No dia 20 de abril de 1945 um decrépito Adolf Hitler completava 56 anos, no seu bunker em Berlim.  O exército inglês estava nas imediações de Hamburgo, os russos e americanos perto de Berlim. A história seguiria seu rumo, para os nazistas havia chegado a hora de queima de arquivos.  Os especialistas da SS encarregaram-se dessa urgente missão.

Em Hamburgo, no campo de concentração de Neuengamme, 20 crianças judias e seus quatro cuidadores ainda estavam vivos. As crianças, 10 meninas e 10 meninos arrebanhados de Auschwitz, na Polônia, em novembro de 1944, tinham entre 5 e 12 anos. Haviam sido escolhidas a dedo para serem submetidas a pseudo-experimentos médicos. O Dr. Kurt Heissmeyer, médico pneumologista integrante da SS, queria finalmente se tornar professor. Para tal, precisava apresentar sua tese. Depois que experimentos sigilosos com prisioneiros adultos não deram o resultado desejado, ele decidira requisitar 20 crianças para desenvolver sua vacina contra a tuberculose.

O Dr. Heissmeyer fazia cortes histológicos no peito das crianças e, na incisão de 10 a 20 centímetros, inoculava bactérias vivas de TBC. Os meninos e meninas logo apresentavam um quadro febril e abscessos no lugar do corte. As glândulas linfáticas se inchavam fortemente, pois é nessa região que se concentram os anticorpos que protegem o organismo de infecções. Algumas semanas mais tarde, Heissmeyer mandava extirpar as glândulas embaixo das axilas. Verificava-se, a seguir, se nas glândulas havia-se desenvolvido algum tipo de material de defesa contra o TBC. Esses experimentos causavam muito sofrimento às crianças. Um dos procedimentos mais dolorosos era a introdução, pela boca e traqueia, de um tubo de borracha que ia até o pulmão. Por ele, o médico injetava (ou mandava injetar) meio copo de bactérias de TBC para provocar tuberculose no pulmão.

Georges-André Kohn, menino francês de 12 anos, ficou tão debilitado que a partir desse momento não conseguiu mais ficar em pé. Em começos de dezembro de 1944, as crianças estavam alojadas no barracão 4A da Enfermaria do Campo de Concentração de Neuengamme, de onde não podiam sair de modo algum. Ficavam sob os cuidados de dois prisioneiros holandeses, que haviam sido capturados por distribuir panfletos contra os invasores nazistas. Os dois, Anton Hölzel e Dirk Deutekorn (este, enfermeiro), em pouco tempo se converteram em pais substitutos para as pequenas vítimas. Eles tinham como obrigação não só cuidar das crianças, mas também de porquinhos-da-índia, instalados em gaiolas no mesmo barracão, nos quais Heissmeyer também realizava experimentos quando ia até Neuengamme – experimentos tão sem sentido quanto os realizados com seres humanos. Mais tarde, perante um Tribunal de Justiça britânico, em 1946, Heissmeyer declararia que, para ele, não havia qualquer diferença entre usar cobaias animais ou crianças judias em seus experimentos.

Poucas semanas após sua chegada, em dezembro de 1944, todas as crianças estavam gravemente doentes. Anton e Dirk tentavam conseguir alimentos melhores para elas. No dia de Natal houve gestos significativos de solidariedade. Apesar da severa proibição de se aproximarem dos pequenos presos do barracão 4A,  vários prisioneiros foram visitar as crianças, levando presentes. Roupinhas confeccionadas com retalhos e trapos, carrinhos de madeira, arremedos de berços para bonecas. O menino polonês Marek James, de 6 anos, que era míope, até ganhara óculos. Infelizmente não serviram. No entanto, os ingleses estavam a cada dia mais perto de Hamburgo. Em 20 de abril de 1945 veio a ordem de Berlim: eliminar as crianças.

O Dr. Heissmeyer já não aparecera em Neuengamme desde o começo de março. No mesmo dia em que as crianças seriam assassinadas, 4.224 debilitados prisioneiros escandinavos, judeus e não judeus, foram resgatados do campo de concentração de Neuengamme, após longas negociações entre Himmler e o conde Folke Bernadotte. Após o último ônibus da Cruz Vermelha dinamarquesa partir de Neuengamme, chegou um caminhão cinza, completamente vedado, dirigido pelo SS Hans Friedrich Petersen. Ele parou em frente à porta do barracão 4A. Eram 22 horas. O SS Dreimann havia ordenado aos cuidadores holandeses que acordassem e vestissem as crianças. Dois médicos franceses, também presos, Florence e Quenoille, foram chamados para ajudar nessas tarefas, com a finalidade de abreviar os “procedimentos”.

As crianças estavam cochilando, mas quando lhes foi dito que se reuniriam com seus pais, rapidamente se levantaram. Alvoroçados com a ideia do reencontro, os mais velhos se vestiram sozinhos. Porém, Georges-André estava tão fraco que os dois médicos tiveram que carregá-lo até o caminhão. Todos levaram seus pertences; os menores, seus toscos brinquedos. No caminhão já estavam seis prisioneiros de guerra russos, que também seriam executados nessa noite. Ninguém sabe seus nomes até hoje.

Todos foram levados a um prédio que havia servido de escola, a uns  15 minutos de distância, no Bullenhuser Damm. Depois de um bombardeio, a escola passou a ser mais um centro de torturas da SS. Só que então, nesse 20 de abril de 1945, o local estava deserto. Os dois médicos franceses e os carinhosos cuidadores holandeses foram levados ao porão e enforcados.

As crianças não tinham ideia do que ocorria e esperavam, ansiosamente, rever seus pais. De pronto entrou um dos homens da SS e ordenou que tirassem a roupa, porque seriam vacinadas contra a febre tifóide. A fictícia vacina era na realidade uma injeção de morfina. Elas foram chamadas uma a uma. Depois de semi-anestesiadas, eram levadas para outro cubículo, onde as esperava a forca. Georges-André, o menino francês de 12 anos e o mais debilitado do grupo, foi o primeiro a ser carregado até lá. Vamos falar um pouco dele, porque sua história é a mais fácil de ser reconstruída. No dia 17 de agosto de 1944, uma semana antes da libertação de Paris, partia a última leva de deportados judeus franceses em um trem de Drancy, rumo a campos de concentração na Alemanha e Polônia. Eram seis vagões. Três deles continham armamentos (Flakgeschütze). No quarto viajavam agentes da Gestapo, com seu chefe, Alois Brunner, comandante das tropas de assalto da SS e chefe do Sonderkommando encarregado da deportação de judeus. No quinto, membros da Polícia Verde alemã que operava na França. No último vagão, que normalmente transportava gado, se acotovelavam de cócoras 51 judeus franceses. Entre eles, os sete membros da família Kohn. Armand Kohn era o diretor do maior hospital judaico da França, o hospital Rothschild de Paris. Ele sabia das constantes deportações e o nome Auschwitz lhe era familiar. Mas pensava que os judeus só seriam internados até o fim da guerra, não exterminados. Seu filho Philippe, de 18 anos, discordava e disse que decidira fugir. Rosemarie, a irmã de 22, decidiu acompanhar o irmão. Em vão o pai tentou convencer os seus a ficarem juntos, dizendo que só assim sobreviveriam.

O trem já estava rodando fazia três dias, quando, em 21 de agosto, às 2 da madrugada, os dois jovens conseguiram quebrar a grade da janelinha do vagão. Rosemarie pulou primeiro, machucando-se ao cair. Philippe caiu no trilho sem se ferir e correu para socorrer a irmã.

Os dois conseguiram esconder-se e sobreviveram. O resto da família ficou no trem: o Dr. Armand Kohn, sua esposa Suzanne, a filha Antoinette, de 19 anos, o caçula, Georges-André, de 12, e a avó, Marie-Jeanne, de 80. No dia 25 de agosto de 1944 o trem chegou ao campo de concentração de Buchenwald, próximo à cidade de Weimar, na Alemanha. Nesse lugar, foram todos separados brutalmente do pai. A mãe e Antoinette foram forçadas a seguir para Bergen-Belsen, a avó e o menino, para Auschwitz. A avó foi imediatamente enviada à câmara de gás. Georges-André foi poupado temporariamente. Havia um projeto especial esperando por ele; por ele e mais 19 crianças.
Em maio de 1946, durante o processo contra os principais criminosos de Neuengamme, Johann Framm, um SS subalterno, ao ser interrogado pelo oficial britânico Anton Walter Freud (neto de Sigmund Freud) declarou sobre a morte das pequenas vítimas:  “As crianças tiveram que tirar a roupa num quarto no porão, depois foram levadas a outro, onde o Dr. Trzebinski lhes aplicou uma injeção para que dormissem. As que continuavam vivas foram transportadas para outra sala, e com uma corda no pescoço dependuradas na parede, como se fossem quadros. Pesavam tão pouco...”.
 Na mesma noite, os quatro verdugos ainda tiveram de encarar outra “missão”: enforcar mais de 20 prisioneiros de guerra russos. Citando o SS Frahm: «Às 6:00h da manhã todos os russos estavam mortos e eu, finalmente, fui dormir”. Uns poucos dentre os pais e mães destas crianças sobreviveram. A mãe do italianinho Sergio de Simone, de Nápoles, Gisela Perloff, sobrevivente de Auschwitz, somente em 1983, 37 anos depois do assassinato de seu filho, veio a saber como ele havia sido morto, aos 7 anos de idade. Rucza Witonski, de Radom, Polônia, mãe de Roman, de 6 anos, e de Eleonora, de 5, estava trabalhando no laboratório do infame Josef Mengele, em Auschwitz, na mesma hora em que seus filhos eram enviados de Auschwitz a Neuengamme, com os outros 18 meninos e meninas. Após a libertação, ela começou uma infrutífera busca pelos seus filhos, que se estendeu até 1982. Nesse ano ela recebeu a notícia, através da Cruz Vermelha francesa, de como e quando Roman e Eleonora haviam sido mortos.  O pai de Ruchle, Nison Zylberberg, sobreviveu à guerra na União Soviética. Sua esposa Fajga e a filhinha Esther haviam sido enviadas diretamente à câmara de gás quando chegaram a Auschwitz.

A irmã de Blumele Mekler,  de 5 anos, Shifra, salvou-se porque a mãe gritou, desesperada, ao perceber que estavam sendo encurraladas: “Corre Shifra! Corre!”. Uma família polonesa a acolheu e escondeu. Pola Altman, mãe de Mania, de 5 anos, morreu em 1971, em Chicago, sem saber do destino de sua filha.

Em 20 de abril de 1979, pela primeira vez, parentes das crianças assassinadas vieram de várias partes do mundo até o Bullenhuser Damm. Quando depositaram a coroa de flores com os dizeres “Amadas crianças, vocês não serão esquecidas”, haviam-se juntado a  eles dois mil moradores de Hamburgo. Em 20 de abril de 1985, 40 anos após a tragédia, nasceria um jardim de roseiras no lugar onde o martírio dos 20 inocentes havia terminado.

O Memorial do Bullenhuser Damm converteu-se em um local de peregrinação e algumas ruas circundantes receberam os nomes das pequenas vítimas.

Irene Gebhardt Freudenheim,
É pesquisadora de tópicos relacionados com o nazi-fascismo
e o antissemitismo. 

Bibliografia:
Günther Schwarberg  Der SS-ARZT
und die Kinder vom Bullenhuser Damm
(O Médico da SS e as Crianças do Bullenhuser Damm)

Nota:
Günther Schwarberg e sua colaboradora Barbara Hüsing dedicaram-se durante anos a pesquisar minuciosamente este caso, recebendo o Prêmio Anne-Frank-Preis em 1988

• Mania Altmann, 5 anos,  polonesa • Leika Birnbaum, 12 anos,  polonesa • Surcis Goldinger,  11 anos, polonesa
• Riwka Herzberg,  7 anos,  polonesa • Alexander Hornemann, 8 anos,  holandês • Eduard Hornemann,
12 anos,  holandês • Marek James,  6 anos,  polonês • W. Junglieb,  12 anos, iugoslavo* • Lea Klygermann,
8 anos, polonesa • Georges-André Kohn,  12 anos, francês • Blumel Mekler,  11 anos,  polonesa • Jacqueline Morgenstern,  12 anos, francesa • Eduard Reichenbaum,  10 anos, polonês • Sergio de Simone,  7 anos,  italiano • Marek Steinbaum,  10 anos,  polonês • H. Wassermann,  8 anos,  polonesa* • Eleonora Witonska, 
5 anos, polonesa  • Roman Witonski,  7 anos, polonês  • R. Zeller,  12 anos,  polonês* • Ruchla Zylberberg,
10 anos, polonesa                   

* não se sabe seu primeiro nome