A história da Alemanha é longa e turbulenta e a vida dos judeus que lá viviam, difícil. Eram discriminados, alvo de perseguições e massacres, acusados de assassinato ritual, de envenenamento dos poços e assim por diante. Chegaram ao auge de sua posição na sociedade durante a República de Weimar, no século 20, mas nesse mesmo século ainda teriam que enfrentar seu pior pesadelo. Atualmente, cerca de 200 mil judeus vivem na Alemanha.

Em sua longa história, os judeus alemães deram origem ao Judaísmo ashquenazita e ao reformismo judaico. São responsáveis, também, por uma parcela significativa da cultura alemã – na arte, na literatura, na música, na ciência, na filosofia. Centenas deles fizeram inúmeras descobertas científicas, outros tanto ganharam o Prêmio Nobel. Outros ainda, como Albert Einstein e Karl Marx, mudaram a história da humanidade.

Nosso intuito é apresentar a história dos judeus desde o início de seu assentamento na Alemanha até hoje. Quando fazemos referência à história da Alemanha, estamos nos referindo a acontecimentos ocorridos nos territórios de língua alemã que correspondem aproximadamente ao Estado formado em 1871, quando foi constituído o Império Alemão.

Seria impossível, ainda que resumindo, contar sua longa saga numa única matéria. Sendo assim, dividiremos o assunto em várias edições. Nesta edição, cobriremos as primeiras comunidades, a Idade Média – período em que, apesar da terrível perseguição, os judeus alemães vivenciaram um renascimento religioso que os levou a serem os sucessores dos centros religiosos da Espanha e da Babilônia.

Período Romano

São raras as informações sobre a chegada dos primeiros judeus na Alemanha, região denominada pelos romanos de “Germânia”. Sem limites bem definidos, a Germânia fazia parte do Império Romano e estendia-se desde a margem ocidental do Reno até as estepes da Rússia. A presença romana na região remonta ao século 1 Antes da Era Comum (AEC), quando Roma passa a subjugar tribos germânicas que viviam a oeste do Rio Reno e ao sul do Rio Meno (Main, em alemão). O Talmud e o Midrash utilizam o termo Germania ou Germamaia1 para indicar o norte da Europa, descrevendo as proezas militares dos povos que lá habitavam e o perigo que representavam para o Império Romano.

Há, no entanto, informações de que no século 1 da Era Comum havia judeus acompanhando as legiões romanas deslocadas para a Germânia. Eram artesãos, comerciantes e médicos que se foram estabelecendo nas cidades romanas. Muitos haviam sido trazidos para a Itália, após as Guerras Judaicas em Eretz Israel, como prisioneiros e, já libertos, procuravam um lugar para se assentar.

Achados arqueológicos indicam que, no século 4, havia judeus vivendo em Augusta Raurica, às margens do rio Reno, e em Augusta Treverorum, na Renânia-Palatinado. Há também decretos imperiais datados de 321 e 331, sobre a presença de uma comunidade judaica em Colônia (Colonia Claudia Ara Agrippinensium), capital da Germânia Inferior.

Nos séculos 4 e 5 muda o curso da história da Europa. Inicia-se o fortalecimento do Cristianismo, até então considerado por Roma uma religião “ilícita”. Legalizado pelo Édito de Constantino, em 313, e confirmado pelo Édito de Teodósio, em 380, o Cristianismo passa a ser considerado religião oficial do Império Romano. Em paralelo, a religião judaica passa de “lícita” para “reconhecida” e, depois, para “tolerada” – até ser completamente odiada.

Ainda no século 4, o Império Romano do Ocidente perde força militar e coesão política. As legiões romanas não conseguem impedir que tribos germânicas adentrem pelas fronteiras do Império, o que faz com que diferentes tribos se estabeleçam na Grã-Bretanha e na Europa Ocidental.

Em 476, Odoacro, comandante germânico de legiões romanas, lidera uma revolta militar e depõe o então imperador. A coroação de Odoacro como primeiro rei da Itália marca o fim do Império Romano do Ocidente e o início da Idade Média.

Alemanha Medieval

Já no século 3, na região que hoje constitui a Alemanha, os Alemanni, tribos germânicas que viviam no Reno Superior, haviam rompido as linhas fortificadas romanas, estabelecendo-se ao longo do Rio Meno, expandindo seus domínios nos dois séculos seguintes. As tribos acabam unindo-se e criam uma confederação denominada Alamannia ou Alemannia. As primeiras fontes judaicas medievais usam o termo Allemania ou Lothir (Lotaríngia2) ao se referir à Alemanha. O termo bíblico Ashquenaz só passou a ser utilizado posteriormente.

Apesar de haver comunidades judaicas nas províncias romanas da Germânia, não há evidências de que houvesse judeus vivendo de forma permanente no território da atual Alemanha – até a criação da Alamannia, no século 3. Os comerciantes judeus da Itália e da França eram bem recebidos e muitos se estabeleceram nas cidades ao longo dos grandes rios e rotas comerciais.

Em 496, Clóvis I, rei dos francos, derrota a Alamannia e anexa seus territórios. Seu batismo, em 508, é um marco importante na história, pois, de acordo com o costume dos francos, a religião do líder devia ser adotada por todos sob seu comando e, ainda que relutassem, os francos acabam por se converter ao Catolicismo.

A princípio, a vida dos judeus não sofre sérias mudanças. Em termos jurídicos, permaneceram em pé de igualdade com os demais habitantes, com os quais mantinham relações amistosas. Podiam possuir propriedades, viver onde quisessem, seguir a ocupação que desejassem, inclusive na agricultura, e até mesmo ter cargos públicos.

Período Carolíngio

Em 752, Pepino, o Breve, responsável por interromper o avanço muçulmano na Europa, foi proclamado rei dos francos, dando início à dinastia carolíngia.

Com a morte de Pepino, sobe ao trono seu filho Carlos Magno (768-812). O novo soberano expande seus domínios, conquistando, entre outros, todo o Reino Lombardo, e os domínios saxões e bávaros. Torna-se o mais poderoso monarca da Europa e o Papa Leão III procura sua proteção para a Igreja. A aliança entre o poder temporal – na pessoa de Carlos Magno – e o espiritual – na pessoa do Papa – é selada em Roma, no ano 800, quando Leão III coroa Carlos Magno Imperador do Sacro Império Romano.

Apesar da estreita aliança com a Igreja, Carlos Magno manteve boas relações com a população judaica. Suas campanhas de conversão forçada dos pagãos ao Catolicismo não incluía os judeus, a quem era permitido manter sua religião.

Os favores e a proteção que o imperador estendeu aos judeus são cercados por lendas, mas o monarca estava ciente das vantagens trazidas a seu império pela presença dos judeus, poliglotas e com extensas conexões com outras comunidades judaicas da Diáspora. Em troca de sua promessa de aliança e lealdade, o imperador lhes assegura proteção e privilégios, bem como o direito de gerir sua vida, sua propriedade e a prática de sua religião. Deu-lhes liberdade em suas transações comerciais, apesar dos impostos que lhes eram cobrados serem mais elevados do que aos não-judeus. Ademais, continuavam a desfrutar o privilégio da autogestão de suas comunidades – mais uma vez, em troca de pagamento aos cofres reais.

Entre as Capitulares, leis escritas que Carlos Magno aplicou a seus súditos, algumas tratam diretamente dos judeus. Determinou, entre outros, que um judeu poderia levantar uma acusação contra um cristão, mas precisava apresentar de quatro a sete testemunhas, enquanto ao cristão bastavam três. Entre as várias disposições, estava a garantia de que seria punida qualquer violência contra eles. Um oficial imperial, denominado Magister Judaeorum ou Judenmeister, isto é, Mestre dos Judeus, era encarregado pela Coroa de proteger os direitos judaicos e supervisionar o cumprimento das determinações imperiais.

Ao longo das margens do Reno floresciam comunidades judaicas. Os judeus participavam ativamente da vida econômica e podiam ser encontrados em todas as esferas governamentais, tanto em posições subordinadas, como cobradores de impostos, quanto nas altas esferas do poder. Tal foi o caso de Isaac, o Judeu, que Carlos Magno enviou como embaixador à corte do Califa abássida, Harun al-Rashid. Outros atuavam como fornecedores da Corte Imperial ou como administradores das finanças de instituições religiosas católicas. O médico pessoal do rei era um judeu chamado Ferragut. O status dos judeus permanece inalterado após a morte de Carlos Magno, quando, em 814, seu filho Luís, o Piedoso, sucede-o no trono.

Na Idade Média, havia na Alemanha comunidades judaicas em Colônia, Mainz, Speyer, Worms, Tiers, Regensburg, Frankfurt e ao longo da margem ocidental do Reno, bem como na Lorena. O idioma diário usado pelos judeus era igual ao falado pelo restante da população: o alto-alemão médio, ou algum dialeto germânico, ao passo que o hebraico era usado nas orações e nos estudos.

A primeira menção a uma comunidade judaica em Mainz data do ano 900; em Worms, de 960; em Regensburg, de 981; e em Speyer, em 1084. Documentos do século 11 mencionam comunidades judaicas na região centro-sul da Alemanha – Bamberg, Wurzburg, Thuringia (Erfurt), Munique e Berlim. Essas datas, no entanto, não indicam necessariamente a seqüência na criação dessas comunidades. Há, também, registros sobre sinagogas inauguradas em Speyer, em 1104; em Worms, em 1174-5; em Regensburg, em 1210-20, e, em Nuremberg, em 1296.

Fragmentação do poder político

Com a morte de Luís, em 840, seus filhos disputam a sucessão do império dando início a um período de guerras civis. Em 843, o Tratado de Verdun divide o Império Carolíngio em três: a parte central e o título imperial couberam ao filho mais velho, Lotário; a ocidental a Carlos, o Calvo; e a oriental a Luís, o Germânico. Essa divisão estabeleceu as bases para o desenvolvimento das atuais França e Alemanha, e sua divisão cultural e linguística.

A parte oriental do Império Carolíngio foi-se enfraquecendo ainda mais com a ascensão de ducados regionais, os chamados “ducados-troncos”3 (Francônia, Saxônia, Bavária, Suábia e Lorena), que adquiriram o status de pequenos reinos. Essa fragmentação territorial marcava o início do particularismo4 alemão, no qual os governantes de cada domínio promoviam seus interesses e autonomia. Mas, como veremos mais adiante, esse particularismo vai ser de grande importância quando, nas demais nações europeias, começam a expulsar os judeus locais.

Com a extinção da linhagem carolíngia, em 911, a monarquia se torna eletiva. Os eleitores eram governantes dos “ducados-tronco” que formavam o reino. O primeiro imperador eleito é um alemão, Conrad I, duque da Francônia (reinou de 911- 918). Para muitos historiadores, sua eleição marca o início da história alemã.

Quando, em 936, Otto, o Grande, sobe ao trono, começa subjugando os duques, expandindo os domínios da Coroa e se aliando à Igreja. Sai ainda mais fortalecido quando o Papa João XII, enfrentando tumultos políticos na Itália, pede sua ajuda. Em 962, o Papa o coroa Imperador do que passaria à história como o Sacro Império Romano-Germânico. A dinastia otoniana5 governou entre 919 e 1024. Durante esse período, a vida judaica não sofreu mudanças.

Para entender a complexa história alemã é necessário abrir um parêntese e explicar brevemente o que era o Sacro Império Romano-Germânico, que duraria até 1806. Territorialmente extenso, era composto por reinos, principados, ducados e cidades imperiais livres, que, apesar de serem vassalos do Imperador, possuíam privilégios que, desde o ano de 1232, lhes conferiam independência de facto em seus domínios. O trono era frequentemente disputado e as dificuldades para eleger um imperador levaram ao surgimento de um colégio fixo de príncipes-eleitores, o Kurfürsten. As lutas pelo poder tornavam praticamente impossível a formação de um governo central forte.

O maior território do Império após 962 era o Reino da Alemanha, localizado na atual República Federal Alemã.

Kehilot ShUM – berço do Judaísmo ashquenazita

As chamadas Kehilot ShUM – Speyer, Worms e Mainz – eram o centro da vida judaica medieval alemã, influenciando de forma significativa a cultura e as práticas religiosas dos judeus ashquenazim.

O nome ShUM deriva das primeiras letras hebraicas que iniciam o nome dessas cidades: Shin, de Speyer (em hebraico, Shpira); Vav, inicial de Worms (Varmasia); e Mem, de Mainz (Magentza). A relativa estabilidade política e econômica iniciada no século 9 atraiu um grande influxo de judeus na região do Reno. Havia entre eles grandes sábios e rabinos que se defrontaram com o desafio de adaptar as tradições dos judeus da Babilônia, Terra Santa e Mediterrâneo Ocidental às condições da vida judaica ao norte dos Alpes.

Seus ensinamentos, decisões e influência foram fundamentais no desenvolvimento dos costumes e tradições do Judaísmo ashquenazita.

As Takanot ShUm introduziram determinações que fortaleceram a vida comunitária e a autoridade de sua liderança. Quando, por exemplo, havia uma disputa entre judeus, estes não tinham permissão de apresentá-las aos tribunais não-judeus. E, suas ieshivot tornaram-se centros florescentes de estudos judaicos por mais de 500 anos. (Desde essa época o termo “ashquenazi” é aplicado não só aos judeus alemães, mas a todos os judeus da Europa, à exceção dos da Espanha e Portugal).

As comunidades ShUM deixaram-nos uma herança não apenas religiosa e cultural, mas também arquitetônica: sinagogas e mikvot (banhos rituais) em Speyer e Worms, em lindo estilo romanesco. O cemitério judaico de Mainz, com as lápides mais antigas ao norte dos Alpes, e a idade e o estado relativamente intacto do cemitério de Worms, estando em permanente uso há quase mil anos, tornam-no único no mundo.

Mainz, a mais antiga das Kehilot ShUM, foi “a capital do Judaísmo europeu”, como a ela se refere o renomado historiador inglês, John Man. Até final do século 11, vivia nessa cidade a maior comunidade judaica do norte dos Alpes. No século 10, famosos rabinos lá se estabeleceram. Entre eles, membros da família Kalonymos, originária de Lucca, Itália, que durante várias gerações tiveram papel de liderança religiosa e comunitária. A família é tida como a base dos Sábios judeus da Provença e dos Hassidim ashquenazim, que eram um movimento judeu místico na parte alemã da Renânia nos séculos 12 e 13.

Nesse mesmo século estabeleceu-se em Mainz o Rabeinu Gershom Ben Yehudá (960-1028), conhecido como a “Luz do Exílio”. Rabeinu Gershom, “nosso Mestre”, era um modelo de sabedoria e humildade, e suas diretrizes ajudaram os judeus a adaptar seus costumes ao meio onde viviam. A Yeshivá fundada por ele atraía estudiosos de todo o continente. Ele é conhecido por suas Takanot (leis) sobre a vida em família e na sociedade, aceitas por todos os judeus da Europa. As mais conhecidas são a proibição da poligamia e o decreto contra a abertura de uma correspondência endereçada a outrem.

Idade de Ouro dos judeus alemães

Na historiografia judaica o período que vai do século 9 até o final do século 11 é chamado de “Idade de Ouro dos judeus alemães”. Nesse período, a população judaica e o número de comunidades cresceram. Além de prestamistas, os judeus alemães participavam ativamente no comércio internacional, tendo estabelecido extensas redes de comércio. Suas conexões eram mais abrangentes do que as dos mercadores não judeus, cuja influência mal ultrapassava os locais onde viviam. Eles também se haviam destacado em outras profissões, inclusive como viticultores e artesãos. No século 12, o viajante judeu-espanhol Benjamin de Tudela escreveu que, nas comunidades “na terra da Alemania” havia muitos judeus sábios e ricos.

Essa “Idade de Ouro”, no entanto, não foi um mar de rosas, havendo ataques esporádicos a judeus. No entanto, não foram, de forma alguma, comparáveis aos horrores que eles iriam enfrentar nos séculos seguintes, em consequência direta do fortalecimento da Igreja Católica.

As incessantes lutas pelo poder, bem como a fragmentação do poder político central na Europa e na Alemanha, levaram ao fortalecimento da Igreja Católica que se tornou mais poderosa e duradoura do que todas as Coroas. Desde o século 4, a Igreja codificara grande parte de sua doutrina, incluindo os conceitos de que os judeus eram um “povo rejeitado” que devia ser separado econômica e socialmente dos cristãos. Entre outras características “maléficas”, a Igreja atribuía a todos os judeus, de todas as épocas, a suposta “culpa” pela morte de Jesus. Essa noção impregna o pensamento e o imaginário cristão, resultando em manifestações de desprezo, hostilidade e violência.

Porém, apesar das pressões da Igreja, os judeus continuaram por vários séculos a desfrutar da proteção dos imperadores, príncipes e, ironicamente, das altas autoridades eclesiásticas que consideravam seus talentos e suas riquezas necessários. E, quando a Igreja proibiu os cristãos de emprestar dinheiro a juros, eles ficaram com o monopólio dos empréstimos – sempre pagando mais impostos que o restante da população. Sua relação com os governantes era, por assim dizer, simples. Eles recebiam cartas de privilégios e direitos de residência e, em troca, concediam empréstimos e, entre outros, eram incumbidos pelos governantes de coletar impostos. A população cristã os encarava com mais hostilidade ainda, fosse por motivos venais ou espirituais.

Mas, em fins do século 11, a Igreja endurece suas exigências, fazendo com que os direitos civis dos judeus sofressem vários reveses. Em 1012, ocorreu a primeira expulsão de que temos conhecimento, quando foram banidos os 2 mil judeus que viam em Mainz.

A 1ª Cruzada e suas consequências

A 1ª Cruzada foi proclamada em 26 de novembro de 1095, pelo Papa Urbano II, em Clermont, França, com o objetivo de auxiliar os cristãos bizantinos e libertar Jerusalém e a Terra Santa do jugo muçulmano. Para os judeus, as consequências foram nefastas, dando início a uma tradição de extrema violência contra as populações judaicas.

A “verdadeira” 1ª Cruzada, conhecida como a “Cruzada dos Nobres”, seria iniciada em agosto de 1096; mas, meses antes, uma turba que incluía cavalheiros de baixa estirpe, inicia um movimento extraoficial, a chamada “Cruzada Popular” ou “dos Mendigos”. Muitos cristãos não viam razão para atravessar um continente para lutar contra os inimigos do Cristianismo, quando outros “infiéis”, os judeus, viviam em seu meio.

Em abril de 1096, em Rouen e Normandia, mais de 10 mil cristãos iniciam sua própria guerra contra “os infiéis europeus”. Seguem em direção ao Norte (direção oposta a Jerusalém), saqueando e assassinando todos os judeus à sua frente. A lista de comunidades atacadas é longa. Ao chegarem a uma cidade, a eles se juntava um populacho pronto a matar e pilhar as riquezas da população judaica. Essa turba cristã não era levada apenas por motivos religiosos, muitos queriam enriquecer ou pôr um fim às dívidas que tinham com os judeus.

Os massacres mais violentos ocorreram no vale do Reno, e são recordados nos anais judaicos como as Guezerot Tatnav (Desgraças do ano judaico de Tatnav, isto é, 48566). A frágil proteção dada aos judeus pelo Imperador e pelos bispos não evitou uma catástrofe de dimensões dantescas. Entre maio e julho de 1096, no vale do Reno, foram mortos mais de 12 mil judeus, suas comunidades e sinagogas totalmente arrasadas. Os relatos em hebraico narram como eles tentaram uma resistência armada, mas quando viram a desproporção em seus números e armas, optaram, com uma coragem indomável e extrema devoção religiosa, pela morte dos mártires (al Kidush Ha-Shem), ao invés do batismo.

No dia 3 de maio de 1096, os cruzados chegaram em Speyer:

11 judeus foram mortos, o restante foi salvo pelo bispo da cidade. Worms foi atacada uma semana mais tarde. Famílias inteiras foram chacinadas. Ao perceber que não havia como escapar da fúria dos cruzados, os judeus refugiados no palácio do bispo optaram pela morte al Kidush Ha-Shem. “No dia 25 de Iyar (….) santificaram-se em Nome de D’us, (…) e entregaram suas almas ao Todo Poderoso, bradando, ‘Ouve Israel, o Eterno é Nosso D’us, o Eterno é Um’”. O saldo foi de mais de 800 judeus mortos.

Em Mogúncia, mais de mil judeus se refugiaram no palácio episcopal. O cronista cristão Albert de Aix testemunhou o momento em que os cruzados adentraram o palácio: “Armados com picaretas e lanças, atacaram os judeus (..) matando 700 deles…”. Um dos poucos sobreviventes, Shlomo bar Shimon, relatou: “Quando os filhos da Aliança Sagrada … presenciaram a chegada dos cruzados, prepararam-se para o combate. Mas, ao perceber que seu destino estava selado, incentivaram-se uns a outros dizendo: (..) os inimigos nos matarão, porém nada interessa mais do que nossas almas puras entrando na Luz Eterna ... Juntos, gritaram: ‘Bem-aventurados aqueles que sofrem em nome de um D’us Único’”. Mais de 1.300 corpos de judeus foram retirados do palácio episcopal. A comunidade de Colônia, porém, conseguiu salvar-se, pois quando os cruzados chegaram, em 1º de junho, os judeus já se haviam dispersado.

Nenhum dos que participaram da “Cruzada dos Mendigos” chegou à Terra Santa. O cronista Albert d’ Aquisgran relata: “Depois das crueldades cometidas, carregando as riquezas roubadas aos judeus, …. a Cruzada continuou sua viagem rumo a Jerusalém, passando pela Hungria”. Lá foram aniquilados pelo rei húngaro, Koloman.

É importante observar que apesar de ocasionalmente o Papa condenar tais ataques, a falta de veemência ou punição lhes dava uma aprovação implícita. Os ataques continuaram. Em 1144, quando é convocada uma nova Cruzada, apenas a intervenção do abade Bernard de Clairvaux conseguiu frear novos massacres.

Durante as cruzadas seguintes, nos séculos 12 e 13, milhares de judeus foram repetidamente colocados entre a cruz e a espada: a conversão ou a morte. A grande maioria optou, também, por morrer em Santificação do Nome Divino (Al Kidush HaShem).

Vida espiritual e comunitária

A resposta judaica a tanto sofrimento foi um florescimento ainda maior da espiritualidade e devoção religiosa. Dedicavam-se ao estudo da Halachá7. Vários alunos do Rabi Guershom foram os mestres daqueles que, tempos depois, seriam os professores do Rashi, cujos comentários no Pentateuco e no Talmud abriram novos caminhos para o estudo.

Os judeus alemães contribuíram para disseminar e completar esses comentários. A partir do século 12, trabalharam no campo da Hagadá e da Ética. A obra Yalkut, de Rabi Simon ha-Darshan (c. 1150); o Livro dos Piedosos, do Rabi Yehudá ha-Hassid de Ratisbon (c. 1200); a obra do Rabi Eleazar de Worms (c. 1200); a coleção de Halachá, Or Zarua, do Rabi Itzhak de Viena (c. 1250); ou a responsa do Rabi Meïr de Rothenburg (falecido em 1293), são monumentos perenes da devoção judaico-alemã.

Ainda nos séculos 12 e 13, os Hassidei Ashquenaz, homens devotos da Alemanha, formulam os princípios da devoção total. As gerações que se sucederam passaram a glorificar a morte al Kidush Ha-Shem ao invés da apostasia. A partir da 1ª Cruzada, os judeus vivem cada vez mais entre si, em bairros judaicos, o que lhes dava a possibilidade de manter uma vida social coesa, em maior segurança. Cada comunidade de tamanho médio tinha a sua sinagoga, uma mikvê, um local para suas cerimônias festivas e seu cemitério.

É também nesse período que os judeus seguem o fluxo de imigração dos alemães cristãos, a caminho do Leste. Com a bem-sucedida colonização das terras eslavas, o império passa a incluir Pomerânia, Silésia, Boêmia e Morávia. O número de judeus a se estabelecer nessa região cresce em consequência da intensificação das perseguições.

Mudanças econômico-sociais

No início do século 13, o papado atingira o auge de seu poder. Em 1215, o Concílio Latrão IV, liderado pelo Papa Inocêncio III promulgou cânones antijudaicos visando “impedir a contaminação dos cristãos”. O Concílio “alertou” os monarcas da Europa no sentido de adotar uma legislação que obrigava toda a população judaica a viver em bairros separados e a portar em suas vestes o “distintivo judaico”, humilhante e discriminador. Eram, também, proibidos de exercer “profissões cristãs”, ocupar cargos públicos, sendo banidos da agricultura e das corporações. Além disso, o Concílio aprovou canonicamente a Inquisição, instituindo os tribunais do “Santo Ofício”.

A condenação da usura, ainda mais severa, e o fato de as corporações das cidades já terem forçado os judeus a deixar suas diferentes atividades comerciais, fazem com que os empréstimos e as penhoras passem a ser a principal ocupação dos judeus da Alemanha. O ódio religioso das massas passa a ser alimentado ainda mais por motivos econômicos.

A Coroa estava ciente de que precisava dar proteção legal aos judeus, pois seu valor econômico em muito superava qualquer sentimento antissemita. A primeira tentativa havia sido a emissão de cartas de residência e privilégios. Mas, após os ataques dos cruzados, ficou claro que os judeus necessitavam proteção contra o fanatismo das turbas cristãs – não como residentes, mas como súditos. Surge uma solução temporária com o tratado de Paz Geral, em 1103, que classifica os judeus, junto com as mulheres e os clérigos, como pessoas sujeitas à proteção pelo fato de não conseguirem se auto proteger.

Em 1236, muda mais uma vez a condição judaica. O imperador Frederico II declara todos os judeus como Kammerknechtschaft (em latim, Servi camerae regis, servos da Câmara Real). Isso significava que a receita gerada por eles era uma regalia do imperador e, portanto, pertencia ao tesouro imperial (“câmera”), e era obrigação do Imperador protegê-los. Do ponto de vista legal, a condição de Kammerknechtschaft significava que os judeus e suas posses eram “propriedade” dos imperadores.

É bem verdade que os judeus passaram a ter um maior grau de proteção, mas os imperadores usavam suas prerrogativas mais com o propósito de cobrar mais impostos do que de protegê-los. Com o tempo, eles descobriram outras formas de tirar partido de “seus” judeus, vendendo, por alto preço, o direito de lhes cobrar impostos.

Ademais, com a extrema necessidade de receita dos governantes, envolvidos em infindáveis guerras, os judeus são convidados a voltar aos locais de onde haviam sido expulsos. Contudo, dependendo dos interesses econômicos dos donos do poder, eram novamente expulsos. Era a chamada “política da esponja”, cujo modus operandi era simples: os judeus eram incentivados a emprestar dinheiro; em seguida, eram “espremidos”: tributação especial e outros artifícios escusos. E, como último recurso, eram expulsos e seus bens, confiscados. Decorrido algum tempo, eram convidados a retornar. E o ciclo se repetiu durante toda a Idade Média. Na Alemanha, cada nova expulsão enfraquecia as comunidades, ainda que posteriormente fossem convidadas a retornar.

Violência antijudaica nos séculos 13 e 14

No final do século13 e na primeira metade do 14 a violência antijudaica aumentou em toda a Alemanha e, durante 50 anos, os judeus sofreram ataques devastadores. No final da Idade Média, eles se tornam os “responsáveis” por todas as desgraças que atingiam os cristãos. Para se entender a percepção do judeu no imaginário cristão, basta dar uma olhada na literatura e arte medieval – eles eram colocados no mesmo nível que os demônios. Com o tempo, foram alvo de mais acusações – assassinato ritual, profanação da hóstia, envenenamento dos poços d’ água, entre outras. Foram acusados de praticar assassinato ritual emMainz (em 1281 e 1283), Munique (1285) e Oberwesel (1287). Em 1241, 80 judeus foram mortos em Frankfurt durante um pogrom conhecido como Judenschlacht (Matança dos Judeus).

A primeira perseguição em grande escala contra os judeus, desde a 1ª Cruzada, ocorreu em 1298. Quando uma guerra civil estourou na Alemanha do Sul e Central, um cavaleiro da Francônia de nome Rindfleisch, estando em dívida com banqueiros judeus, declara ter sido incumbido de uma “missão divina: exterminar os malditos judeus”. Os pogroms conduzidos por Rindfleisch começaram em abril de 1298, em Rottingen, quando 21 judeus acusados de “profanar a hóstia” são queimados na estaca. Rindfleisch liderava uma turba de cristãos que massacrou e pilhou comunidades judaicas em Francônia e na Bavária. O resultado foi a destruição de 146 comunidades judaicas, entre elas as de Rottenburg, Wüezburg, Nuremberg e Bamberg. Em muitos lugares, os judeus resistiram com armas em punho, mas mais de 100 mil perderam a vida, muitos escolhendo morrer al Kidush Hashem. O Imperador Albert I inutilmente advertiu a multidão desordenada contra outros ataques, mas os massacres continuaram em Gotha (1303), Renchen (1301) e Weissensee (1303).

O período de 1336-37 foi marcado pelos catastróficos Pogroms dos Armleder8, que destruíram 110 comunidades judaicas da Bavária à Alsácia. Para os judeus, o sofrimento estava longe do fim. Outra série de massacres ocorreu na Alemanha durante a Peste Negra, a epidemia de peste bubônica que varreu a Europa e a Ásia (1346-1353). Chegando a seu auge na Europa de 1347 a 1351, a Peste Negra matou entre um terço e a metade da população do continente, estima-se cerca de 25 milhões de pessoas. Os judeus foram acusados de causar o flagelo. Na época não se conheciam as causas da peste; acreditava-se que fosse pestis manufacta, uma doença provocada por uma substância indutora secretamente produzida pelos inimigos do Cristianismo. Os supostos culpados eram os judeus, que teriam envenenado os poços. A Alemanha e todo o resto da Europa foram tomadas por uma gigantesca onda de antissemitismo. Milhares de judeus foram assassinados, suas propriedades destruídas. Na Alemanha apenas, mais de 300 comunidades judaicas desapareceram.

Mas, como não houvesse mais ninguém para cumprir a função de prestamistas na sociedade, após o fim da epidemia os judeus tiveram permissão de voltar a residir em algumas cidades alemãs, mas sujeitos a severas restrições e inúmeros impostos. Entre 1352-1355 eles voltam a Erfurt, Nuremberg, Ulm, Speyer, Worms e Trier.

Houve, também, um aumento na exploração por parte do imperador que passa a exigir um imposto sobre “todo homem judeu e todas as viúvas, de 12 anos de idade para cima”. Declara, também, uma moratória das dívidas aos judeus, em 1385 e em 1390, o que resultou num severo golpe em sua situação econômica.

Por conta dos ataques violentos e dos opressivos impostos, a vida judaica na Alemanha sofreu muitos golpes. Tudo isso não conseguiu destruir sua intensa atividade religiosa, ainda que o estudo profundo e abrangente tivesse se tornado mais raro após meados do século 14. Isso levou ao hábito de permitir que só se tornassem rabinos aqueles que pudessem apresentar uma autorização para ensinar (Hatarat hora’á), emitida por um dos mestres reconhecidos. Os costumes e os regulamentos relativos à forma do culto eram estudados em profundidade, e foram fixados, definitivamente, como o ritual das sinagogas da Alemanha.

O século 15

Não houve mudança, no século 15, quanto à precária situação dos judeus. Foram anos marcados por pogroms, libelos e expulsões. No sul e leste da Alemanha, com menos cidades e a economia mais atrasada, os judeus tiveram mais facilidade de ganhar seu sustento. Era também a rota para a Polônia, que, gradualmente se tornou seu refúgio.

O que acontecera na 1a Cruzada voltou a suceder durante a chamada Guerra dos Hussitas (1419-1434), levando ao reinício das perseguições contra os judeus na Boêmia, Morávia e Silésia. Durante esse conflito armado, os partidários de João Hus, precursor do movimento protestante e considerado herege por Roma, tiveram que enfrentar a Igreja e Albert V, Imperador do Sacro Império. Uma crônica judaica da época, intitulada “Wiener Geserá” (Desgraça de Viena), relata os trágicos eventos. No outono de 1420, irrompe a perseguição; os judeus são presos, torturados e executados; as crianças são vendidas como escravas ou convertidas à força. Todos escolhem morrer Al Kidush HaShem antes que seus algozes os assassinassem.

Logo a seguir, Albert V acusa os judeus de fornecer armas para os hussitas e, em março de 1421, mais de 200 morrem na fogueira. Em 1420, 1438, 1462 e1473 foram sucessivamente expulsos de Mainz, em 1424 de Colônia, em 1440 de Augsburg. Em 1475 outro libelo de sangue ocorre em Trent, provocando ataques contra os judeus em toda a Alemanha, bem como a sua expulsão do Tirol. Várias cidades os expulsaram. Na primeira década do século 16, dentre as mais importantes cidades da Alemanha, apenas Worms e Frankfurt ainda tinham grandes comunidades judaicas. Nessa última, a partir de 1458, a Câmara dos Vereadores começou a construir casas para os judeus fora dos muros da cidade. Após quatro anos, eles foram forçados a se mudar para essas casas. No século 16, a comunidade judaica de Frankfurt era uma das mais importantes da Alemanha.

Nesse período a história da Alemanha foi marcada pela desunião do Império e o enfraquecimento do imperador, em favor dos príncipes. Isso evitou as expulsões, em larga escala e por todo o país, como ocorriam em outros países da Europa. Na Alemanha, quando os judeus eram expulsos de uma área, eles podiam viver temporariamente em um local vizinho, até que pudessem retornar a suas casas. Mas, a falta de uma autoridade central os deixou à mercê dos governantes locais. Em geral, o imperador, os príncipes e as cidades imperiais lhes davam proteção. No entanto, um único pregador fanático tinha capacidade de inflamar as massas contra eles.

Tornou-se constante seu fluxo das províncias do Reno e Danúbio para as terras polonesas. Essa imigração dificilmente teria tido a dimensão que teve não fossem as nefastas circunstâncias que forçaram um grande número de judeus a buscar refúgio na Polônia. O número cresceu em consequência das Cruzadas de 1146-1147 e de 1196, e da intensificação das perseguições durante os séculos 12 e 13.

O final do século 15 é visto como a ponte entre o final da Idade Média e o início do Renascimento, uma nova época para o mundo cristão. Mas que não trouxe alívio nem sossego aos judeus…

1O nome Ashquenaz começa a ser usado apenas na Idade Média.

2O nome Lorena advém do reino medieval da Lotaríngia.

3Ducados-troncos eram os ducados que formavam o reino.

4Particularismo, em política, é o nome que se dá quando o povo de um lugar procura, dentro do Estado, conservar sua identidade, características e autonomia.

5Esta dinastia também é conhecida como dinastia saxônica.

6As letras em hebraico têm valor numérico.

7Halachá, o conjunto de leis e costumes que regem o judaísmo.

8Os Armleder eram marginais que usavam braçadeiras de couro e realizavam pogroms contra os judeus na Alemanha, no século 14.regem o judaísmo.

BIBLIOGRAFIA

Gidal, Nachum Tim, Jews in Germany: From Roman Times to the Weimar Republic, 1998

Gay, Ruth, The Jews of Germany: A Historical Portrait, 1994