A história da França e dos judeus que viveram e ainda vivem em seu território marcou profundamente a História Judaica. É uma vivência complexa e ambígua, até paradoxal, pois rejeição e proximidade sempre conviveram lado a lado. É uma saga de mais de dois mil anos que se iniciou com a conquista da Gália por Roma e continua até os dias de hoje. No intuito de fazer justiça à sua riqueza, Morashá irá publicá-la em partes.

O início

As fronteiras da França moderna são semelhantes às da antiga Gália, nome utilizado pelos romanos para o território na Europa Ocidental habitado pelos gauleses. Os romanos anexaram o corredor do rio Ródano (Rhône) e o Languedoc1, em 125 antes da Era Comum, e, em meados do século 1 a.E.C., Júlio César se apodera de toda a Gália. Sob o domínio de Roma, a região se torna local de exílio para os políticos caídos em desgraça e, entre eles, alguns judeus. Tratava-se, no entanto, de casos individuais.

O número de judeus começa a crescer na região da atual França a partir do século 1 da E.C., depois de Roma ter sufocado brutalmente as revoltas judaicas, nos anos 70 e 135, na Judéia. Iniciava-se a Diáspora e a Gália foi uma das terras onde os exilados se estabeleceram. Recentes achados arqueológicos confirmam uma antiga tradição sobre a chegada de judeus em terras francesas. Segundo esta, após a destruição do Segundo Templo, três embarcações abarrotadas de prisioneiros judeus foram deixadas pelos romanos em mar aberto, entregues à própria sorte. Milagrosamente, aportaram na costa francesa; uma em Arles, outra em Bordeaux e a terceira em Lyon.

Judeus vindos de outras regiões do Império também acabaram por se estabelecer na Gália, já havendo, nos séculos 1 e 2, vários assentamentos judaicos. Achados arqueológicos – um selo comunitário encontrado em Avignon e um anel, em Bordeaux, com a cravação de uma peculiar menorá de sete braços – comprovam essa presença.

Seu número cresce ainda mais após o cristianismo se tornar a religião oficial do Império Romano, em 391. Como os gauleses opunham grande resistência ao processo de cristianização, os judeus não eram afetados pelas decisões adotadas pela Igreja cristã em relação a eles. Assim sendo, continuavam a gozar dos direitos e privilégios decorrentes de sua cidadania romana, concedida em 212. Tais direitos incluíam a liberdade de culto e de exercício das mesmas atividades econômicas e comerciais que os demais cidadãos romanos, inclusive na agricultura e vinicultura.

No século 4 havia judeus em cerca de 35 localidades, principalmente ao longo do litoral mediterrâneo, como Marselha e Narbonne, nas grandes rotas de comércio, como Clermont-Ferrande e Poitiers, e nos centros da administração romana. Em Antibes, Lyon, Poitou-Charente e Narbonne foram encontrados nas inscrições tumulares desse período nomes judaicos.

O período Franco
 
No século 5, os francos, um dos povos germânicos que invadiram o Império Romano do Ocidente, conquistaram o norte da Gália. A região resistira à cristianização até a conversão, em 498, de Clóvis, rei dos Francos. Com esse ato, Clóvis alcançou, em grande parte, seu objetivo de unificar o reino. Contudo, as diferenças regionais ainda persistem, principalmente entre a região Norte e a Sul, onde a evangelização continuava encontrando grande resistência.

Em seu livro “História dos Francos”, Gregório de Tours (538-594) menciona assentamentos judaicos em Orléans, Paris, Clément e Marselha. Em um primeiro momento, a cristianização não modificou a vida dos judeus, especialmente porque as restrições ditadas pela Igreja não eram rigorosamente aplicadas. O estatuto jurídico também não se modificara e eles permaneceram em pé de igualdade com os demais habitantes. O relacionamento com a população não-judaica continuava sendo amistoso. Relatos da época atestam a participação do clero cristão nas festividades da comunidade e os costumes judaicos eram tão difundidos que o Concílio de Orléans, em 539, considera necessário alertar seus fiéis contra as “superstições judaicas”.

Com o afluxo de judeus vindos da Itália e de outras partes do Império Romano, cresce, no século 6, o número dos que viviam no território da atual França, inclusive em Paris. Os achados arqueológicos confirmam a existência de várias sinagogas. Mas, à medida que cresce a pressão da Igreja para que os judeus fossem afastados do convívio com a sociedade maior, há uma sensível deterioração de sua vida.

No início do século 7, houve expulsões localizadas e tentativas de conversão forçada. Ainda assim, sua situação era bem menos grave do que na Espanha Visigoda, onde, após a conversão de seus reis ao catolicismo, iniciou-se uma onda de perseguições e, em 613, de conversões forçadas. Inúmeros judeus se refugiaram na Provença. São desse período as primeiras inscrições judaicas encontradas na França, mais precisamente em Narbonne, onde os judeus da cidade, em sua maioria comerciantes, eram muito bem vistos pela população local.

A Idade de Ouro Carolíngia

O domínio carolíngio foi uma época de ouro para os judeus da França. A dinastia carolíngia teve início em 752, com a subida ao trono de Pepino, o Breve, filho de Carlos Martelo, responsável por interromper o avanço muçulmano na Europa medieval, em 732, na Batalha de Poitiers. Com a morte de Pepino, o Breve, torna-se rei seu filho Carlos Magno (768-812). As campanhas militares do novo rei subjugaram grande parte da Europa e, no ano de 800, Carlos Magno foi coroado primeiro Imperador do Sacro Império Romano, pelo Papa Leão III.

Apesar de ser grande defensor da Igreja, Carlos Magno manteve um estreito relacionamento com os judeus, o que fez crescer a população judaica em território da atual França.

As relações entre o Imperador e os judeus – os favores e proteção que ele estendeu a eles – são cercadas por lendas. Uma destas conta que, após tomar Narbonne, o imperador teria dividido a cidade em três, entregando uma ao conde, uma ao bispo e outra aos judeus. Os historiadores acreditam ser mais provável que essa outorga tenha ocorrido durante o reinado de Pepino, o Breve, mas esse tipo de transferência é muito comum nas chansons de geste2 do período, que procuravam enaltecer a figura de Carlos Magno.

Ainda há uma tradição judaica que afirma que Carlos Magno foi o responsável por incentivar, na França, os estudos judaicos, trazendo da Babilônia para Narbonne o Rabi Machir, cujos descendentes lideraram durante gerações a comunidade dessa cidade.

Poliglotas e com extensas conexões com outras comunidades judaicas da Diáspora, os judeus comprovaram sua importância para o jovem Império. Participavam ativamente da vida econômica e podiam ser encontrados em todas as esferas governamentais, fossem em posições subordinadas, tais como cobradores de impostos, ou nas altas esferas do poder. Tal foi o caso de Isaac, o Judeu, que Carlos Magno enviara como embaixador à corte do Califa Harun al-Rashid, da dinastia abássida. Havia judeus atuando como fornecedores da Corte Imperial, outros como administradores das finanças de instituições religiosas católicas. Apesar de não mais praticarem a agricultura em grande escala, pois a Igreja se tornara proprietária de grande parte das terras, ainda havia judeus nessa atividade, e eles se destacavam em especial no cultivo de videiras nos vales do Rhône, do Saône e na região de Paris.

Num mundo profundamente dividido entre cristãos e muçulmanos, os judeus se haviam tornado importantes mediadores comerciais. Eram os comerciantes judeus, conhecidos como radanitas – do hebraico rad’hani, que, na Idade Média, ligavam a Europa ao Levante. Eles exportavam escravos, peles e sedas para a Itália, Espanha e os países do Levante, importando especiarias, bordados, bálsamos, tâmaras e metais preciosos. Os principais centros desse comércio de luxo estavam localizados em Meuse e Narbonne.

No reinado de Carlos Magno, os judeus continuam a se beneficiar da lei romana e a desfrutar o privilégio da autogestão de suas comunidade segundo a lei e os costumes judaicos, em troca do pagamento de um imposto. Ademais, o imperador passa a lhes assegurar proteção e privilégios através da emissão de cartas de privilégios. Entre as várias disposições, estava a igualdade em termos judiciais, inclusive sendo seu testemunho aceito nas cortes não judaicas; e a garantia de que qualquer violência ou ofensa perpetrada contra eles seria severamente punida. Um oficial imperial, denominado Magister Judaeorum, era encarregado de supervisionar o cumprimento das determinações imperiais. Não há dúvida de que a “utilidade” dos judeus à Casa Real estava por trás de todo esse “favorecimento” por parte da Coroa.

Essa aliança unilateral e informal que surgiu entre Carlos Magno e os judeus serviria de modelo, nos séculos seguintes, para a criação de inúmeras outras. Estas, no entanto, não lhes ofereciam uma verdadeira proteção, pois todas se baseavam em sua “utilidade” para as autoridades sob as quais viviam. Respeitadas pelo poder vigente enquanto os judeus mostravam-se úteis, as alianças eram sumariamente rompidas quando já não fossem “necessários”.

O favorecimento demonstrado pela Coroa em relação aos judeus acabou fomentando grande animosidade, principalmente entre o clero. Entre outros, porque os reis carolíngios recusavam-se a ratificar decisões outorgadas por concílios. Uma forte campanha antijudaica é, então, deflagrada por Agobardo, o arcebispo de Lyon, e seu sucessor, Amolon. Os já acirrados ânimos dos cristãos inflamaram-se ainda mais com a conversão ao judaísmo, em 839, de Bodo, um diácono da corte de Luís I.

Divisão do Império

Em 843, o império de Carlos Magno foi dividido entre três dos filhos de Luís I. Uma das partes, a Francia Ocidental, área correspondente à atual França, fica com Carlos, o Calvo.

Com a divisão do Império e o enfraquecimento do poder central, a França passa a ser dividida entre as terras do rei ("Domaine Royal") e os condados hereditários governados por senhores feudais, proprietários de terras. Em troca de sua lealdade e apoio militar, o rei reconhecia a autoridade dos senhores feudais dentro de seus territórios. Com essa pulverização do poder, dependendo da jurisdição em que os judeus viviam, variavam as restrições e tributação que lhes eram impostas.

Ademais, na ausência de um poder central, cresce, na França e em toda a Europa, a influência da Igreja sobre a sociedade. Na Idade Média, a Igreja Católica era a instituição maior – mais poderosa e duradoura que todas as Coroas. Desde o século 4, a Igreja passara a atribuir aos judeus a suposta “culpa” pela morte de Jesus. Este fato impregnara profundamente o pensamento e o imaginário dos povos da Idade Média cristã, provocando, contra os judeus, recorrentes manifestações de desprezo, hostilidade e violência.

A  população judaica se torna alvo de medidas cada vez mais restritivas, e o clero, especialmente seus escalões mais baixos, passa a incitar cada vez mais as massas contra os judeus. Em 883, o Concílio de Toulouse ratifica as restrições e humilhações públicas contra os judeus determinadas por concílios anteriores. Como, por exemplo, a bofetada pública que o líder da comunidade judaica de Toulouse era obrigado a receber anualmente. O castigo era por causa da suposta ajuda que os judeus deram aos sarracenos para conseguir ocupar a cidade. Não importava o fato de que Toulouse jamais fora ocupada por árabes.

Ainda assim, os judeus continuavam integrados à sociedade não-judaica e, diferentemente dos servos, eram livres de escolher onde viver.

A Dinastia dos Capetíngios

Com a extinção, em 987, da Dinastia Carolíngia, os nobres franceses elegem o conde de Paris, Hugo Capeto, como rei da França. Na época, o "Domaine Royal " estava limitado às regiões em torno de Paris, Bourges e Sens. O restante do território francês – a Aquitânia, os Ducados da Normandia, Bretanha e Borgonha, o Condado de Champanhe e outros territórios – estava sob o domínio de senhores feudais.

Sob os soberanos capetíngios, multiplicaram-se os atos de violência e extorsão contra os judeus. A partir do ano de 1007, após uma campanha lançada pela Igreja, a população judaica torna-se alvo de expulsões, perseguições e violência durante mais de cinco anos. Somente quando uma das mais importantes personalidades judaicas da França interveio junto ao Papa, este último enviou um delegado para pôr fim às perseguições.

Crescem, a partir do início do século 11, em todo o Ocidente, sintomas perturbadores que anunciavam a degradação da condição judaica. Contudo, seu papel de intermediários financeiros ainda lhes garantia certa proteção. A partir do novo milênio, a Europa entra num período de boom econômico e, com isso, cresce o uso do dinheiro e a demanda por recursos monetários. E os judeus estavam em posição de atender a essa demanda.

Vida judaica durante a Idade Média

A história dos judeus na França Medieval não pode ser reduzida apenas a uma série de perseguições e expulsões. Tampouco é uniforme, pois varia de um governo a outro, de região a região, sendo que as diferenças entre as comunidades do Norte e Sul se tornam cada vez mais acentuadas.
 
A partir do domínio carolíngio as comunidades judaicas francesas entram em um período de florescimento econômico, cultural e espiritual. São erguidas novas escolas, sinagogas, cemitérios e hospitais para leprosos. Até o século 10, a vida judaica era regulada pelos min’haguim, os costumes, e pela Torá, ensinada no idioma vernacular. Eram poucos os judeus que conheciam o hebraico e o latim era usado até mesmo durante os serviços religiosos nas sinagogas. A comunidade judaica que mais se destacava por seu conhecimento do judaísmo era a de Narbonne, que mantinha fortes vínculos com as academias da Babilônia.

A partir da segunda metade do século 10 floresce no norte da França a vida espiritual judaica e, no final do século, chegam à França os primeiros manuscritos do Talmud. Nesse período é criada, em Mainz, importante escola talmúdica.

Destacados expoentes do pensamento medieval judaico surgem entre os judeus do norte da França. Entre esses, o Rabi Guershom ben-Yehuda, conhecido como “Luz do Exílio” (em hebraico, Me’or ha-Golá) – (c. 960-1030). Seus decretos, takanot, iriam marcar profundamente a vida de nosso povo. Entre outros, foi ele quem proibiu a poligamia e a concessão do divórcio sem a concordância da esposa. Em meados do século seguinte, em Limoges, surge o Rabi Yossef ben Samuel Tov Elem (Bonfils), responsável por moldar o estilo de vida judaico e a tradição haláchica na França e na Alemanha.

Para as comunidades judaicas do Condado de Champanha, o século 11 foi um período de grande prosperidade. A região, que não fazia parte do Domaine Royal, tivera grande desenvolvimento comercial e as feiras do condado se tornaram famosas por toda a Europa. Sob os Condes de Champanha os judeus podiam atuar em todos os setores da economia. Eram comerciantes, artesãos e ainda agricultores, principalmente na vinicultura. O bem-estar econômico da população judaica foi acompanhado por uma efervescência cultural e espiritual.

É nesse período que surge, em Champanha, um dos maiores sábios da história judaica de todos os tempos, Rabi Solomon ben Itzhak (1040-1105), mais conhecido como Rashi. Nascido em Troyes, deixa marca indelével na interpretação e no pensamento judaico. Legislador, exímio erudita, grande linguista, foi o primeiro a escrever em “tzarfati”, a língua judeu-francesa. Seu maior feito foi escrever comentários e elucidações sobre a Torá e o Talmud, que facilitaram sobremodo o seu estudo e compreensão.

Logo após ter escrito seus comentários, os genros, netos e discípulos de Rashi passaram a produzir importantes complementos – tosafot – aos mesmos. Conhecidos como Tosafistas, eles escreveram críticas e notas explanatórias sobre o Talmud. Entre os mais famosos estão o Rabi Samuel ben Meir– o Rashbam (1085-1158), e Rabi Yaacov ben Meir – o Rabeinu Tam (1100-1171) (v. Morashá no 70), ambos netos de Rashi; Rabi Itzhak, Ri, o Velho (1120-95) e Rabi Samson de Sens (1150-1230 ); Rabi Yehuda Ben Shmuel, Ha-Chassid e Rabi Simcha ben Shmuel de Vitry compôs o Machzor de Noyou de Vitry, o primeiro livro litúrgico dos judeus do norte da Europa. Tão importante quanto os demais foi Rabi Yehuda Leon (1166-1224), Rosh Ieshivá da Escola de Paris.

Assim como no norte da França, a partir do século 11 os estudos judaicos alcançaram grande proeminência no sul do país. Floresceram principalmente entre os judeus da Provença, em Arles, Béziers, Lunel, Marselha, Montpellier, Nimes, Posquières, St. Gilles e, principalmente, em Narbonne. Em meados do século, a Ieshivá de Narbonne era dirigida pelo Rabi Moshe, o Pregador (Moshé, ha-Darshan). Citado com frequência por Rashi, ele foi um dos mais importantes nomes nos estudos exegéticos3.

A Provença foi, também, um solo fértil para a filosofia e o misticismo judaicos. É lá que surgem os primeiros grandes cabalistas, entre os quais, Rabi Itzhak, o Cego. Ele vivia em Posquières e escreveu um comentário sobre o Sefer Yetzirá, o Livro da Criação – um dos pilares da Cabalá.

A proximidade com a Espanha fez da Provença local de refúgio para judeus espanhóis em épocas de perseguições. Entre eles, destacam-se duas famílias, os Kimhi, que se estabeleceram em Narbonne, e os Ibn-Tibon, em Lunel, principais responsáveis pela influência árabe-judaico espanhola na Provença. O Rabi Yehuda ben Shaul Ibn-Tibon iria liderar uma geração de tradutores, que disseminou no mundo Ocidental o conhecimento científico desenvolvido na Espanha por árabes e judeus.

É a partir desse florescimento espiritual e cultural, registrado tanto no Norte quanto no Sul, que o judaísmo francês se tornaria um dos principais polos do judaísmo universal.

As Cruzadas e suas consequências

Em 1096, em meio a um clima de fervor religioso, milhares de cristãos atendem o apelo do Papa Urbano II para libertar Jerusalém do domínio islâmico.

Na história dos judeus da França, a 1ª Cruzada não foi um marco determinante como o foi na Alemanha ou em outros países. No entanto, foi em território francês, precisamente em Rouen e Metz, que ocorreram as primeiras perseguições e conversões forçadas. Em Rouen, os cruzados trancafiaram os judeus em uma igreja, exterminando-os lá mesmo. Somente foram poupados os que aceitaram o batismo. Foi ainda nessa cidade que Godofredo de Bouillon “justificou” a perseguição cruzada aos judeus com as seguintes palavras: “Se nosso desejo é lutar contra os inimigos de D’us, por que ir até Jerusalém atacar os infiéis muçulmanos se os judeus estão aqui, entre nós?”. O fervor religioso aliado à sedutora promessa de pilhagem impune foi posto em prática em várias cidades da França, onde a violência contra os judeus somente foi interrompida após o pagamento de um pesado suborno a Godofredo de Bouillon.

Para os judeus, as consequências da 1ª Cruzada foram nefastas e duradouras, pois desencadearam contra eles uma tradição de violência organizada e explosões populares de ódio. Em 1144, quando é convocada uma nova Cruzada, apenas a intervenção do abade Bernard de Clairvaux conseguiu frear as perseguições. Nos séculos seguintes, os cruzados repetidamente colocam milhares de judeus entre a cruz e a espada: a conversão ou a morte. A grande maioria optou por morrer em Santificação do Nome Divino (Al Kidush HaShem).

Foi nesse contexto de verdadeira histeria popular que se fabrica o mito de que os judeus praticavam o assassinato ritual. A primeira acusação aconteceu em 1144, em Norwich, na Inglaterra. Em 1171, é lançada essa acusação contra os judeus de Blois, na França, e as autoridades queimaram 31 deles em praça pública. Acusações similares foram registradas em Loches, Pontoise, Joinville e Èpernay, deixando um rastro de mortandade.
 
Nem todas as consequências das Cruzadas, no entanto, foram negativas. No século 12, o contato dos europeus com os povos orientais criou, na Europa, a demanda por produtos do Levante. Com a rápida evolução do comércio, o escambo cede lugar ao pagamento em moeda. Com a monetização da economia, surge a necessidade de dinheiro em espécie, assim como de agentes econômicos para atender as novas necessidades financeiras que surgiam. Os judeus tiveram um papel importante nesse novo contexto. Pois, se de um lado as determinações da Igreja lhes haviam fechado a possibilidade de atuar na maioria das atividades comerciais, havia, do outro, a proibição aos cristãos de emprestar dinheiro a juros. Essa proibição recebeu maior ênfase após o 4º Concílio de Latrão, em 1215. O papel dos judeus como agentes financeiros, no entanto, tem sido exagerado ao longo da história, pois, apesar de todas as proibições, os grandes provedores de dinheiro na Europa medieval, não foram eles, mas sim os lombardos, caorsinos e flamengos.

Na França, antes do século 13, eram relativamente poucos os judeus que viviam do empréstimo de dinheiro, tampouco havia entre eles detentores de recursos comparáveis aos dos grandes financistas judeus que viviam nos países muçulmanos, Espanha ou Inglaterra. O número de judeus envolvidos no comércio de dinheiro cresceria substancialmente nos séculos 13 e 14, à medida que lhes são proibidas outras formas de ganharem o sustento. Apesar de a maioria deles ficarem limitados ao papel de pequenos prestamistas, os mais abastados passam a suprir as crescentes necessidades monetárias de príncipes e nobres.

Degradação da vida judaica no século 13

Na França a deterioração da condição judaica foi acontecendo em paralelo ao processo de centralização do poder e da unificação das terras reais. Cada vez mais necessitada de recursos monetários para levar avante sua luta pela unificação do reino, a Coroa via os judeus e suas atividades financeiras, pesadamente tributadas, como fonte inesgotável de renda. Por essa razão, tolerava sua presença e, indiretamente, apoiava suas atividades. No entanto, essa mesma necessidade de recursos iria selar o destino da comunidade judaica da França.

Felipe II, conhecido como Felipe Augusto, foi o primeiro a estabelecer as bases de um reino francês unificado. Apesar de nutrir um ódio profundo pelo Povo Judeu, as ações que perpetrou contra eles foram ditadas, principalmente, por considerações econômicas. Em 1181, aprisionou aqueles que tinham posses e que viviam em Paris, libertando-os após o pagamento de um enorme resgate. No ano seguinte, 1182, decretou a expulsão de todos os que viviam em seu reino. Seu intuito era apossar-se dos bens e propriedades de todos os judeus e, com isso, ganhar apoio popular, pois a ideologia antijudaica já contaminara todas as camadas da sociedade cristã.

O número de judeus afetados por essa expulsão foi relativamente pequeno. Eram poucas as terras sob domínio real e, ademais, o rei não tinha autoridade sobre os nobres das províncias vizinhas, onde os exilados encontraram refúgio. Não demorou a que a Coroa percebesse que os ganhos resultantes da expulsão não eram suficientes para repor as perdas fiscais decorrentes de sua partida. Ademais, como os judeus se haviam refugiado nos territórios dos nobres, os rendimentos fiscais que o rei obtinha com eles agora tinham passado para seus rivais.

Em 1198, Felipe Augusto decide trazê-los de volta a seu reino, extorquindo-os ao máximo. Concede-lhes autorização para voltar a conceder empréstimos a juros, mas coloca todos os seus negócios sob controle governamental. Desprezados, mas extremamente valiosos, a Coroa queria assegurar seu poder sobre aquela comunidade. Naquele mesmo ano, o rei e os nobres assinam acordos pelos quais se comprometem a “devolver” os judeus que tinham acolhido em suas terras e, no futuro, os que deixassem os domínios reais ou terras de outros senhores. A partir desses acordos, os judeus estavam sob o controle de seus senhores e privados de qualquer liberdade. Os reis e senhores feudais costumavam referir-se a eles como “meus judeus”, da mesma maneira e com o mesmo tom com que diziam “minhas terras”, dispondo deles a seu bel-prazer.

Apesar de ocorrer uma lenta e gradual degradação no status social da comunidade, o maior responsável por reduzir os judeus da França à condição de párias foi Luís IX, posteriormente canonizado como São Luís. Durante seu reinado, marcado por uma intolerância religiosa jamais vista, a Igreja pôde dar livre vazão a seu desejo de regulamentar a vida judaica, já que tinha o beneplácito irrestrito do Rei. Pode-se afirmar com segurança que sua política antijudaica foi fundamental para sua canonização.

Luís IX foi o único monarca a obedecer a ordem papal de confiscar o Talmud – a ordem era queimar todos os livros que contivessem qualquer tipo de “heresia”. E, em junho de 1240, o Rei realiza, em Paris, o “julgamento” do Talmud.

O tribunal eclesiástico considera a obra sagrada “culpada”, condenando-a à fogueira. Em 1242, centenas de volumes manuscritos são queimados em praça pública (Ver Morasha no 72).

Durante o reinado de Luís IX, a comunidade judaica foi alvo constante de uma agressiva campanha de conversão. Em 1254, são proibidos de conceder empréstimos a juros, privando muitos de sua principal fonte de subsistência e, em 1269, seguindo determinação do Concílio de Latrão, ordena o uso da rouelle4 em suas roupas. Todos esses eventos eram o fim da relativa tolerância da Igreja com os judeus que viviam em seu redor.

Luís IX e seu irmão, Afonso de Poitiers, rivalizavam em seus métodos brutais de extorsão judaica. O Rei, com “escrúpulos” de se beneficiar dos proventos ganhos através do “pecado” da usura, dedicava todo o dinheiro extorquido aos judeus para financiar sua participação na Cruzada. Sob as mesmas alegações de piedade cristã, Afonso encarcerou todos os judeus de suas províncias para que pudesse pôr as mãos em suas posses com maior liberdade.

Hostilizados e perseguidos, muitos judeus passaram a procurar refúgio fora dos domínios reais. Mas, mesmo em condados que não estavam diretamente sujeitos à autoridade da monarquia, ocorriam perseguições e expulsões. Ademais, à medida que a monarquia foi impondo, no Sul, o regime que vigorava no Norte, vai desaparecendo a distinção entre as condições de vida das comunidades judaicas dessas regiões, até então sujeitas a diferentes formas de governo.

A expulsão de 1306

Apesar das dificuldades, a população judaica em toda a França crescera no século 13, vivendo, ao seu término, um período de prosperidade. São desse período a maioria das inscrições funerárias e de sinagogas e os manuscritos medievais que chegaram até nós.

A população judaica da França era, na época, cerca de 50.000 pessoas. Estima-se que 40% viviam em centros urbanos, pois a Coroa proibira os judeus de viverem em zonas rurais. Na Provença, viviam cerca de 10 mil, atingindo 15 mil às vésperas da Peste Negra, em 1348. A comunidade judaica de Paris era pequena, não chegando a 1.000 pessoas.

Com a subida ao trono, em 1285, de Felipe IV, o Belo, acelera-se a construção do Estado e, consequentemente, a demanda por reservas monetárias substanciais. A premente necessidade real por caixa fazia com que o Rei recorresse a vários estratagemas para extrair dinheiro dos judeus: “doações” forçadas, resgates, novos impostos. Eles também foram alvo de perseguições e medidas restritivas.

Em 1288, os judeus de Troyes foram acusados de assassinato ritual. Treze dos integrantes da comunidade entregaram-se voluntariamente, para poupar os demais, e foram queimados na fogueira. E, em 1294, o Rei ordena a criação, nas cidades, de bairros especiais, não cercados, para a população judaica. Com a consolidação dos judeus em centros urbanos, Felipe, o Belo, pôde melhor monitorar seus “contribuintes” e, assim, evitar sua fuga a outros feudos.

No ano de 1306, Felipe IV determina a expulsão de todos os judeus do Reino da França e confisca suas propriedades. Uma série de medidas semelhantes já se haviam abatido sobre os judeus europeus, que haviam sido expulsos da Inglaterra e da Gasconha, em 1290, e de vários locais na Alemanha e na Itália.

Na França, a expulsão afetou cerca de 50 mil  judeus (há historiadores que acreditam que foram 100 mil). Os exilados encontraram refúgio na Lorena, Alsácia, Vale do Reno e mesmo na Polônia e Hungria; no ducado da Borgonha, Dauphine, Savóia, Provença, Comtat Venaissin e Espanha. Mas, novamente, as receitas da venda dos ativos judaicos não foram suficientes para cobrir os prejuízos tributários ocasionados por sua partida. O Rei autoriza, então, a volta de alguns dos que tinham sido expulsos, permitindo que recuperassem suas dívidas desde que dessem um considerável quinhão a seus cofres.

Considerações financeiras mais uma vez levaram a Coroa a autorizar o retorno dos judeus. Em 1315, Luís X– alcunhado o Teimoso, le Hutin – permite que voltem a residir na França por um período de 12 anos. Seus privilégios foram renovados e sua proteção, assegurada. Suas sinagogas, livros da Lei (à exceção do Talmud) e cemitérios foram-lhes devolvidos mediante o pagamento de uma vultuosa taxa. Indiretamente ele os autoriza a conceder empréstimos a juros e a recuperar um terço das dívidas ativas a partir do ano de 1306, sendo que o restante iria para os cofres da Coroa. Mas eram obrigados a usar a rouelle.

Em 1320 inicia-se, na França, a “Cruzada dos Pastores”, um movimento que incluía principalmente jovens, mulheres e crianças e pretendia lutar contra os mouros na Espanha. Mas, em seu caminho, seus alvos principais eram os judeus, a quem atacaram em Saintes, Verdun, Cahors, Albi e Toulouse. A essa altura a vida judaica se tornara tão difícil na França que muitos deixaram o país antes que se expirassem os tais 12 anos de permanência concedidos pelo Rei.

A Peste Negra

O final da Idade Média foi um período de insegurança, pânico e ansiedade, com a transformação dos judeus em bode expiatório, catalizadores de todos os temores. Humilhados e proscritos pela Igreja, eles estavam ainda mais vulneráveis.

Na França cada expulsão enfraquecia as comunidades, ainda que posteriormente fossem convidados a retornar.  Ademais, em virtude de sua especialização nas práticas financeiras de empréstimos a juros, particularmente no norte da França eram alvo de uma camada específica da sociedade que constituía a sua clientela. Especialmente em períodos de escassez de alimentos e crises econômicas eles eram vítimas do ódio da população. Para se entender a percepção do judeu no imaginário popular, basta dar uma olhada na literatura medieval. Eles eram colocados no mesmo nível que os demônios e os tiranos, contrapondo-se aos santos e piedosos.

Em 1348-49, durante a Peste Negra que devastou a Europa e acabou por dizimar 25 milhões de pessoas, os judeus foram acusados de causar e propagar o flagelo. Nos poucos locais da França – fora dos domínios reais – onde ainda tinham permissão de viver, aqueles que não pereciam da praga eram mortos pelo populacho ou pelas autoridades. Comunidades inteiras foram dizimadas na Savóia e na Provença. Na Alsácia, os judeus foram queimados na fogueira e a comunidade de Estrasburgo foi totalmente destruída.

Na década seguinte não havia, na França, sequer uma comunidade judaica organizada. Mas, em 1359, Carlos da Normandia, então o regente, necessitando de uma vultosa soma, autoriza os judeus a residirem em seu reino por um período de 20 anos, sob a condição de pagarem uma elevada quantia. Esse “convite” não encontrou muitos interessados. A peste e suas consequências haviam dizimado os judeus exilados. Além disso, poucos podiam pagar as elevadas taxas de entrada, e um número ainda menor os pesados encargos anuais. Os poucos judeus que retornaram ficaram concentrados principalmente nos territórios da Île-de-France e da Champanha.

Não há dúvida de que as grandes expulsões do século 14 tiveram profundas consequências para o judaísmo francês. Em primeiro lugar, reforçaram ainda mais a regionalização das comunidades judaicas, basicamente divididas em dois grupos distintos: as da langue d'oil, na região central e no Norte do Reino, e as da langue d'oc, com subdivisões mesmo dentro das comunidades do Sul, nas províncias autônomas.

Ademais, as expulsões resultaram numa ruptura na história dos judeus da França. Confinados a um pequeno número de áreas, relativamente distantes do restante da Diáspora judaica, já não lhes restava força suficiente para manter a notável efervescência cultural que tinham apresentado desde o século 11 e ficariam isolados da Renascença na Europa.

Alguns séculos iriam transcorrer até que o judaísmo na França voltasse a florescer, um renascimento que mudaria para sempre a história dos judeus da Europa e do Oriente Médio.

1.Região central do sul da França, entre os rios Ródano (na fronteira com a Provença) e Garona (na fronteira com a Gasconha).
2.Poemas épicos que louvam feitos heroicos e narram incidentes lendários, às vezes baseados em fatos reais da história da França durante os séculos 8 e 9. 
3.Exegese é a interpretação profunda de um texto bíblico, jurídico ou literário.

4.Pedaço de tecido em formato redondo, de cor amarela, que os judeus foram obrigados a usar preso à roupa, para distingui-los do restante da população.

Bibliografia:
Esther Benbassa, The Jews of France: A History from Antiquity to the Present, E. Princeton University Press,1999

Hyman, Paula E. ,The Jews of Modern France (Jewish Communities in the Modern World), University of California Press, 2005