A rapidez e a eficiência de uma operação para salvar os alunos de uma yeshivá parecem peças de um quebra-cabeças que se encaixou com incrível precisão. Como se tudo tivesse sido planejado à perfeição. No entanto, na realidade, uma série de pequenos milagres foram sucedendo, a cada obstáculo.

Um dos mais renomados centros de estudos judaicos da Europa, a Yeshivá Mirrer, foi fundada, em 1815, na pequena cidade polonesa de Mir, a apenas 32 km da fronteira russa. No decorrer de sua história, conseguiu superar inúmeros desafios operacionais, acadêmicos e teológicos. Nada, porém, preparou seus 300 alunos e professores para a longa e perigosa odisséia que iria começar com a eclosão da II Guerra Mundial - uma fuga desesperada ao longo de 24.000 km, através da Sibéria, China e Japão.

Em abril de 1939, aos 23 anos, o alemão Moses Zupnik se preparava para retomar os estudos que iniciara três anos antes, na Yeshivá Mirrer, e que haviam sido interrompidos em função de viagens decorrentes de seu trabalho como vendedor. O jovem precisava trabalhar para se sustentar, mas ansiava voltar à vida acadêmica e ao estudo do Talmud. Retomou-os exatamente na época em que a Yeshivá de sua cidade estava particularmente vulnerável aos ventos da guerra que começavam a se alastrar, pela Europa.

Diante dessa situação desesperadora, um dos estudantes, o jovem Leib Malin, percebe que a única solução seria fugir da Europa. Consegue convencer os professores e demais alunos de que chegara o momento de deixar o continente europeu para sempre. A Yeshivá Mirrer tomou, então, uma decisão histórica: partir como um único grupo unido. Mas os problemas eram muitos. Em primeiro lugar, para onde ir? Nenhum país queria refugiados judeus. Os ingleses, após a publicação do chamado Livro Branco, haviam trancado as portas da então Palestina. E, apesar da promessa de que o governo americano concederia cinco mil vistos para rabinos e estudantes de yeshivot, as portas dos Estados Unidos continuavam fechadas aos judeus.

O segundo problema era que a maioria não tinha os documentos necessários para viajar. Em todas as yeshivot, somente os diretores, os Rosh Yeshivá, tinham passaportes, pois sempre viajavam para outros países representando suas instituições. Na Mirrer, a situação era similar. Com exceção de Zupnik, que tinha passaporte polonês, a maioria dos professores e alunos não tinham passaporte ou qualquer outro documento de identificação. E, para piorar a situação, desde a ocupação da Polônia pela Alemanha, o único lugar no qual se podia obter passaporte polonês era a Embaixada polonesa e, devido a antigas animosidades, não havia representação polonesa no local.

Além de todos estes entraves burocráticos, existia ainda um terceiro problema: vultosos fundos eram necessários para viabilizar a fuga. Precisavam de dinheiro não somente para a viagem, mas também para comprar vistos, subornar funcionários e guardas das fronteiras. Para obter vistos de entrada para os EUA, por exemplo, o governo americano exigia um depósito como garantia de que, após ser admitida no país, a pessoa não se tornaria um ônus para o governo. Além do mais, o dinheiro para a viagem tinha que estar à mão e em espécie, e tal soma era vultosa.

Então, o rabino Abraham Kalmanowitz viajou via Suécia para a Inglaterra e depois para Nova York, para planejar e financiar a fuga. Ele sabia que era preciso trabalhar contra o tempo para poder salvar a Yeshivá Mirrer. Em Nova York, o rabino apelou, com sucesso, a judeus como o empresário Jacob Kestenbaum, que muito contribuiu para o projeto da fuga da instituição. Dos EUA, Kalmanowitz conseguiu enviar passaportes para todos os membros da Yeshivá. Os documentos custaram uma fortuna, pois as embaixadas polonesas haviam triplicado os preços. Mas ainda faltavam os vistos. Para revolver esse problema, Moses Zupnik e vários outros jovens foram a Kovno. A burocracia para deixar a Lituânia era imensa. Cada membro da yeshivá precisava de um passaporte, sem o qual a pessoa não existia legalmente, de um visto de saída, de um visto de trânsito e, finalmente, de um visto de entrada no país que os aceitasse.

A situação na Lituânia estava caótica e poucos consulados permaneciam em funcionamento. Havia apenas alguns funcionários nos da Grã-Bretanha, Holanda e Japão. Um dos alunos, Jacob Eiderman, conseguiu convencer o cônsul britânico - então responsável pelos assuntos da Polônia - a emitir mais de 300 documentos temporários, que permitiriam a seus colegas sair da Lituânia. Em um gesto extraordinário, o diplomata emitiu tais documentos sem data de validade e sem nunca ter visto nenhum dos alunos.

O próximo passo era encontrar um país disposto a emitir vistos de entrada para mais de 300 pessoas. Um contato inesperado com o cônsul holandês em Kovno, Jan Zwartendijk, trouxe resultados positivos. O diplomata carimbou os passaportes com a frase "válido somente para Curaçao", o que permitiria, em tese, a entrada dos estudantes e professores na ilha caribenha, então sob domínio holandês.

No entanto, nem tudo estava resolvido. Como os alunos e professores teriam que viajar via Japão e, provavelmente, permanecer no país por um período, antes de poder embarcar para Curaçao ou para outro lugar, era necessário obter vistos de trânsito para o Japão.

O tempo corria e a ameaça pesava no ar. Os soviéticos tinham anunciado que removeriam, nas semanas seguintes, todos os diplomatas que ainda operavam na Lituânia. No entanto, provavelmente ansiosas por se livrar de elementos indesejáveis, as autoridades soviéticas concederam uma brecha para os membros da yeshivá e para outros refugiados judeus: se conseguissem obter os vistos de trânsito para o Japão, o governo honraria os documentos e os deixaria partir.

Em março de 1939, o Japão havia aberto em Kovno um escritório consular e nomeado como cônsul-geral Chiune Sugihara. Quando, em julho de 1940, as autoridades soviéticas determinaram que todas as embaixadas estrangeiras deixassem Kovno de imediato, Sugihara solicitou e obteve autorização para permanecer mais 20 dias. Além do holandês Jan Zwartendijk, Sugihara era o único cônsul estrangeiro na cidade.

Assim, com um terno emprestado por um rabino, Moses Zupnik foi ao consulado japonês levando os documentos. Enfrentou pacientemente a longa fila para conseguir uma audiência com o cônsul Sugihara. Mas, por causa do grande número de pessoas, não conseguiu falar com o diplomata. No dia seguinte, com a ajuda de um amigo, Zupnik subornou um guarda e viu-se diante de um assistente do cônsul.

Quando anunciou que precisava de mais de 300 vistos de trânsito, ouviu uma resposta seca: "Impossível". O estudante não se deu por vencido e insistiu em falar pessoalmente com o cônsul. Quando conseguiu ser recebido por Sugihara, expôs os problemas que os membros da yeshivá estavam enfrentando. O cônsul ouviu atentamente. Sabia do drama dos refugiados judeus, mas antes de concordar precisava de garantias de que o grupo não se tornaria um ônus financeiro para o Japão. Zupnik fez o melhor que pôde para tranqüilizá-lo.

Sensibilizado, Sugihara decidiu ignorar as instruções que recebera de seu governo, para que rejeitasse os pedidos de visto para refugiados judeus, em geral, e para os membros da Yeshivá Mirrer, em particular.

O diplomata decidiu correr o risco e conceder os vistos de trânsito. Quarenta e cinco anos mais tarde, quando lhe perguntaram por que o fizera, respondeu: "Eles precisavam de ajuda e eu não poderia permitir que morressem. Não importava a punição que poderia receber; sabia que devia seguir a minha consciência. Estou feliz por ter tido a força de tomar a decisão de conceder os vistos. Posso ter desobedecido meu governo, mas se eu não agisse assim, estaria desobedecendo D'us".

Mas havia ainda outro obstáculo a ser superado. Apesar de se ter sensibilizado com a situação desesperadora dos judeus e se dispor a ajudá-los, o diplomata disse ao jovem que não tinha funcionários suficientes para produzir fisicamente os 300 vistos. Zupnik se ofereceu para ajudar.

É inexplicável o fato de que Sugihara, que conhecera Zupnik pela primeira vez naquela audiência, tenha aceitado a oferta. Mas foi o que ocorreu. No mês seguinte, Zupnik e mais dois amigos trabalharam dia e noite ajudando Sugihara e sua esposa a emitir vistos, não apenas para os membros da Yeshivá Mirrer, mas para muitos outros refugiados, também. Algo pitoresco aconteceu: como os vistos tinham que ser copiados a mão e os jovens não sabiam japonês, acabaram copiando todos os vistos exatamente iguais. O nome de todos os 300 membros da yeshivá saiu como Rabinovitz, sendo que alguns nomes foram até copiados ao contrário. Quando eles finalmente chegaram à fronteira japonesa, outro fato extraordinário aconteceu. Os guardas, apesar de terem notado as curiosas irregularidades, deixaram passar os jovens. Uma estranha "conspiração de bondade" se criara em favor da turma da Yeshivá Mirrer.

Assim que todos os documentos ficaram prontos, alguns jovens dirigiram-se para o Intourist, escritório oficial do governo soviético autorizado a permitir viagens através de seu território, para finalizar os preparativos. Lá se depararam com a notícia de que as autoridades soviéticas haviam elevado a "taxa" de saída e que o pagamento só podia ser efetuado em dólares americanos. Um absurdo, pois pela lei soviética era ilegal possuir ou portar dólares americanos e a pena para o crime era de dez anos de prisão. Os funcionários do Intourist lhes deram duas opções: "prometeram" que não os processariam por possuir dólares (uma garantia sem fundamento); ou "insistiram" para que pedissem "a seus parentes americanos para enviar US$ 400 por pessoa". Naquela época, uma fortuna. Os membros da Yeshivá de Mir ficaram desesperados.

Zupnik e outros jovens telegrafaram ao rabino Kalmanowitz, pedindo-lhe que enviasse o dinheiro necessário para a viagem. Ele imediatamente se pôs a trabalhar para arrecadar os fundos. Passados três meses e com a ajuda do Va'ad Hatzalah - organização ortodoxa dos EUA e do Canadá, fundada em 1939 - o rabino Kalmanowitz levantou dinheiro para as despesas de viagem e enviou para Kovno US$ 40 mil. O Va'ad Hatzalah atuou durante a II Guerra Mundial para tentar salvar, de todas as formas possíveis, os judeus da Europa.

A fuga da Yeshivá Mirrer estava-se tornando uma realidade. Os alunos e professores viajaram em grupos de 50 pela ferrovia Transiberiana para Vladivostok, o porto siberiano no Pacífico, de onde embarcaram para Kobe-Ku, porto no Japão. Não foi uma viagem fácil. Quando 15 jovens foram presos pela polícia russa, em Vladivostok, mais dinheiro foi necessário para subornar os policiais para que os soltassem. Finalmente, todos conseguiram embarcar e chegaram sãos e salvos ao Japão. Mais obstáculos os aguardavam. Enquanto esperavam vistos de entrada para os EUA, no dia 7 de dezembro de 1941 o Japão atacou Pearl Harbor e o governo americano declarou guerra ao país.

A comunidade judaica sefaradita de Kobe, composta por judeus originalmente vindos de Bagdá, recebeu os membros da Yeshivá Mirrer calorosamente e colocou à sua disposição uma de suas sinagogas. Em pouco tempo, os alunos e professores, cientes que teriam que ficar no Japão até o término do conflito, se organizaram para retomar seus estudos. Mas a jornada estava longe de ser encerrada. A odisséia recomeçou quando os japoneses forçaram toda a comunidade Mirrer a se deslocar para Xangai, na China, na época sob ocupação japonesa.

Nessa cidade, foi a comunidade sefaradita local que novamente os ajudou e a Yeshivá passou a funcionar em uma sinagoga emprestada. Entretanto, devido à longa viagem e aos perigos que tiveram de enfrentar, não haviam trazido o Talmud completo. Precisavam de todos os volumes para continuar seus estudos. A solução era imprimi-los; foi assim que milhares de livros judaicos foram impressos em Xangai.

Durante a guerra, era difícil a vida dos judeus em Kobe e Xangai, mas suportável. Coube ao rabino Kalmanowitz a delicada tarefa de prover o sustento para os membros de sua instituição durante todo o conflito. Na época, os EUA haviam sido tomados por uma histeria anti-japonesa, o que tornava impossível enviar fundos para o Japão, inimigo declarado do governo americano. Usando todos os seus dons diplomáticos, o rabino Kalmanowitz conseguiu a aprovação silenciosa do governo americano para enviar, através da Suíça, os fundos necessários para a sobrevivência dos membros da yeshivá. Após o término da II Guerra, alguns alunos da Mirrer foram para Israel, enquanto quase todos emigraram para os EUA. Quando desceram do navio em São Francisco, em setembro de 1946, foi o próprio rabino Kalmanowitz quem os recebeu.

Muitos anos depois e a milhares de quilômetros de distância de Mir, as yeshivot foram reconstituídas em dois novos lares - Brooklyn, N. York, e em Jerusalém.

Em 1984, o Memorial do Holocausto Yad Vashem, de Israel, incluiu Chiune Sugihara no grupo seleto dos "Justos entre as Nações", por sua corajosa ajuda à Yeshivá Mirrer e aos judeus refugiados, durante a II Guerra Mundial. Em 1997, o Yad Vashem reconheceu também Jan Zwartendijk, como um "Justo entre as Nações".

Bibliografia:

Shapiro, Chaim, The Mirrer Yeshiva's Escape From Europe , artigo publicado na revista Jewish Observer , maio de 1973

To Life, 36, Stories of Memory and Hope, Museum of Jewish Heritage a Living Memorial to the Holocaust

Catálogo publicado por ocasião da exposição itinerária "Visas for Life: The Righteous Diplomats" http://www.un.org/events/highlights/visa.html