Os mistérios da diáspora judaica são infinitos. Toda vez que nos debruçamos sobre material de pesquisa para produzir uma matéria para a revista Morashá sobre determinada comunidade judaica, encontramos diferenças, mas também surpreendentes semelhanças.

As razões que levam os judeus na Diáspora a deixar o local onde vivem para emigrar para outros países são conhecidas: perseguições religiosas e políticas, crises econômicas, reunião de famílias e a busca por uma vida melhor.

No caso do Peru, não foi diferente, apesar das dificuldades iniciais, pois até o século 19 a intolerância religiosa que permeava a sociedade retardou o surgimento de uma comunidade judaica estruturada.

Época colonial

Francisco Pizarro, o conquistador espanhol, chegara à região que hoje é o Peru procurando por riquezas incas. Encontrou o império debilitado por uma recente guerra civil. Em novembro de 1532, derrotou os incas e, dois anos mais tarde, a região tornou-se colônia espanhola. Posteriormente, em 1542, passou a fazer parte do Vice-reino do Peru, que abrangia quase todo o domínio espanhol nas Américas. Apesar das restrições impostas aos cristãos novos, um número relativamente grande de “portugueses” acabaram se estabelecendo em Lima, fundada em 1535 por Pizarro. Vinham atraídos pelas riquezas minerais do país.

Em 1597, apenas 73 anos após Pizarro estabelecer na região a nova colônia espanhola, as autoridades locais recebiam correspondências insistindo para que o Tribunal da Inquisição de Lima impedisse a entrada de “portugueses” ou, como eram chamados, “portugueses da Nação Hebraica”.

O braço da Inquisição espanhola estendera-se rapidamente até o Novo Mundo. Sua atuação nos territórios da América espanhola deu-se através de três tribunais da Santa Inquisição: Lima e México, fundados em 1569, e Cartagena, fundado em 1610. O principal objetivo era impedir que os judeus ou conversos, bem como qualquer outro tipo de “hereges”, se estabelecessem nas Américas.

Em 9 de janeiro 1570 a Inquisição peruana começou suas “atividades”, que só vão ser encerradas no início do século 19. Durante esse período, Lima foi palco de 34 autos-de-fé, sendo que os chamados judaizantes sempre constituíram uma considerável proporção das vítimas. Em nenhum outro país latino-americano, a Sala de Audiência do Tribunal Inquisitório era tão requintada como em Lima, com detalhes de madeira entalhada e mobiliário original importado da Espanha. Tampouco havia outra tão bem “estruturada”, com inúmeras celas subterrâneas, como a Sala de Tortura. Era um claro sinal da importância do Tribunal na colônia.

Logo após o estabelecimento do Tribunal Inquisitório, membros da Nação Hebraica eram denunciados. Muitos foram condenados, inclusive mortos em fogueiras. Apesar desse clima de intolerância, em 1590 já existia uma sinagoga em Lima - o Casarão de Esquivel e Marabá. O local também servia de pousada para mineiros e comerciantes judeus, que se faziam passar como portugueses. A sinagoga, também conhecida como a Casa Pilatos, funcionou até 1635. Seu grande rabino foi Manuel Bautista Perez.

No Peru, o Tribunal do Santo Ofício atuou com muita “perseverança” contra os chamados judaizantes. Um dos episódios mais conhecidos foi o chamado “da Grande Cumplicidade”, no qual foram presos 63 judaizantes e 57 portugueses e filhos de portugueses. As detenções causaram enormes prejuízos ao comércio de Lima. Este processo teve fim em 1639, com um grande Auto de Fé, em Lima. Doze judeus foram queimados em uma fogueira, entre eles o rabino Manuel Bautista Perez, na época um dos mais importantes líderes comunitários, e o poeta e cirurgião, Francisco Maldona de Silva. O Tribunal da Santa Inquisição não fazia nenhuma discriminação de gênero. Maria Francisca Ana de Castro, natural de Toledo, 50 anos, casada, foi a última vítima. Presa e condenada, foi queimada na fogueira em praça pública no dia 23 de dezembro de 1737.

A intolerância em relação aos judeus, na época colonial, pode ser medida, entre outros, pelo fato de que na cidade de Lima havia uma rua chamada “Matajudeus”. Esse nome foi posteriormente mudado para “Rua dos Judeus”. Interessante mencionar que, no início do séc. 20, esse nome foi omitido. Apesar da intolerância e restrições, uma das personalidades mais marcantes da época colonial peruana foram os irmãos León Pinelo. O primeiro, Diego León Pinelo, foi o reitor da Universidade S. Marcos entre 1656 e 1657, e seu irmão, Antônio León Pinelo, foi o autor de livros importantes como “O Paraíso no Novo Mundo”. Na década de 1940 eles foram homenageados tendo seu nome atribuído à escola judaica da comunidade.

Vários judeus se tornaram personalidades de destaque na época da Colônia. Entre outros, Wladislaw Kluger, que construiu a rodovia Peru-Bolívia e projetou a irrigação do Vale de Tacna, através de um afluente do Rio Maule, e a rede de água potável de Chorrilos, além da construção das Alfândegas Porto de Arica. Podemos também citar os irmãos Segismundo e Fernando Yacobi, fundadores da primeira Casa de Câmbio de Lima e do Cemitério Baquijano, da Sociedade Beneficência Israelita, e que trouxeram o primeiro Sefer Torá para a capital peruana.

Período Contemporâneo

Somente com o fim do Tribunal da Inquisição, em 1813, há exatos 200 anos, e a independência do Peru, em 1821, foi permitido a um pequeno número de judeus se estabelecer em solo peruano de forma abertamente declarada. Os primeiros registros da imigração judaica para o Peru datam de 1855, em uma fragata chamada “Nicoline”, proveniente de Hamburgo, Alemanha, onde viajaram ao país o casal Louis Gosdinski e Johana Rosemberg, com sua irmã Minna, ambos de Bromberg, na Prússia.

Foi um fato de importância histórica para a comunidade judaica peruana, por ser a primeira família judaica que, abertamente, fixou residência na capital. O filho do casal, Adolfo, provavelmente foi o primeiro judeu que, nascido em solo peruano, foi devidamente registrado como tal, sendo também o primeiro a se alistar no exército peruano na guerra contra o Chile, entre 1879 e 1881.

A partir de 1860, aumenta a imigração, em especial de judeus oriundos da França, Alemanha, Inglaterra e Rússia, destacando-se a família Calmann, que adquire minas de prata na cidade de Copiapo e Arica.

Os judeus ainda sofriam dificuldades de adaptação, tanto em função da guerra com o Chile como pela intolerância religiosa que ainda permeava a sociedade. Podemos citar o exemplo da família Hahn, natural de Breslau. Um de seus membros só pôde ser enterrado no cemitério municipal após uma grande doação.
Nas décadas de 1860 e 1870 o problema mais premente da comunidade judaica de Lima e Callao era onde enterrar seus membros. Em caráter temporário, até 1875, foram enterrados no cemitério britânico, quando foi fundado o Cemitério Israelita de Baquijano. O terreno foi comprado e doado por Enrique Meiggs, um empresário e filantropo americano que construía ferrovias no país. A primeira judia enterrada nesse cemitério foi Mina Rosemberg.

Os judeus na selva

Em 1909 é fundada a Sociedade de Beneficência de Iquitos, em plena selva peruana, pelo empresário Victor Israel, proveniente do Marrocos, que se tornaria prefeito da cidade de Iquitos.

A exemplo da Amazônia brasileira, que recebeu uma grande onda de imigração de judeus, atraídos pelo auge da era da borracha, ouro e madeira naquela região, também o Peru recebeu grandes contingentes de jovens judeus marroquinos, em busca de melhores condições de vida. Vinham esperançosos, aguardando depois mandar buscar seus familiares. Nesta época a cidade de Iquitos construiu o magnífico Teatro de Alhambra, a exemplo do Teatro de Ópera de Manaus, para cuja construção foi contratado o famoso arquiteto francês, A. G. Eiffel.

As coincidências com as cidades de Belém, no Brasil, e sua comunidade judaica, não ficam apenas nos fatos históricos ou nos sobrenomes homônimos. Houve um grande intercâmbio migratório entre estas comunidades desde aquela época até meados do séc. 20. Um dos maiores estudiosos desse período é o jornalista venezuelano, Ariel Segal, que estudou na Universidade Hebraica de Jerusalém. Autor do livro “Judeus da Amazônia, autoexílio no paraíso terrestre”, Segal vive atualmente em Lima.

Séculos 20 e 21

No início do séc. 20, as leis de imigração peruana foram liberalizadas e o governo alemão incentivou a emigração para o Peru. À época, a comunidade se organizava; a vida judaica estava ligada às atividades religiosas e sociais e os imigrantes se estabeleciam com o objetivo de criar instituições que preenchessem suas necessidades iminentes.

Os primeiros imigrantes ashquenazim chegavam da Alsácia, Alemanha e França, criando, na época, a Associação Judaica de Culto, em 1870, conhecida hoje como a “Sinagoga 1870”, ou a Sinagoga dos Alemães. Em 1922, também foi criada a Sociedade Beneficente Israelita Sefaradita. Esta Congregação inicialmente se reunia em casas particulares, até que, em 1933, foi construída a sua sede própria.

Na década de 1930, com o advento do nazismo na Alemanha, a comunidade viu o governo peruano restringir a imigração de estrangeiros. Foram criadas diversas instituições de apoio aos judeus que conseguiam escapar dos horrores da guerra e optaram por refazer sua vida em terras peruanas. Na época foi contratado o Rabino Abraham Moyses Brener, que desempenhava várias funções: shochet, chazan e mohel.

Durante a 2ª Guerra Mundial, uma jovem peruana, Madeleine Truel, filha de imigrantes franceses, refugiados no Peru, ajudou judeus a fugirem das garras da Gestapo. Na época, Madeleine vivia na França e fazia parte da Resistência. Sua especialidade era falsificar documentos, geralmente usados por soldados aliados que se infiltravam na Zona Francesa Ocupada. Os judeus também se beneficiavam desses documentos falsificados. Graças à atuação de Madeleine, muitos conseguiram escapar de campos de extermínio. Infelizmente ela foi capturada pela Gestapo. Transferida por vários campos de concentração, foi torturada, mas jamais revelou qualquer informação sobre suas atividades. Ela morreu, em 1945, poucas horas antes da rendição alemã, no campo de concentração de Sachsenhausen. Sua história foi contada no documentário “Estação Final”, do cineasta e jornalista peruano Hugo Coya.

Apesar da década de 1940 ter sido marcada pela necessidade de atender a absorção dos imigrantes que conseguiam escapar da Europa, foi um período de grande desenvolvimento para a comunidade judaica peruana. Nesse período foram criados o Lar dos Velhos, a Chevra Kadisha, e uma nova sinagoga ashquenazi, a Knesset Israel. Foram também fundados o movimento juvenil Brit Hanoar, que funcionava na Sinagoga ashquenazi, e a Hanoar Hatzioni, que se instalou na Sociedade Beneficente Sefaradi, mudando-se, posteriormente para as antigas instalações da Escola.

Em 1945, foi criado o Colégio León Pinelo, acima mencionado. Nessa época era proibido dar nomes estrangeiros às escolas. Em 1954 esta escola, que se tornou o orgulho da comunidade e uma das melhores do Peru, já com sua sede própria comprada, contava com 454 alunos.

Com o crescimento da comunidade surge também a necessidade de uma sede social para o clube A Hebraica. O novo clube se torna um importante centro comunitário de lazer e cultura.

O apogeu comunitário

A década de 1960 foi uma das mais marcantes. As dificuldades iniciais de organização tinham sido superadas e a comunidade atinge seu auge: já contava com 6.000 membros, três sinagogas com frequência e atividades plenas, e mantinha vínculos fortes com Israel. Em 1967, a diretoria da sinagoga Sharon adquiriu um terreno de mais de 5.000 metros e construiu um belíssimo templo, com a benemerência de 81 membros da comunidade.

O número de judeus que viviam no interior do país era cada vez menor, pois a vida comunitária concentrava-se na capital. Cresce o número dos que emigram para Israel e, em especial, de jovens que procuravam estudar em Universidades israelenses de ponta.

Se nos anos 1960 foi sinônimo de crescimento, na década seguinte, a comunidade apresentou um declínio. Entre as causas estavam a tomada de poder por uma ditadura militar, a crise econômica, o aumento da violência urbana e o grande número de sequestros. A comunidade também ficou apreensiva pela atitude não amistosa do novo governo em relação a Israel. O Peru, entre outros, votou a favor da Resolução na Assembleia Geral das Nações Unidas, adotada em 1975, que afirmava que “O Sionismo é uma forma de racismo e discriminação racial”. (A resolução foi anulada pela ONU em 1991). Todos esses motivos fizeram com que inúmeros membros da comunidade judaica do Peru decidissem deixar o país.

Apesar das incertezas, a comunidade se manteve ativa e Lima sediou a Macabíada Pan-americana no ano de 1976.

A crise e o êxodo

Turbulências políticas marcaram os anos 1980. O terrorismo de organizações como o Sendero Luminoso levaram muitos judeus a optar por emigrar para Israel, Estados Unidos e outros países. Com o encolhimento da comunidade, algumas entidades enfrentam dificuldades para manter suas atividades e seus assistidos. A Escola, que contava com mais de 1.000 alunos na década de 1970, vivencia uma diminuição para 700 na década de 1980.

Na década seguinte, com a globalização e a captura do líder do Sendero Luminoso, Abimael Guzman, crescem no Peru as expectativas de normalização política e econômica. A comunidade retorna e Lima é sede, com uma reunião especial, do VI Congresso Rabínico Mundial, que conta com a presença de 30 renomados rabinos.

O presidente da República, Fernando Belaunde Terry, participou das cerimônias de Rosh Hashaná e o Papa João Paulo II mantém encontro com a comunidade judaica nesse mesmo período.

Nessa década também se estabelece o Beit Chabad de Lima, que tem um rabino carioca à sua frente - o Rabino Uri Blumenfeld, que, a exemplo do trabalho que o movimento realiza em milhares de cidades pelo mundo, tem desenvolvido um trabalho intenso de preservação do judaísmo.

O Peru é muito procurado como endereço turístico, bem como por sua gastronomia, negócios com tecidos e, em especial, o algodão. Os turistas e israelenses podem participar de Sedarim de Pessach e Rosh Hashaná organizados nos destinos turísticos mais famosos no país: Cuzco e Machu Pichu.

A década de 2000 começou com uma visita especial para a comunidade judaica. O atual Presidente de Israel, Shimon Peres, visitou Lima. A década se caracteriza pela estabilidade econômica e social e, com isso, as instituições judaicas também voltam a se organizar. As Sinagogas Sharon e “1870” passam por reformas e uma nova Sinagoga Sefardi é construída. É criado, com o apoio da família Fishman, o Museu da Comunidade Judaica do Peru, que preserva de maneira muito moderna a memória comunitária. Com o objetivo de integrar e combater a assimilação é realizado o primeiro encontro de jovens solteiros da Bolívia, Colômbia, Chile, México Panamá, Peru e Venezuela.

Se uma instituição pode exemplificar a pujança e a determinação quanto à continuidade da comunidade judaica peruana esta instituição é a Escola León Pinelo, hoje quase com cem por cento dos jovens da comunidade em seus bancos escolares. É reconhecida entre as melhores do país e foi dirigida, durante vários anos, por León Trahtemberg, grande educador e estudioso da história judaica peruana.

O judaísmo peruano, apesar de ainda sofrer com uma diminuição populacional, no auge dos anos 1970 contava com mais de 6.000 pessoas e hoje, com pouco menos da metade, resistiu a uma infância traumática com abusos inquisitórios. Na adolescência, passou por crises econômicas e políticas, para, na fase adulta, enfrentar toda a sorte de terrorismo. Com orgulho, os judeus peruanos podem agora comemorar esta nova fase de sua vida comunitária, a fase madura. Hoje, a comunidade conta com instituições fortes e sólidas em todos os âmbitos da vida judaica: sinagogas, clube e uma estruturada rede de proteção social.

A continuidade está sendo preservada. Ao entrar em uma de suas sinagogas e testemunhar a emoção dos minianim em participar dos serviços, temos a sensação de que a resistência e perseverança dessa comunidade, que chegou no século 16, valeram a pena..

Bibliografia:
Trahtemberg, Léon, Judios en el Peru durante el siglo XIX,
Trahtemberg, Léon, Demografia Judia del Peru
Segal , Ariel, Jews of the Amazon - Self Exile in the Earthly Paradise
Carneiro, Maria Luiza Tucci, O antissemitismo nas Américas, (org) - Edusp
Site do Museu Judio del Peru