSCOP” (1924)

Na década de 1920, a série de litografias “Kaleidoskop” registra a possibilidade concreta de uma nova guerra na Europa, inspirada em regimes nazistas e fascistas que agitavam o Velho Continente. Zilzer, com uma visão quase profética, desenha o que se poderia chamar de prenúncio das atrocidades que seriam cometidas a partir de meados da década de 1930 pelo “Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães”, em que opositores do regime de Adolf Hitler começam a ser deportados para campos de trabalho forçado e de concentração.

Sabemos que os “lager” não foram invenção do Nazismo; houve campos de concentração e detenção em outros países. No entanto, nada se compara à crueldade criada pelos nazistas. Auschwitz, Treblinka, Majdanek, Sobibor, Chelmno ou Belzec são campos de extermínios, poder-se-ia dizer, um mundo à parte. Como dissemos acima, uma realidade que não pode ser comparada com os campos que existiram na África do Sul, durante as “Guerras dos Bôer”, ou na URSS dos extenuantes Gulags, presídios estruturados no regime de trabalho forçado.

O primeiro campo de concentração em território alemão foi estabelecido em Dachau pouco depois de Hitler assumir o poder, em 31 de janeiro de 1933. Desde sua abertura, os nazistas outorgaram a esse campo um papel central, funcionando primeiramente como base de treinamento das Schutzstaffel, as SS, temidas forças de choque do Terceiro Reich. Logo depois, serviu como modelo de organização para outros campos que seriam edificados.

Os prisioneiros reclusos em Dachau, fosse para serem “reeducados”, fosse em prisãopreventiva, eram principalmente membros de organizações antinazistas, grupos religiosos, movimentos de resistência ou indivíduos que criticavam abertamente o regime nacional-socialista e Hitler. Até 1938, esse campo era composto exclusivamente por alemães, depois por austríacos e, gradualmente, foi ficando lotado de prisioneiros de várias nacionalidades. Lá esteve, também, o maior grupo de eclesiásticos presos, cerca de 3 mil padres, em sua maioria, poloneses. Milhares de judeus foram encarcerados em Dachau entre 1938-1939, quando a política do Terceiro Reich ainda era “acelerar” a saída em massa dos judeus como forma de resolver a “Questão Judaica” (Judefrage), na Alemanha.

Gyula Zilzer se identificou com o movimento artístico expressionista, usando-o para denunciar, de forma contundente, os horrores da ideologia nazista nos primeiros anos de Hitler. Poucos meses após assumir, o Führer declarara o boicote ao comércio judaico. Em 10 de maio de 1933 foram queimadas em praça pública, em várias cidades da Alemanha, as obras de escritores alemães considerados “inconvenientes” ao regime. Mais tarde, havia banido os autores judeus (Einstein, Zweig, Freud e Spinoza). Como se via, Hitler e seus comparsas pretendiam fazer uma “limpeza” na literatura.

Em 1936, ano das Olimpíadas de Berlim, quando ninguém pensava ou registrava em desenhos a existência de campos nazistas, os desenhos de Gyula Zilzer sobre os campos de concentração nazistas foram utilizados como capa na obra Women & Children under the Swastika (Mulheres e crianças sob a suástica), publicada em Nova York naquele ano. Era uma forte denúncia da opressão instituída no regime do Terceiro Reich.

Por outro lado, em Paris, o artista judeu húngaro Zilzer é convidado para ilustrar trabalhos literários do escritor americano Edgar Allan Poe (1809-1849), publicados pela famosa editora Picart.

“ATAQUE A GÁS”

Em 1932, Gyula Zizler apresentou em Amsterdã a exposição Ataque a Gás”, um álbum de 24 litografias em que censurava o uso de gás venenoso como uma arma de combate, como foi feito na 1ª Guerra Mundial. O primoroso catálogo foi prefaciado pelo novelista, biógrafo e músico francês Romain Rolland. Nesse mesmo ano, devido ao enorme sucesso, a mostra segue para os Estados Unidos.

Nos desenhos do “Ataque a Gás” nos deparamos com uma realidade assustadora. A morte está presente em praticamente todos os cantos. Num deles é possível observar uma estação de trem ou de metrô, e nela um número incontável de civis e soldados atingidos por um gás venenoso. Todos usam suas máscaras com sistema de oxigênio, certamente tentando fugir de um ataque direcionado à população urbana.

Suas cenas transmitem aflição e tristeza; há seres humanos agonizando, médicos usando máscaras tentando socorrer pessoas asfixiadas com dificuldade de respirar. Sente-se o pânico entre as pessoas, que são atendidas e evacuadas em macas provavelmente rumo aos hospitais.

Na introdução ao portfólio “Gás”, o escritor Romain Rolland (1866-1944), Prêmio Nobel de Literatura em 1915, transmite um pouco de consolo aos amantes da paz mundial. Ele diz: “Os ataques químicos levarão à destruição, como o fez a Peste Negra, no século 14... Eles consumiram certas formas de civilização, na Europa, como também na civilização americana, fortemente urbana e cultural... Não há forma de escapar da guerra. Acredito que a insanidade humana seja [hoje] irremediável. Mas, isto não isenta os homens racionais de se manifestar, senão por segurança pelo menos que seja por respeito mútuo. Posso tranquilizar aqueles que temem o fim da raça humana. A vida da besta está ligada a seu corpo. Isso já foi [anunciado] e desperdiçado umas cem vezes. Ela sobreviverá a essa pestilência, uma vez que sobreviveu a outras, mas será subjugada e mais uma vez levada para longe, por séculos. Esta é sua maneira de progredir. Sua tenacidade de viver novamente contrabalança seu frenesi de morrer”.

Seguindo a linha crítica do pintor alemão Otto Dix, o pacifista Zilzer censura o uso de gases, reagindo duramente através de sua arte contra o surgimento do Nazismo e do Fascismo na Europa. Ele mesmo dá a impressão de ter sentido na carne a intolerância desses regimes totalitários, que inseriram o antissemitismo no centro de sua plataforma política. E foi esse antissemitismo o que o levou a deixar a “Academia de Belas Artes” de Budapeste e partir rumo aos Estados Unidos, em 1932.

“TWO HOBOS”

A coleção do Smithsonian American Art Museum (SAAM), de Washington DC, possui uma obra importante do pintor Gyula Zilzer. Trata-se da tela “Two Hobos”.

O termo hobos, em língua inglesa, designa um trabalhador itinerante, sem teto, pobre, porém dono de uma curiosidade única. Ele costuma viajar sempre despreocupado, sem destino, como um passageiro clandestino de presença garantida nos trens de carga. Essa figura teria surgido ao noroeste dos EUA durante a última década do século 19. Nasceu talvez durante a crise econômica de 1893-1897, e sua imagem era ainda comum ao longo das primeiras décadas do século 20, sobretudo nos anos da Grande Depressão.

A associação entre esses itinerantes e os judeus é obrigatória, pois estes últimos eram errantes como os desempregados e os sem rumo; vagavam pelo Leste Europeu vindos de famílias pobres, perambulavam pelas estradas sem destino fixo, guiados somente por um inabalável espírito aventureiro.

Durante o período da perseguição nazista aos judeus, destituindo-os de seu emprego e lhes cerceando os movimentos, este tipo de judeus era visto com frequência especialmente em zonas rurais do Leste Europeu. Ofereciam seus serviços nas ruas dos vilarejos (shtetls) cortando lenha, consertando objetos, afiando facas ou fazendo tarefas domésticas, enquanto outros mais abençoados tocavam instrumentos ou cantavam pelas aldeias.

No caso específico da tela de Zilzer, os hobos são judeus lenhadores, que aparecem cercados por troncos de árvores, um amontoado de lenha, gravetos e até um machado com o qual realizam suas tarefas. Enquanto um deles, com uma perna amputada, aparece preparando a comida, o outro, um pouco mais atrás, toca calmamente sua flauta.

ESTADOS UNIDOS

Zilzer deixa a Europa e chega aos Estados Unidos exatamente um ano antes de Hitler tomar o poder, na Alemanha. Ficou um ano viajando pelo país, sempre desenhando e pintando.

Durante sua estada nos EUA, ele fez parte da WPA (Works Progress Administration), a maior agência de trabalho do New Deal, a política econômica implementada, em 1933, pelo presidente americano Franklin D. Roosevelt, que oferecia empregos a milhões de desempregados, administrava projetos públicos e construía edifícios e estradas.

No WPA havia um departamento denominado “Federal Project Number One”, totalmente dedicado a projetos artísticos, oferecendo trabalho a músicos, desenhistas, pintores, atores e escritores. Estes artistas produziam murais, esculturas, cartazes, posters, fotografias, catálogos de desenho e artesanato. Este projeto – idealizado em tempos de crise econômica – permaneceu ativo entre 1935 e 1943, gerando aproximadamente 200.000 trabalhos artísticos, considerados grandes obras de arte americana.

Em 1939, Zilzer mudou-se para Hollywood e passa a atuar na indústria cinematográfica. Trabalhou como diretor de criação de filmes famosos. Além de sua ativa participação no cinema, o artista inventou patentes originais, como veículos de brinquedo com estacionamentos subterrâneos.

Terminada a 2ª Guerra Mundial, Zilzer voltou à Europa, visitando Paris e Budapeste no início da década de 1950. Em 1954 muda-se para o que seria sua residência definitiva, a cidade de Nova York, onde trabalhou para as redes de televisão NBC e Cinerama. Mas continua pintando e expondo até sua morte, em 1969.

Apesar de viver uma vida tumultuada, Gyula Zilzer conheceu diversas personalidades da época, dentre elas o escritor e publicitário americano Upton Sinclair (1878 - 1968), o cineasta francês Jean Vigo (1905 - 1934) e o célebre pintor mexicano Diego Rivera (1886 - 1957), marido da pintora Frida Kahlo.

Em seu restrito grupo de amigos figuram o ator americano Gregory Peck (1916-2003), o novelista francês Romain Rolland (1866-1944), o jornalista judeu ucraniano Ilya Grigoryevich Ehrenburg (1891-1967), o escultor romeno Constantin Brancusi (1876-1957), o poeta húngaro József Attila (1905-1937) e os escritores Henry Miller (1891-1980) e Elie Wiesel (1928-2016), o maior memorialista do Holocausto consagrado com o Prêmio Nobel da Paz em 1986.

Gyula Zilzer manteve contatos com o cientista Albert Einstein, a quem ofereceu alguns de seus trabalhos. Existe inclusive uma correspondência do renomado físico, de 26 de março de 1933, agradecendo o presente recebido.

PALAVRAS FINAIS

Felizmente, o artista Gyula Zilzer esteve longe do palco dos acontecimentos da 2ª Guerra Mundial e da tragédia do Holocausto. Antes de Hitler tomar o poder na Alemanha, já estava trabalhando nos Estados Unidos. Através de sua arte denunciou publicamente as atrocidades cometidas com seus semelhantes no período entre as duas guerras.

Os numerosos desenhos desse grande representante do movimento expressionista europeu são parte inseparável de seu pensamento crítico. Sua obra nos traz um olhar visionário do que seria a década de 1940, período da maior expansão militar da Alemanha e das deportações de judeus a campos de concentração e extermínio que culminaram nos horrores da Shoá.

Suas delicadas litografias “Kaleidoskop”, “Gaz”, “Hitler gritando sobre a Guerra” e “Campos de Concentração” testemunham com força total a decadência humana em toda a sua extensão. As telas dessas coleções são fieis retratos dos horrores perpetrados pelo Terceiro Reich durante os anos 1933-1945.

Atualmente, os trabalhos de Zilzer encontram-se dispersos pelo mundo, principalmente em museus da Europa e dos Estados Unidos. Há um grande empenho em resgatar a memória deste artista judeu-húngaro, organizado pela “Henry J. & Erna D. Leir Foundation”,entidadelocalizada em Connecticut.

Sem sombra de dúvida, o valioso acervo iconográfico recebido recentemente pela Biblioteca Nacional de Israel, abrirá o caminho para novas pesquisas e outorgará ao artista uma maior visibilidade no mundo.

BIBLIOGRAFIA

Feoli Fine Arts. Gyula Zilzer. www.feolifineart.net

Gaz. 24 lithographies de G. Zilzer. Avant-propos de Romain Rolland. Editions du Phare. Grande Librairie Universelle, Paris 1932.

Greenstein, Shaul, The artist who forewarned the dangers of the Nazis. The Librarians. April 9th, 2018. Versão em hebraico: Haoman haiehudi shechazá betziurav et zvaot hanatzim.

Gyula Zilzer. King’s Gallery - July 22. 2016.

Paramour Fine Arts. Gyula Zilzer http://www.paramourfinearts.com

Prof. Reuven Faingoldé historiador e educador; PHD em História e História Judaica pela Universidade Hebraica de Jerusalém. é responsável pelos projetos educacionais do “Memorial da Imigração Judaica e do Holocausto” de São Paulo.