A memória e história dos imigrantes, antes mergulhadas na apatia e desinteresse, estão sendo resgatadas por novos estudos. Personagens que numa vinda temerária atravessaram um oceano, deixando para trás sua língua, seus hábitos, seu cotidiano e até a própria família.

Essa mudança, por vezes traumática, sua acomodação nem sempre suave, devem ser objeto de estudos e de uma historiografia compatível com a procura das raízes das minorias brasileiras e da diversidade dos grupos que formaram o que chamamos, de forma ampla, o povo brasileiro.

Sabe-se de cristãos-novos que viveram na Bahia em diversos períodos: entre os degredados e colonos durante as Capitanias e Governo Geral. Anita Novinsky escreve que constituíam 10% a 20% da população branca na capital colonial, Salvador (Cristãos Novos na Bahia, p 67). Judeus vieram para o litoral do nordeste, durante o domínio dos flamengos, na Bahia (1624-25) e Pernambuco (1630-54), quando constituíram um comunidade com atividade intensa em diversos setores, tendo fundado a primeira sinagoga das Américas em Recife, em 1641. (* Judeus no domínio holandês, p. 10 Esther R. Largman) Depois da derrota dos holandeses, a maioria preferiu sair do Brasil, retornando para Amsterdã ou migrando para a Guiana, Antilhas ou Nova Amsterdam (hoje Nova York).

Os réus dos tribunais da Inquisição são testemunhos preciosos. Quando a Carta de Lei, de 25/05/1773 do Marquês de Pombal decretou a distinção entre cristãos-novos e velhos, no reinado de D. José II, os remanescentes já haviam esquecido suas origens – pois haviam-se tornado bons católicos.

O levantamento da presença judaica no Brasil e particularmente na Bahia, depois da Independência, ainda está para ser realizado.

Em 1821, nas Cortes Portuguesas, o deputado pela Bahia, Carvalho de Melo, defendeu a liberdade para os judeus, alegando que ela já existia em Roma e na França. Nesse mesmo ano, Alexandre Gomes Ferrão, também representando a Bahia, apresentou um projeto de plena restituição aos judeus e mouros expulsos de Portugal em 1497.1

Proclamada a Independência, a Constituição de 1824 consignou princípios da liberdade religiosa.

Em 1838, dois irmãos da nação hebraica, Arão e Isaac Sabag, fundaram um empório em Feira de Santana.2 A presença de alguns judeus, ainda no século XIX, é na maioria de origem sefardita e foram estudados pelos Wolff: José Abraham e Aron Saback foram registrados como viajantes em 1837, assim como Jountal Serfaty. Joseph Alkaim foi dispensado da função de gerente na Companhia de Minas de Assuruhá em 1887. A figura mais importante foi, sem dúvida, o rabino Isaac Amzalak que, chegando em 1829, criou um círculo de relações em sua casa, freqüentado “pela melhor gente do tempo”, inclusive pelo poeta Castro Alves que dedicou alguns poemas às suas filhas, em quem se inspirou.3

No início do século XX, encontramos pela imprensa sobrenomes com clara origem judaica mas já aculturados e absorvidos pela sociedade baiana: José Abrão Cohim, criador de gado e senador; juiz Antonio Bensabat, coronel José David Fuchs.4

A Primeira Grande Guerra foi uma explosão que dilacerou a comunidade dos países europeus. Os heimatlossen ou apátridas e as minorias, como corolários às guerras civis e migrações, perderam os direitos antes inalienáveis, isto é, os Direitos do Homem. Os efeitos da guerra, a fome e a penúria subseqüente, a mudança da carta política da Europa, o desemprego e a inflação, foram causas substanciais para a retomada do fluxo migratório para fora do Velho Mundo.5

A vida para muitos judeus na Europa, após a Primeira Guerra Mundial, tornou-se incompatível com suas perspectivas de vida e ideário humanos. Pressionados econômica, política e moralmente, desnacionalizados, sem perspectivas, puseram-se a abandonar o velho continente. Entretanto, a maioria procurava, desde o século XIX, emigrar para os Estados Unidos. Este grande pólo de atração, contudo, ofereceu dificuldades, quando a votação da lei em 1921, fixou o número dos imigrantes: 3% de cada nacionalidade que habitava em 1910.6 Restavam assim, no Novo Mundo, o Canadá, a Argentina e o remoto e pouco conhecido Brasil. Aqui vigoravam, a partir da Lei de Imigração de 1919, os tipos de visto de estada permanente, o que possibilitava uma ocupação e subsistência em pouco tempo.

O foco desta pesquisa é a presença de judeus com vida comunitária, identidade cultural e religiosa próprias – diferente do contexto maior.

Um anúncio, em 1912, da joalheria de Jacob Grunfeld, talvez um dos primeiros, confirma a crônica oral,7 e a informação da Enciclopédia Judaica, assinala este como o ano da chegada dos primeiros imigrantes, estimando em vinte, as famílias residentes em 1914, ano em que se organiza a primeira entidade, a Tiferet Sion, de caráter cultural. Um antigo imigrante, que chegou a Salvador em 1914, conta que já encontrou judeus, além dos polacos (ligados ao meretrício estrangeiro), com os quais não se misturavam e, por isso, a população os chamava de russos.8 Em 1916, no jornal O Democrata, encontramos divulgação de três negociantes, no ramo de mobiliários e quadros. Nessa mesma época, ambulantes começaram a percorrer os bairros mais afastados de Salvador e eram confundidos com os árabes e turcos que migraram em maior número. A revista Columna, fundada pelo professor David J.Perez, em 1917 registrou a importância de 117$(réis), enviada para as vítimas da guerra, e os cumprimentos recíprocos entre residentes de Salvador e Rio de Janeiro.9

De acordo com o Instituto Nacional de Estatística, Salvador possuía em 1917 duzentos e setenta e um mil e quatrocentos habitantes. Levine estima que, em 1917, havia no Brasil em torno de sete mil judeus. As restrições da Constituição de 1934 à imigração, reduziram drásticamente as cotas de judeus que fugiam do nazismo.10 A Constituição de 37 confirma as instruções anteriores.

Após o término da Primeira Grande Guerra a imigração se intensifica. A carência de cifras não impede de examinar, à luz de relatos, entrevistas, depoimentos e pesquisa em jornais, como começou a pulsar essa pequena comunidade. Através de levantamento nominal, chegamos a um número estimado de famílias judias que residiram no Estado da Bahia, entre 1912 e 1945: ashquenazitas: 315, sefarditas 24.

O maior número concentrava-se em Salvador; os judeus do interior estavam dispersos em vários municípios: Ilhéus, Itabuna, Cahoeira, Juazeiro, Feira de Santana, Bonfim e Alagoinhas eram os principais. No semanário Dos idishe vochenblat (03/02/26), o sr. L.Cenker relata uma assembléia para discutir compra de terreno destinado ao cemitério comunal, pois a colônia contava com quinhentas pessoas. Em novembro de 1929, o Diário de Notícias comenta a visita do sr. J. A. Ettinger, dirigente do Jewish National Fund, que informava: “As colônias maiores são do Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e São Paulo. Pernambuco tem trezentas famílias e aqui temos umas cento e vinte”. É necessário notar, contudo, que a mobilidade dessa comunidade é permanente, fazendo com que sua população tenha dados extremamente flutuantes. Em 1921, o sr. Leão Bloch já se despedia pela imprensa, indo para o sul.

O censo de 01/09/1940, realizado pelo I.B.G.E., oferece-nos dados oficiais: observamos a presença de judeus no Estado da Bahia, em 39 (trinta e nove) municípios, num total de 956 (novecentos e cinqüenta e seis) pessoas.11 Havia uma forte concentração urbana, sobretudo na capital Salvador, seguida de Ilhéus e Itabuna. Como comparação temos 1920 judeus no Rio de Janeiro e 19.743 no antigo Distrito Federal.

Resultado das entrevistas
Homens: 23 – Mulheres: 13 – Total: 36

Avaliação qualitativa:
Quanto à origem, a maioria provinha da Bessarábia (18), depois vinham os da Ucrânia (8), Polônia (6), Turquia (1), Hungria (1), Síria (1) e Israel (1).

Causas da emigração: Resposta quase unânime: pressão econômica (20) Outras: fuga ao anti-semitismo (9), ao serviço militar (2), falta de perspectiva (5) .

Impactos iniciais: Como alguns davam mais de um dado, apenas tomamos nota dos principais: a presença dos negros (16); o carnaval (7); atraso cultural (9); bondade do povo (6); as procissões (5); as igrejas (6) e, por fim, também quase uma unanimidade: a natureza tropical.

Dificuldades iniciais: língua (8) ; alimentação diferente (6); clima e topografia (8); saudades (6) e um último dado surpresa: nenhuma (8).

A alimentacão era baseada em batatas, massas caseiras, peixe, galinha e saladas. Muitos comiam pão com banana, ao longo do dia e, na volta do trabalho, faziam uma refeição perto do estilo europeu. Os ingredientes especiais vinham por navio, próximo dos grandes feriados, quando os judeus eram abastecidos de kashe (trigo mourisco), arenques, pão preto, salame típico e a matzá (biscoito e farinha de trigo especial) para a Páscoa. Entretanto os jovens acostumaram-se com rapidez à cozinha afro-brasileira.

Formação religiosa – declararam-se: Tradicionais (28), Ortodoxos (8)
A primeira sinagoga, Beit Israel, funcionava numa residência e passou a existir plenamente na sede da Sociedade Beneficente Israelita, que teve diferentes endereços.

Nível de escolaridade – completaram o curso primário: 14; o ginásio: 10; rudimentos de leitura: 5; segundo grau (humanidades): 4 e superior: 3.

Em 1924 é fundada a escola primária bilíngüe e também um jardim de infância, talvez o primeiro do Estado.

Não obstante as várias origens, conseqüentemente pluralidade de cores, a adaptação tornou-se condição irrevogável na aquisição da nova cidadania. A Bahia funcionava como um microcosmo, refletindo a comunidade maior.

O novo cotidiano requer do imigrante mecanismos de ajustamento, para conhecer os meios de prover sua subsistência. Jorge Amado em Suor descreve um imigrante: o velho Isaac carregando a mala de bugigangas, cujas correias lhe deixam marcas nos ombros.

Como ocupação obtivemos os seguintes dados: – Homens: mascate (15); movelaria (2); estudante (2); importador (1); escritório (2).

– Mulheres: donas de casa (8); balconista (2); escritório (1); professora (1); mascate (1)

Os artigos mais vendidos no sistema de vendas a prestações eram: tecidos, calçados, guarda-chuvas, quadros de santos, quinquilharias. O cliente alvo pertencia à classe média: funcionários públicos, bancários, artesãos, profissionais liberais, comerciantes, pequenos fazendeiros. Atingiam também os mais pobres, com artigos de menor qualidade, possibilitando a estes entrar no mercado consumidor.

O controle do dinheiro era rigoroso, frente às despesas certas. O bairro preferido de moradia era Nazaré, descrito por Jorge Amado e Darwin Brandão como pequeno-burguês.12 Abrigava, além de prédios e logradouros históricos, a Sociedade Israelita Brasileira, com organizações internas e beneficentes básicas. Anos mais tarde seria considerada um baluarte na luta contra o nazismo. Nazaré ficava próximo à Baixa dos Sapateiros, como era mais conhecia a rua J.J. Seabra, onde instalava-se o comércio popular dos sírios, turcos, libaneses e italianos; os espanhóis detinham o controle das panificadoras e os portugueses estavam mais dissolvidos no comércio geral. O contato dos judeus dava-se mais no nível popular e estudantil. No que tange ao item pesquisado sobre casamentos mistos, a primeira geração, nascida no Estado, duplicou em relação ao número ocorrido com os imigrantes, apesar da preocupação constante em resguardar a identidade da comunidade, pela manutenção dos costumes e ritos, da cultura e preservação da língua ídiche. Constatamos a presença de vinte e sete filiados à Maçonaria sendo que um deles atingiu o grau 33, de grão-mestre.

O grupo dos sefarditas era pequeno; comemoravam as grandes festas numa sala alugada da SIB. Com alto índice de casamentos endogâmicos, dificilmente ocorriam uniões com ashquenazitas. Apesar de toda a comunidade parecer unida, havia rivalidades internas, dissensões entre progressistas e sionistas, preconceitos internos tácitos e recíprocos. Era nas atividades, sobretudo as sócio-culturais, que o grupo se sobressaía. Eis as principais organizações fundadas:

1914 – Tiferet Sion - cultural
1915 – Achiezer - beneficente
1920 – S.I.B. - congregando: escola, biblioteca, sinagoga, coro, teatro amador e sede de festas, casamentos, eventos culturais.
1923 – Hilf - para dar apoio aos imigrantes
1928 – Yugend Farein – agremiação dos estudantes israelitas
Lai-SparKasse – uma espécie de Caixa de Auxílio Financeiro
Ezra – auxílio aos doentes
Chevra Kadisha – mantenedora do cemitério comunal
Diversas organizações juvenis

Ascensão sócio-econômica e cultural

A etiologia na crise de ajustamento e crescimento é similar à das demais comunidades estrangeiras. A esperança de melhorar as condições de vida ou mesmo de enriquecer, remunerava a solidão e separação dos familiares nos primeiros anos. Nos anos 20 e 30, a maioria ainda exerce a ocupação de mascate, mas alguns conseguem abrir seu próprio negócio. Sem dúvida, ao final de uma década, já pode usufruir de um padrão de vida menos austero, com certo conforto. Ao final dos anos 40, meia dúzia de famílias possuíam automóvel e moravam afastados de Nazaré, em bairros mais aristocráticos.

A integração da nova geração é gradativa, à medida em que se inserem, através da profissão, no tecido da sociedade baiana. Oriundo do ginásio público, o estudante judeu entra na Universidade, também pública, nos diversos ramos profissionais, com maior índice em engenharia, medicina, odontologia, magistério, advocacia e música.

A comunidade aparecia na imprensa em raros anúncios; registros; proclamas, casamentos, naturalizações; queixas apresentadas na polícia; comentários sobre os cáftens, mais como russos; notas sobre reuniões da S.I.B. No final da década de trinta já surgem artigos anti-semitas ou em defesa do judeu. Em 1937 realiza-se a primeira assembléia da Liga Internacional contra o Racismo e Anti-semitismo.

O final da Segunda Guerra Mundial registra o auge da vitalidade da comunidade e, ao mesmo tempo, o processo lento e contínuo da evasão de grande número de jovens em busca de novos horizontes no sul. O grupo atrofia-se, entra em fase de fossilizacão, seus membros compondo o melting-pot do Estado da Bahia.

Esther Regina Largman
Historiadora

Notas:

1 RODRIGUES, José Honório - Independência: Revolução e Contra-Revolução - Vol. 2, pgs. 101 e 181
2 POPPINO, Rollie E. - Feira de Santana - Editora Itapuã, 1969, Salvador, pg.76
3 WOLFF, Egon E FRIEDA - Judeus nos Primórdios do Brasil República - ed. Biblioteca H. Bialik, Rio, 1980 pgs 244,268
PINHO, Wanderley - Salões e Damas do Segundo Reinado - Livraria Martins Editora, São Paulo, 4ª Edição, pg.47
4 PANG, Eul Soo - O Coronelismo e Oligarquias (1885-1934) Civilização Brasileira 1979, pg.150
5 ARENDT, Hanna - O imperialismo - A Expansão do Poder- capítulo 5, Editora Documentário- R.J. 1967, pg. 199
6 CROUZET, Maurice - História Geral das Civilizações, vol XV, DIFEL, São Paulo, 1961,pg. 62
7 SAPOLNIK, Jaime - Crônica do judaismo baiano, in Herança Judaica nº 43, São Paulo, 1980, pg. 55
8 PINSKY, Jaime - Os judeus no Brasil - in SHALOM, Ano XIII, 1977,nº 146, São Paulo, pg. 6
9 A COLUMNA - número de setembro a dezembro de 1917, revista fundada por David J. Perez
10 LEVINE, Robert M.- Brazil Jew’s During the Vargas Era and After, in Luso-Brazilian Review, vol I, nº 1, June 1968, pg. 47
11 CENSO DEMOGRÁFICO - I.B.G.E. - Recenseamento Geral do Brasil - 1º/09/1940 Pg.66

JORNAIS:
A Imprensa, A Tarde, Diário de Bahia, Diário de Notícias, Estado da Bahia,O Commercio-Ilhéus, O Democrata, O Imparcial.
Dos Idishe Vochenblat e Dos Idishe Folkstzeitung (Semanário Judaico e o Jornal do Povo Judeu).