Há exatamente 500 anos, incitada por clérigos fanáticos, uma multidão perseguiu, torturou e matou milhares de judeus conversos. A matança durou três dias, de 19 a 21 de abril de 1506.

Os dramáticos fatos ocorreram durante o reinado de D. Manuel I, nove anos após o rei ter decretado a conversão forçada dos judeus, em Portugal. Após sua expulsão da Espanha, em 1492, pelos Reis Católicos, mais de 90 mil judeus tinham sido admitidos em Portugal por D. João II. Proeminentes membros da comunidade judaica castelhana haviam negociado com o rei a acolhida dos exilados em troca de vultosos impostos de entrada.

O grande abalo na vida dos judeus tem início quando seu sucessor, D. Manuel I, contrata casamento com Dª Isabel, princesa de Espanha. Fazia parte do contrato nupcial uma cláusula que exigia a expulsão dos "hereges" (mouros e judeus), de todo o território português. O rei viu-se diante de sério dilema pois não queria perder a riqueza e os talentos judaico, que tanto benefício trazia a Portugal. Às vésperas do casamento, assina o decreto que prevê, em um prazo de dez meses, a expulsão dos "hereges" de Portugal.

Para os judeus, restava uma única alternativa, a conversão ao cristianismo. O rei tinha esperanças que muitos se batizassem, ainda que apenas "pro forma". Mas a maioria dos judeus, que fugira da Espanha justamente para não abandonar sua fé, decide então, abandonar Portugal. O rei, no entanto, diante dessa possibilidade de grande evasão de capital do país junto com a população judaica, publica um novo decreto proibindo sua partida de Portugal e forçando-os a se converterem. Em outubro de 1497, os que ainda não o haviam feito, foram brutalmente arrastados à pia batismal.

A grande maioria, porém, continuou a praticar o judaísmo em segredo. D. Manuel tentou, em vão, promover a integração da massa de conversos à população de cristãos-velhos. Os cristãos-novos, como eram também chamados, continuavam a ser identificados pelos demais como judeus.

Inicia-se a violência

Respeitados cronistas da época registraram os trágicos acontecimentos de abril de 1506. Entre eles, o Rabi Salomão Ibn Verga; Samuel Usque, erudito judeu português nascido pouco antes do massacre; Damião de Góis, historiador, em sua "Crônica de D. Manuel I" (Cap. II - I); Garcia de Resende e, no século 19, os historiadores portugueses, Alexandre Herculano e Oliveira Martins. O número das vítimas é incerto; sabe-se que acima de 300 conversos foram queimados. Segundo Damião de Góis, mais de 1.900 morreram; para Herculano, tal número teria ultrapassado os 2.000. Samuel Usque e Garcia de Resende, afirmam terem as mortes chegado a mais de 4 mil.

Os acontecimentos se desenrolaram com rapidez e violência. Naquele abril de 1506 o ar pesava de tensão e incerteza; a peste e fome assolavam Lisboa desde outubro do ano anterior. A partir de janeiro, a situação piorara, mais de cento e trinta indivíduos morriam por dia e preces públicas pediam o Auxílio Divino. D. Manuel e sua corte haviam fugido para Abrantes por causa da peste, deixando a cidade praticamente sem controle, tão poucas eram as autoridades remanescentes na sede do governo.

A violência explodiu em 19 de abril de 1506, domingo de Pascoela, na semana seguinte à Páscoa. No Mosteiro de São Domingos, enquanto os fiéis rezavam pelo fim das desgraças, alguém jurou ter visto um clarão iluminar o altar - "fato" logo interpretado como sinal de milagre, quiçá uma mensagem de misericórdia. Entre os presentes, alguns manifestaram incredulidade. Damião de Góis relata: "Entre eles, um cristão-novo que teria afirmado que 'lhe parecia (haver) huma candeia acesa...". Imediatamente se acendeu contra ele a indignação dos crentes, incitada pelos frades dominicanos. O converso foi calado e espancado até a morte por uma massa enfurecida que, em seguida, queimou o que lhe restava do corpo. Um frade excitava o povo, atraído pelo tumulto, com violentas declarações, enquanto outros bradavam: "Herege! Herege!"

Rabi Salomão Ibn Verga, em sua obra Sefer Shebet Yehudah, Livro do Ceptro de Judá, escrito em Portugal pouco depois do massacre, afirma que o suposto "milagre" nada mais fora além de um artifício propositalmente planejado pelos dominicanos. Seu objetivo único era atiçar a fúria do povo contra os conversos. Escreve Rabi Ibn Verga: "Fizeram um crucifixo oco com uma abertura atrás, recoberto de vidro, na frente, por onde passavam uma vela, fazendo supor e alardeando que a chama emergia do crucifixo; enquanto isso, o povo se prostrava, aos brados de 'Vede o grande milagre'!". A partir daí, três dias de massacre se sucederam, a violência se alastrando rapidamente pela cidade. As tripulações dos navios do Tejo se juntaram à multidão nos saques à cidade.

Em bandos, as massas iam à caça dos conversos. Quando encontrados, eram espancados até a morte, arrastados sem piedade pelas ruas, às vezes ainda vivos, até às fogueiras construídas nos bairros da Ribeira e do Rossio. E os sinos conclamando os fiéis à matança. Os frades incitantes, prometiam a absolvição pelos pecados dos últimos 100 dias para quem matasse os "hereges". Os judeus eram torpemente acusados de ser o motivo da profunda seca e da peste que assolavam o país.

As cenas eram ensandecidas; pelas ruas corria o sangue enquanto pairava no ar um forte cheiro de carne queimada. Logo no primeiro dia pereceram mais de quinhentas pessoas. Nada parecia acalmar as massas; a violência grassava, desenfreada. Os conversos tiveram suas casas invadidas e saqueadas; sua gente, massacrada, violada, queimada, indistintamente, quer fossem homens, mulheres, crianças ou idosos. Os recém-nascidos eram arrancados dos braços das mães e atirados contra a parede. Além disso, vinganças pessoais e roubo corriam soltos em meio ao caos que imperava na cidade. Só no terceiro dia a violência cedeu - não porque a turba se tivesse acalmado, mas, como escreve Góis, porque já não tinham a quem matar, pois todos os cristãos-novos, escapados da fúria insana, foram postos a salvo por pessoas honradas..." D. Manuel I estava a caminho de Beja quando se iniciou o massacre, alertado dos acontecimentos, despacha seus magistrados para pôr fim ao banho de sangue.

As tropas e oficiais da Coroa chegam à Lisboa para restaurar a ordem, com poderes especiais para castigar os envolvidos no massacre. São confiscados os bens dos culpados, muitos dos quais são presos e enforcados, entre eles seus instigadores, os frades dominicanos. Há indícios de que o Convento de S. Domingos tenha ficado interditado durante oito anos, como punição real.

O Massacre de Lisboa e, trinta anos depois, o estabelecimento da Inquisição com a entrada em vigor do Tribunal do Santo Ofício Inquisitorial em território luso, fizeram milhares de conversos abandonar o país. Alguns foram para o norte da Europa, onde fundaram comunidades sefarditas em Amsterdã, Hamburgo, Antuérpia, entre outros. Houve também os que retornaram ao Oriente, estabelecendo-se na Turquia, bem como em outros países e na Terra Santa.

O Massacre de Lisboa de 1506 caiu no esquecimento. Hoje são poucos os historiadores que lhe fazem referência. Em abril deste ano de 2006, meio milênio após os terríveis acontecimentos, os judeus de Portugal recordaram o nefasto episódio.

Bibliografia

Artigos de I a IX sobre os "500 Anos: O massacre de Lisboa ", publicados no site http://ruadajudiaria.com

Artigo de Ana Marques Gastão "Velas na Praça do Rossio pelo 'Pogrom' de Lisboa", publicado no jornal Diário de Noticias no dia 16 de abril 2006

Revista Tikvá n.º 57, 6º ano