Por vinte e um séculos, dos tempos da Roma republicana até hoje, os judeus moraram na ‘ilha do orvalho divino’, ou seja, na Ital yá, conforme a criativa etimologia hebraica. Sua história é a somatória das vicissitudes enfrentadas por muitas comunidades, na maioria localizadas nas cidades.

De Roma a Veneza, de Milão a Palermo, de Mântua a Ferrara e Livorno, estas comunidades ficaram, por séculos, reunidas em seus bairros ou guetos, ao redor das sinagogas. Mais do que uma história, trata-se de um conjunto de histórias regionais e diversificadas, intimamente ligadas à história da Itália, e que, após a queda do Império Romano (476 E.C), só voltou a ser unitário entre 1861-1870, depois das lutas do Ressurgimento.

Apesar do fato de os judeus já se encontrarem na Itália, oriundos da Terra de Israel ou da Magna Grécia, e geralmente radicados em Roma por motivos comerciais e culturais, o grande triunfo na conquista da Judéia pelo Imperador Vespasiano e seu filho Tito - responsável por feroz repressão da mais grave das numerosas revoltas dos judeus - trouxe à capital do Império algumas dezenas de milhares de judeus, entre prisioneiros e fugitivos. Alguns foram vendidos como escravos e resgatados pelos mesmos judeus que já viviam na cidade, enquanto outros se concentraram em Roma, no bairro de Trastevere e na Ilha Tiberina.

Em Roma, os judeus viveram um longo período de paz e prosperidade, com autonomia para erguer suas escolas, sinagogas e catacumbas. Com a progressiva afirmação do cristianismo - legalizado através do Edito de Constantino, em 313, e o Concílio de Nicéia, em 325, e, finalmente, declarado religião oficial do Império Romano com o Edito de Teodósio, em 380 - a religião hebraica passou de "reconhecida" a "tolerada", até ver-se completamente banida.

Os judeus foram perseguidos, embora nunca chegassem à expulsão definitiva, por serem considerados testemunhas das raízes antigas do cristianismo, além de objeto do proselitismo. Foram progressivamente privados de todos os direitos políticos, e proibidos de exercer cargos públicos e determinadas profissões. Não podiam testemunhar contra os cristãos nem podiam erguer novas sinagogas.

Os teólogos e escritores cristãos começaram a atribuir aos judeus - e a todas as suas futuras gerações - a culpa pela morte de Jesus. Este fato impregnou profundamente o pensamento e o imaginário dos povos da Idade Média cristã, provocando recorrentes manifestações de desprezo e hostilidade contra os judeus. Santo Agostinho (354-430), o mais importante entre os teólogos cristãos, afirmava que esse povo, por sua própria existência, era parte do Desígnio Divino, pois eram testemunhas da "verdade" do cristianismo. Segundo o teólogo, a posição desfavorável e a humilhação dos judeus representavam "o triunfo da Igreja sobre a Sinagoga". Esta tese foi adotada como regra da política dos Papas até os dias de hoje.

É importante evidenciar que, na península italiana, a Igreja, grande dominadora, foi o centro de todas as divisões territoriais. Assim sendo, ao longo dos séculos, conforme a política dos vários Papas e das dominações estrangeiras que se sucederam - lombardos, francos, bizantinos, árabes e outros - os judeus se depararam com proteção ou desprezo, tolerância, repressões e reclusões, em todos os seus níveis.

Na Sicília e no sul da Itália, entre o século 9 e 11, sob o domínio árabe-muçulmano, os judeus tiveram um período de grande prosperidade, o que favoreceu um profícuo contato entre as comunidades judaicas sicilianas e as islâmicas, que se estendiam da Mesopotâmia à Espanha.

Dos judeus que viviam no sul da península, em particular na Apúlia (em italiano Puglia), há importantes testemunhos. De fato, eles se encontravam no limite entre três mundos: o bizantino, o dos bárbaros (godos e lombardos) e, posteriormente, o dos muçulmanos.

Devido a essa fragmentação, ocorriam incursões e guerras que mudavam continuamente as fronteiras, e, conseqüentemente, os senhores e povos.

As colônias judaicas localizadas nos portos meridionais da Apúlia (Otranto e Taranto) e ao longo da Via Appia (Brindisi, Oria, Matera, Venosa, Benevento, Cápua) se transformaram em elos de uma corrente que coligava a Terra de Israel e o Oriente a Roma e, através de Roma, a outros núcleos judaicos da Diáspora Ocidental. Parece que justamente a partir da Itália Meridional ocorreu a difusão do Talmud, no Ocidente, além do renascimento da língua e da cultura hebraica.

Testemunhos importantes dos núcleos judaicos italianos nos são nos apresentados no Livro de Viagem (Sefer Massaót) de Benjamin de Tudela, judeu espanhol, comerciante de pedras preciosas, que, entre 1159 e 1172, viajou intensamente pela área do Mediterrâneo. Em suas famosas anotações sobre as condições das comunidades judaicas, recolhidas em qualquer lugar onde parava, Tudela relata que na Sicília e na Apúlia os judeus desfrutavam de situação particularmente favorável.

No ano de 1348, chegaram ao Norte da Itália, Lombardia e Vêneto, duas correntes minoritárias: uma procedia dos países de língua alemã, de onde os judeus eram sistematicamente banidos por causa das cruzadas e da peste; outra corrente provinha da França, devido às expulsões decretadas entre 1306 e 1394, sendo que esta última se estabeleceu nos território do Piemonte. A partir do século 14, devido à queda de qualidade de vida em Roma, ocorreu uma migração de banqueiros judeus que, em várias etapas (Úmbria, Toscana, Marche, Emília - Romana), também aportaram no Norte da Itália. Da fusão das três correntes (alemã, francesa e romana) se originaram as comunidades judaicas da Itália do Norte e Central.

No século 16, uma onda de fugitivos de rito sefardita, procedentes das expulsões da Espanha (1492) e de Portugal (1497), dirigiram-se às florescentes comunidades de Amsterdã e Hamburgo onde, graças ao clima de tolerância encontrado, puderam retomar sua própria religião. Uma parte deles se transferiu, mais tarde, dentro do país, para os Estados de Ferrara e Módena, sob o governo dos Duques d'Este, constituindo a "Nação Hebraica Espanhola e Portuguesa" desses Estados.

Entre as famílias que aqui se hospedaram há que se mencionar a família de Samuel e Benvenida Abravanel e a de Gracia Mendes (Doña Gracia Nasi, ver artigo Morashá no 56) e Samuel Usque. Em certo momento, estes últimos definiram Ferrara como "o refúgio mais seguro da Itália".

Também as cidades de Pisa e Livorno, sob governo dos Médici, hospedaram grande quantidade de judeus sefaradim, em particular de cristãos novos procedentes de Portugal, que formaram a "Nação Hebraica" de Livorno. Outros sefarditas dirigiram-se a outras cidades italianas, como Veneza, Roma e Nápoles.

Outro grupo de judeus se estabeleceram na Itália por motivos políticos ou comerciais. De fato, a condição privilegiada dos judeus, sob domínio muçulmano, transferiu-se para a Europa após a Revolução Francesa; não porque piorasse a situação dos judeus no mundo islâmico, mas porque melhoraram suas condições jurídicas na Europa. Por esta razão, tornaram-se intoleráveis aos judeus as condições reservadas às minorias étnicas no Império Otomano.

Com a anexação de Trieste, Gorízia, Merano e Fiume ao Reino da Itália, em conseqüência da 1a Guerra Mundial, surgiu um novo grupo de judeus oriundos dos países dos quais faziam parte as comunidades das cidades citadas: Áustria e Alemanha. Chegaram ainda judeus da Polônia, Hungria e também da ilha de Corfu.

O historiador Amós Luzzatti afirma que o judaísmo italiano não é asquenazita nem sefardita; tampouco é italiano. É, de certa forma, um Kibutz Galuiot, ou seja, uma reunião de muitas diásporas. E, por esta característica, desenvolveu-se de maneira diferente das demais comunidades judaicas do mundo.

Em 1938, quando da realização do Censo da Raça, pelo regime fascista, viviam na Itália 45.270 judeus. No fim da 2ª. Guerra Mundial, em 1945, depois das perseguições nazi-fascistas e a deportação, os judeus italianos eram 21.000, aos quais se juntaram de 20 a 30.000 refugiados em trânsito, sobreviventes dos Lager, que foram reunidos em campos de refugiados antes de sua transferência para Israel ou as Américas. Parte destes, porém, ficaram na Itália, acabando por se assimilar à população local.

Devido ao nascimento do Estado de Israel, em 1948, e às sucessivas guerras árabe-israelenses (em particular a Campanha do Sinai, em 1956), os judeus que viviam nos países árabes há vários séculos tiveram que fugir, sendo considerados "inimigos sionistas". Muitos foram para a Itália, em particular Roma e Milão. Em Roma, estabeleceram-se especialmente os judeus de Trípoli, enquanto a Milão aportaram egípcios, sírios, libaneses, iraquianos, persas e outros. Todos eles transformaram profundamente a própria estrutura comunitária. Os novos grupos, que, nos países de origem, eram obrigados a viver segregados, tiveram dificuldades para se inserir seja nas comunidades locais seja na cidade. Seguiam os próprios costumes e rituais em sinagogas separadas, falando francês e árabe.

Com a segunda geração, nascida na Itália, muitas coisas mudaram: seus filhos estudam na escola judaica, falam italiano e são bem inseridos na cidade e na sociedade.

O judaísmo italiano, o dos "remanescentes", caracteriza-se sob vários aspectos, dos quais o mais evidente é a auto-definição de Ebrei - não judeus - diversificação que, além da Itália, somente é vista na antiga União Soviética. Segue-se a variação dos sobrenomes, utilizando topônimos, isto é, nomes próprios designativos de cidades ou acidentes geográficos (no caso, as cidades italianas de Milão, Perúgia, Campagnano e outras); ou da geografia espanhola (Franco, Navarro, etc.) ou mesmo da alta nobreza (Fernandez, Diaz etc.). Estes nomes, apesar de não serem judeus, foram emprestados para disfarçar a origem judaica, fato que geralmente acontecia com os cristãos novos. Alguns dos sobrenomes remontam às antigas famílias nobres israelitas da Judéia, como os min-ha-Anawim (Anaw, Anav, Anau), os min-ha-Ne'arim (de' Fanciulli), os min-ha-Tapuchim (De' Pomis), os min-ha-Zequenim (dei Vecchi, Del Vecchio), os min-ha-Adumim (De Rossi) e outros. Alguns dos sobrenomes alemães foram italianizados, ao longo dos séculos, ou seja, foram adequados à pronúncia italiana; outros tiveram que ser italianizados compulsoriamente, por força da lei fascista. Outros sobrenomes derivam de livros sagrados (Mossé), das profissões (Orefici); de verbos (Benvenisti) etc. Muitos sobrenomes têm brasões de família usados nas Ketubot (contratos de casamento), capas de livros, túmulos, não como símbolo de nobreza, mas como referência às atividades mercantis ou profissionais de cada família.

Os "remanescentes italianos" observam um ritual particular de oração, chamado "dos filhos de Roma" (benei Romi), e nas sinagogas de rito italiano podemos constatar uma disposição bilateral do Aron Hacodesh (onde são recolhidos os rolos da Torá) e da Tebá (púlpito de onde se conduzem as preces). Os cânticos nas sinagogas têm especial musicalidade.

A pronúncia do hebraico pelos italianos tem aspectos peculiares e não era muito comum o uso da língua iídiche. Os judeus falavam o dialeto local, no qual intercalavam palavras hebraicas, ladinas, espanholas, portuguesas e dos outros portos por onde a sorte os levara. Formaram-se, assim, grupos de linguagens diferentes, sendo que os diversos dialetos não permitiam que se entendessem entre eles. Entre os mais importantes podemos citar os falados em Roma (romanesco), Livorno (bagito), Ferrara (guetaiolo), o de Veneza e outros. Existiram, também, obras literárias, poesias e peças de teatros escritas nesses dialetos, com tamanho nível de detalhamento lingüístico que podem ser considerados verdadeiros idiomas.

O processo de italianização não impediu aos judeus italianos conservarem, ainda que não homogeneamente, suas próprias peculiaridades étnicas e religiosas.

Acho importante falar um pouco mais da história, pouco conhecida, da presença na Itália dos judeus asquenazitas.

Como já dito, entre 1348 e 1349, todas as comunidades da Alemanha, exceção feita talvez a Ratisbona (Regensburg) e Viena, foram submetidas a massacres sistemáticos. Poucos conseguiram fugir e uma parte destes procurou asilo na Itália, onde a peste também fizera muitas vítimas. Mas o equilíbrio da população e a intervenção da Igreja haviam poupado aos judeus a desonra e os castigos por serem considerados os "propagadores" da doença.

Os asquenazitas procuraram asilo na Itália por vários motivos: enquanto trampolim para Eretz Israel; porque a Itália era considerada - entre 1200 e 1300 - o berço dos estudos hebraicos na Europa; pela existência de famosos rabinos no Sul da Itália, discípulos estes, em parte, das academias talmúdicas da Mesopotâmia. Ainda estava viva em sua memória a família dos Calonimidi de Lucca, que, no século 8, introduziram na Alemanha o estudo do Talmud e a corrente do misticismo.

O próprio ritual alemão foi influenciado pelo romano. Ademais, os judeus alemães já mantinham relações comerciais regulares com a Itália e freqüentemente visitavam a península para tratar de negócios. Os judeus de Graz, por exemplo, detinham em suas mãos o comércio de Veneza.

A imigração alemã progredia à medida que progrediam as perseguições nos países alemães. Os imigrantes fixaram-se primeiro na Itália Setentrional, cuja população judaica era muito escassa, enquanto os judeus que provinham da Terra de Israel estabeleceram-se no Sul. Estes, aos poucos, espalharam-se por todo o Vêneto, a Lombardia e o Piemonte, chegando até o Estado do Mar da República de Veneza e das Marcas. Ao redor de 1490, numerosos judeus alemães teriam chegado às cidades do Reino de Nápoles, devido à excepcional concessão, em 1498, do direito de cidadania plena para qualquer pessoa que escolhesse como residência uma de suas cidades.

A população judaica local, bem como as autoridades, acolheram os imigrantes com cordialidade e as relações entre os dois grupos foram geralmente muito boas. Logicamente essa massa imigratória transformou a fisionomia do judaísmo italiano, especialmente na Itália do Norte, onde, no início de 1500, as comunidades alemãs se tornaram predominantes. Depois das expulsões da Itália do Sul, em 1492, governada pelos espanhóis, e a chegada dos judeus espanhóis, nas primeiras décadas de 1500, a relação entre judeus italianos e alemães ficou mais estreita. A razão para tal aproximação foi o fato de os dois grupos se sentirem rejeitados pelo novo elemento, rico ou mesmo abastado, com seus rituais diferentes e uma atitude arrogante frente aos correligionários locais.

De qualquer forma, nas comunidades e dentro das famílias, os três principais ritos - italiano, alemão e espanhol - conservaram-se aos mínimos detalhes, através dos séculos, até tempos recentes. Este fenômeno, totalmente especial ao judaísmo italiano, nunca mais se repetiu nos países da Diáspora. Com o passar o tempo, porém, devido às influências recíprocas, os contrastes foram mutuamente atenuados.

Os rabinos alemães possuíam profunda cultura talmúdica, eram grandes peritos nos diferentes períodos talmúdicos (posequim) e era total a observância às leis da Torá. Mas possuíam escasso conhecimento da cultura geral, do método científico, do estudo da medicina, do latim e do grego. Estes judeus aprenderam, na escola de Gutenberg (que imprimiu a estampa da sua Bíblia em 1456), a arte da tipografia e a introduziram na Itália. Os tipógrafos da família Soncino contaram-se entre os mais famosos do período e eram bem conhecidos também no mundo cristão. O fundador da família Soncino foi o Rabino Moshé de Spira (Speyer), cujas tipografias se espalharam pela Itália do Centro e do Sul, representando, seus livros, verdadeiras jóias da arte tipográfica.

Como dito acima, os judeus alemães emigrados para a Itália, de 1300 até 1500, falavam o iídiche! Este dialeto judeu-alemão possuía características diferentes conforme a proveniência das várias regiões da Alemanha e da Áustria. Ao lado do dialeto falado pelas massas, foi-se desenvolvendo na Itália uma verdadeira literatura própria judeu-alemã e seus cultores valeram-se das tipografias italianas para a publicação e propagação de suas obras. Foi assim que as primeiras publicações da literatura iídiche da Europa Oriental e da América foram estampadas na Itália.

Sejam os judeus asquenazitas sejam os sefarditas, ambos os grupos deixaram na Itália importantes marcas de sua presença e em diferentes campos: literário, estudos hebraicos, medicina e outros. Os vestígios mais evidentes são as lápides funerárias que se encontram nos cemitérios de Livorno, Pisa e Veneza.

Bibliografia:

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Jomtov, Ludovico Bato, L'immigazione degli ebrei tedeschi in Itália dal Trecento al Cinquecento. In Scritti in memória di Sally Mayer (1875-1953), Saggi sull'ebraismo italiano. Ed. Fondazione Sally Mayer, Jerusalem , 1956.

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