O desaparecimento de nove mil judeus durante a ditadura militar argentina, no período de 1976 a 1983, está sendo investigado pelo Comitê de Imigração do Parlamento (Knesset) de Israel desde o ano passado.


Como parte deste processo, em março último, uma comissão interministerial começou a colher depoimentos de familiares dos desaparecidos e de sobreviventes da repressão visando não apenas localizar os restos mortais das vítimas, mas também investigar o paradeiro de crianças judias que foram seqüestradas e adotadas de forma ilegal por militares e civis argentinos.

Segundo dados oficiais da Argentina, nove mil pessoas desapareceram durante a chamada “Guerra Suja” – a repressão aos que se opunham ao regime do país, de 1976 a 1983. Organizações de direitos humanos nacionais e internacionais, no entanto, afirmam que este número chega a 30 mil, dos quais 1.500 a 2.000 seriam judeus. Apesar de o governo israelense ter conseguido ajudar a tirar da Argentina alguns dos perseguidos pelo regime militar, até hoje pouco se sabe sobre o paradeiro dos judeus que desapareceram nas prisões do país.

Uma das mais conhecidas vítimas judias da “Guerra Suja” foi o jornalista Jacobo Timerman, fundador e diretor do diário La Opinión, além de grande defensor dos direitos humanos. Preso durante 30 meses, Timerman foi detido em 1977 e torturado em nome da segurança nacional e, posteriormente, mantido em prisão domiciliar, apesar de ter sido julgado três vezes e jamais ter sido encontrada qualquer prova dos crimes dos quais era acusado.

Em seu livro Prisioneiro sem nome, cela sem número, lançado em 1981 após ter sido libertado em função de pressões de organizações internacionais e já estar em Israel, o jornalista narra o drama vivido nas prisões argentinas. Drama maior para os detentos judeus, segundo Timerman, como decorrência direta do forte anti-semitismo de seus captores e torturadores, arraigado nas raízes mais profundas da sociedade argentina e nos diversos escalões do poder.

Em vários trechos do livro, Timerman relembra os longos interrogatórios aos quais foi submetido, que começavam sempre com a mesma pergunta – “Você é judeu?” – e nos quais os temas mais presentes eram sua condição judaica e sionista, sua relação com o Estado de Israel e sua participação em um suposto complô israelense contra a Argentina. As críticas do La Opinión ao regime militar e sua luta contra os extremismos tanto de direita quanto de esquerda também faziam parte dos interrogatórios, mas, segundo o jornalista, apenas como pano de fundo. O termo “judeu”, porém, foi ouvido por ele incontáveis vezes – na cela, nas sessões de tortura, nos interrogatórios.

Timerman, no entanto, foi apenas mais uma das milhares de vítimas judias da junta militar que foram torturadas, expoliadas de seus bens e afastadas de seus familiares. A enorme lista dos desaparecidos inclui Alejandra Jaimovich, que tinha 17 anos, em 1976, quando saiu para estudar matemática com uma amiga em Córdoba e nunca mais voltou.

Seu pai, Luis Jaimovich, de 82 anos, foi uma das pessoas ouvidas pela comissão interministerial israelense. Seu irmão Oskar, que também depôs sobre o desaparecimento da moça, disse que foi informado por ex-detentos que a condição judaica de Alejandra teve um papel fundamental na sua tortura e execução por forças paramilitares. “Nós esperamos que o governo israelense represente os judeus e averigüe qual o papel do anti-semitismo e por que os judeus eram tratados de forma pior do que os demais prisioneiros. Lidar com o fato de ter um membro da família desaparecido não é fácil, apesar dos anos que se passaram. Esta experiência desestrutura as famílias. Ninguém pode sequer imaginar o que isso representa. Sem um corpo, não há nada para enterrar, o que torna a perda muito mais dolorosa”, disse Oskar.

Pinhas Sela, viúvo, pai de três filhos, também foi atingido pelas garras da repressão argentina. No dia 8 de julho de 1997, recebeu um telefonema de seu filho mais velho, Gabriel, então estudante do segundo grau. Gabriel disse ao pai que estava em uma reunião com amigos quando a polícia invadiu o local. Ele havia conseguido fugir, mas deixara seu casaco com todos os seus documentos no local.

“Nós sabíamos como a polícia costumava agir e eu logo percebi o risco. Então pedi ao meu filho do meio, José, para que fosse para a casa de sua avó e eu fiquei com o caçula em casa. Sabia que não havia feito nada e, portanto, nada haveria a temer. Mas a polícia veio e nos prendeu – a mim e ao meu filho menor. Em seguida, também prenderam José”, relembrou Sela em seu depoimento em Israel.

Disse, ainda, que quando foi preso, teve seus olhos vendados e foi mantido em cativeiro durante horas, tendo apanhado e sido torturado inclusive com choques elétricos. Seu filho caçula foi mantido em uma sala ao lado, até serem libertados. Ao chegar em casa, recebeu um telefonema de José, da prisão, dizendo que, se Gabriel não se entregasse, ele morreria. Desde então, Sela não teve mais notícias de José. Meses mais tarde, após ter sido novamente detido, Sela resolveu partir para Israel com seu filho menor. Gabriel vive atualmente na Espanha.

Antes de dar início aos depoimentos públicos em março, a comissão interministerial passou meses recolhendo testemunhos por escrito. Segundo as informações coletadas, houve casos confirmados de pelo menos 20 mulheres judias que foram detidas e deram à luz na prisão. Essas crianças teriam sido posteriormente adotadas por famílias argentinas. “Estas crianças têm o direito de conhecer a sua verdadeira história”, disse Pinhas Avivi, diretor geral do Departamento da América Latina e do Caribe do Ministério das Relações Exteriores, quando a comissão foi criada, no ano passado.

O tema dos judeus desaparecidos durante a “Guerra Suja” é um dos pontos sensíveis entre a diplomacia argentina e israelense. Segundo Michael Melchior, ministro de Assuntos da Diáspora de Israel, o presidente Fernando de La Rúa, em um encontro ocorrido em janeiro do ano 2000, comprometera-se a ajudar na recuperação dos restos dos judeus desaparecidos, para que estes pudessem ser enterrados por seus familiares de acordo com os rituais do judaísmo. Depois que Melchior tornou pública esta informação, o governo argentino divulgou um comunicado dizendo que as afirmações do ministro israelense não refletiam de maneira correta o que fora dito por de la Rúa.

Segundo o historiador Efraim Zadoff, que estuda a participação dos judeus entre os desaparecidos argentinos, as autoridades do país temem que pessoas que ainda ocupam posições de destaque na vida da Argentina – nas esferas governamentais e militares – possam estar envolvidas nas perseguições aos judeus durante a ditadura militar.

O ex-presidente Carlos Menem, predecessor de de la Rúa, concedeu perdão aos líderes da junta militar que governou o país de 1976 a 1983, em 1990, cinco anos após estes terem sido condenados à prisão perpétua por violação dos direitos humanos. Assim, trazer à tona o tema dos “desaparecidos” ainda é uma questão delicada na Argentina.

A iniciativa israelense não pretende iniciar processos legais contra os envolvidos na “Guerra Suja”, pois a justiça israelense não prevê julgamentos sem a presença dos acusados. “Temos apenas o objetivo de localizar os restos mortais dos desaparecidos e, quando possível, descrever a sua trajetória. Como foi dito, acreditamos que todos têm o direito e merecem conhecer a verdade”, ressaltou o diretor geral do Ministério.