No dia 8 de dezembro de 2009, o mundo acadêmico empobreceu ao perder um de seus mais renomados historiadores, o Professor Yosef Hayim Yerushalmi.

Acadêmico brilhante, teórico, pesquisador, escritor e palestrante que magnetizava o público, Yerushalmi era considerado um dos maiores, se não o maior erudito da história judaica da era pós-Holocausto. Especializado em história judaica medieval e moderna, principalmente sobre judeus sefaraditas e judeus alemães, tornou-se um nome inevitável para quem quisesse se aventurar no estudo da árdua trajetória percorrida por nosso povo ao longo dos tempos. Erudição, brilhantismo analítico, uma elegância literária que beirava a poesia faziam com que Yerushalmi conseguisse tratar assuntos os mais diversos com igual profundidade e desenvoltura. Como escreveu o também respeitado historiador Jonathan Sarna, professor da Universidade de Brandeis, Yerushalmi possuía o raro talento de escrever livros acadêmicos que eram acessíveis ao público não acadêmico. Seu vasto conhecimento não era excludente. Em suas obras, questões acadêmicas e arcaicas tornavam-se assuntos relevantes à identidade judaica contemporânea. Talentoso orador e um grande contador de histórias, Yerushalmi envolvia seus ouvintes, fosse numa grande sala de aula ou na privacidade da sua biblioteca. Durante suas concorridas palestras ao redor do mundo em que participavam estudiosos e leigos, judeus e não judeus, ele conduzia o público, com maestria e desenvoltura, pelos longos caminhos da história judaica. Em outubro de 1995, veio a São Paulo a convite do Projeto Morashá, quando proferiu no salão da sinagoga Beit Yaacov uma palestra em que discorreu sobre a história dos judeus sefarditas entre o cristianismo e o islamismo. Como ele mesmo disse na ocasião "tentando explicar o que fez do judaísmo sefaradita ser 'sefaradita'".

Yosef Yerushalmi herdou o manto de liderança, no campo de história judaica, de seu mentor e amigo, o lendário Professor Salo Wittmayer Baron, titular da cátedra de História Judaica na Universidade de Colúmbia, em Nova York, a partir de 1929. A cátedra que Yerushalmi ocupou na Universidade de Colúmbia, de 1980 a 2008, leva o nome do Prof. Baron. Mas, diferentemente de seu mestre, que deixou um grande número de obras publicadas, incluindo a "História Social e Religiosa dos Judeus", em 21 volumes, Yerushalmi escreveu relativamente pouco. Suas obras, no entanto, tiveram grande impacto no mundo acadêmico. Cada uma delas, resultado de anos de meticulosa pesquisa e análise, não era apenas uma descrição apática da História, mas um estudo sobre o passado judaico e sua relevância no presente. Desde seu primeiro livro, sobre um converso espanhol, até o seu último sobre Sigmund Freud, o âmago de todo o seu trabalho, gira em torno da fascinação do autor com as múltiplas e freqüentemente contraditórias facetas de identidade que constituem o judeu moderno.

Ao longo de sua vida, Yerushalmi colecionou inúmeros títulos, cargos e prêmios. Ele recebeu o Doutorado da Universidade de Colúmbia, além de Doutorados Honorários do Seminário Teológico Judaico, do Instituto de Religião Judaica Hebrew Union College, da Universidade de Haifa, da Universidade Ludwig-Maximilians de Munique e da École Pratique des Hautes Études. Foi professor-titular da cátedra "Jacob E. Safra" de História Judaica e Civilização Sefaradita da Universidade de Harvard, em Boston, e da cátedra "Salo Wittmayer Baron" de História Judaica, Cultura e Sociedade, e diretor do Centro sobre Israel e Estudos Judaicos da Universidade de Colúmbia, em Nova York. Foi Fellow da Academia Americana de Artes e Ciências e da Academia Americana de Pesquisa Judaica, e Membro Honorário da Academia Portuguesa de História, em Lisboa. Em 1976 foi agraciado com a Newman Medal da Universidade de Nova York. Foi também Fellow do National Endowment for the Humanities, dos museus Rockefeller e Guggenheim. Presidiu de 1987-1991 o Instituto Leo Baeck, em Nova York, o maior centro de pesquisa sobre a História do judaísmo em terras de língua alemã. Entre os inúmeros prêmios, destacam-se o Prêmio Nacional do Livro Judaico, dos Estados Unidos, em 1983 e 1992.

Sua vida

Nascido no Bronx, em Nova York, em 1932, Yerushalmi cresceu num lar onde se falava, além do inglês, o hebraico e o iídiche. Seu pai, Yehudah Yerushalmi, emigrou da Rússia na década de 1920 para a então Palestina sob Mandato Britânico, e depois para os Estados Unidos; sua mãe emigrou diretamente de Pinsk, na Rússia, para os Estados Unidos. O pai, professor de hebraico, transmitiu-lhe o amor pelos livros hebraicos e o enviou à Yeshivá Salanter, no bairro do Bronx, em N.Y. Continuou seus estudos na Yeshiva University, onde se formou em 1953. Freqüentou, a seguir, o Jewish Theological Seminar, onde foi ordenado rabino, em 1957.

A tradicional educação religiosa que recebeu fez com que tivesse um profundo conhecimento da Torá, do Talmud, dos textos sagrados e das fontes clássicas do judaísmo. Poliglota, tinha grande paixão pelo saber, principalmente pela história, literatura européia e música clássica. Durante toda a sua vida Yerushalmi costumava visitar livrarias e sebos, no mundo todo, à procura de manuscritos e livros raros judaicos.

Em 1959, casou-se com Ophra, uma jovem israelense que foi para Nova York para estudar piano com Claudio Arrau. Yerushalmi foi apresentado a Ophra por um grande amigo em comum, Ben-Zion Gold. O casal teve um filho, Ariel, que nasceu em Boston, em 1968. Atualmente casado e com um filho, Ariel é um "embaixador cultural", promovendo conferências na Itália e França com poetas, músicos e jornalistas para diferentes públicos, disseminando a cultura e as artes entre os povos.

Decidido a seguir a carreira acadêmica, Yerushalmi entrou para a Universidade de Colúmbia, em N.Y., para fazer o doutorado em História. O orientador de sua tese era o Prof. Salo Baron, que acabou tornando-se um grande amigo. Como tema de sua dissertação, Yerushalmi escolheu a vida de Isaac Cardoso, um converso do século 17. Médico da corte e intelectual, Cardoso abandonou uma vida confortável, em Madri, para viver abertamente como judeu, na Itália.

O brilhantismo dessa tese se traduziu em um convite a Yerushalmi, em 1966, para ensinar na Universidade de Harvard, onde permaneceu por 14 anos, chegando a ocupar a Cátedra "Jacob E. Safra" de História Judaica e Civilização Sefaradita. Sua dissertação serviu, também, de base para o livro From Spanish Court to Italian Ghetto (Da Corte Espanhola ao Gueto Italiano), de 1970. Escrito com a dinâmica de um romance, essa obra lhe valeu seu primeiro prêmio literário.

Em 1980, Salon Baron o convenceu a deixar Harvard para voltar para a Universidade de Colúmbia, onde assumiu a cátedra "Salo Wittmayer Baron" de História Judaica, Cultura e Sociedade.

Após ter-se firmado como um dos maiores conhecedores da história iberojudaica, sua mente inquisitiva fez com que ele expandisse o leque de seus interesses. Sua rara capacidade de transitar pela História Judaica ficou evidenciada em seu livro Haggadah and History (Hagadá e História) (1975), onde após pesquisar 200 Hagadot, Yerushalmi analisa as diversas formas da liturgia de Pessach e como a História Judaica pode ser estudada segundo as diferentes edições da Hagadá de Pessach através dos tempos.

Em 1982 publicou o seu mais importante livro: Zakhor - História Judaica e Memória Judaica. Essa obra foi premiada em 1983. Guiando o leitor com segurança pelos tortuosos meandros da reflexão teórica, Yerushalmi levanta na obra uma sé­rie de questões sobre o convívio - nem sempre amigável - entre a historiografia e o povo judeu. A repercussão e influência de Zakhor foi enorme. A clara distinção que Yerushalmi faz entre a história e a memória levou uma geração inteira de eruditos a re-examinar essa relação. O livro foi aclamado por críticos nos Estados Unidos e em outros países, principalmente na França, onde o professor era admirado por intelectuais, incluindo Jacques Derrida, Pierre Birnbaum, Sylvie-Anne Goldberg, Maurice Kriegel e Eric Vigne.

Ao professor Yerushalmi preocupava a idéia de que na Idade Moderna, "os Textos Sagrados foram substituídos pela História como o árbitro homologador do pensamento judaico", e que essa substituição "gerou o caos". A professora Elisheva Carlebach, aluna e sucessora do Prof. Yerushalmi na Cátedra "Salo Baron" da Universidade de Colúmbia, afirmou em recente entrevista que o eminente teórico incentivava outros estudiosos a pesquisar a memória coletiva. "Ele acreditava que o importante é lembrado e isso se torna parte da consciência coletiva das pessoas. O que os arqueólogos podem ou não podem verificar é outro assunto, e deve ser tratado de forma diferente".

Em sua última obra publicada, Freud's Moses: Judaism Terminable and Interminable (O Moisés de Freud: Judaísmo terminável e interminável), de 1993, Yerushalmi continuou a explorar o relacionamento entre a História e a memória. Em seus últimos anos, Yerushalmi estava absorvido na obra Shevet Yehudah, de Salomon ibn Verga, preparando uma importante tradução e uma série de estudos.

Não há duvida de que a longa busca de Yerushalmi para entender a condição judaica, especialmente após o Holocausto, foi uma de suas maiores contribuições ao mundo acadêmico. Mas, o legado de que ele mais se orgulhava eram seus alunos, muitos dos quais se tornaram historiadores famosos e ocupam cátedras em universidades na América do Norte, Europa e Israel. Verdadeiro mestre, Yerushalmi trabalhava sobre o desenvolvimento intelectual de cada um deles.

Nos dias que seguiram sua morte, muitos de seus alunos declararam que se sentiam órfãos, desprovidos do Mestre que levara o estudo da História Judaica a um patamar tão elevado.

Yosef Hayim Yerushalmi faleceu aos 77 anos de idade, em Manhattan. Iehi Zikhronó Baruch - Que sua memória seja abençoada.

Bibliografia

Yosef H. Yerushalmi, Scholar of Jewish History, Dies, artigo de Joseph Berger, The New York Times, 10 dezembro de 2009

Yosef H. Yerushalmi, artigo de David N. Myers, Professor of Jewish History At UCLA, studied with Prof. Yerushalmi at Columbia University http://www.columbia.edu

História Judaica e Memória Judaica

Em seu livro Zakhor - História Judaica e Memória Judaica, publicado no Brasil em 1992 pela editora Imago, Yerushalmi chama a atenção para o fato de que, na Torá, o verbo zachar aparece 169 vezes. Apesar de a memória ser uma de nossas capacidades mais frágeis e instáveis, nossa tradição não hesitou em nos comandar "Lembra!" Assim como Israel é ordenado a se lembrar, é também ordenado a não esquecer. Lembrar é um imperativo religioso. Na verdade, afirma Yerushalmi, ao tentar compreender a sobrevivência de um povo que passou a maior parte de sua vida em dispersão, seria importante escrever a história de sua memória, em grande parte negligenciada e ainda por ser escrita. A "memória", além de ser um mecanismo fundamental da preservação da herança e cultura judaica, ajuda-nos a refletir sobre as próprias bases do judaísmo.

Na preleção inicial, o autor reafirma como premissa básica o caráter eminentemente histórico da religião judaica. De fato, passados os tempos primordiais, D'us se revela a Seu povo, na História, de forma presente e manifesta. D'us exige que o Povo Judeu nunca perca a memória da Ação Divina nos eventos que constituíram as raízes do processo histórico judaico. "Eu sou o Senhor teu D'us, que te fez sair do Egito, da casa da servidão...". "Vai e reúne os anciãos de Israel, dizendo-lhes: o Senhor, D'us de vossos pais, D'us de Abraão, D'us de Isaac e de Jacó...". São constantes e recorrentes as afirmações como estas, por parte de D'us, instando a Nação Judaica a manter a "memória" como fator básico de "coesão".

No entanto, escreve Yerushalmi, nosso povo, tão irremediável e indissoluvelmente preso a suas raízes históricas, desinteressou-se da História. Progressivamente, desaparece entre os judeus o ofício do historiador e arrefece o interesse pelos acontecimentos. O povo da "memória" parecia ter perdido a noção de História. Entretanto, ele afirma que a ausência da "curiosidade histórica" entre os judeus reside na sua própria visão de História.

Enquanto os gregos - considerados os "pais da historiografia" - relatavam eventos concretos, o Povo Judeu buscava, e, mais importante, firmava o sentido da História. Para a consciência judaica, não importava o rol dos acontecimentos, mas o significado deles.

Yerushalmi afirma que, no século 16, em razão da expulsão dos judeus da Península Ibérica, houve um momentâneo ressurgimento da historiografia judaica. As proporções da catástrofe e a crueldade do novo Êxodo exigiam uma explicação. Boa parte das obras históricas judaicas da época buscava entender os motivos das constantes perseguições. Entretanto, a "curiosidade histórica" judaica voltaria a fenecer e só seria retomada, no séc. 19, por influência do Iluminismo.

Inúmeros intelectuais judaicos procuraram "repensar" o passado judaico numa época em que, em muitas regiões da Europa, parecia enfraquecer, no seio das coletividades ditas de "fé mosaica", a crença na eterna Aliança entre Israel e seu D'us. Esmaecida a Fé, recorria-se à História para recriar, agora em termos mundanos, a identidade judaica. Yosef Hayim Yerushalmi observa que "pela primeira vez, a história, e não um texto sagrado, se torna árbitro do judaísmo. Virtualmente, todas as ideologias judaicas oitocentistas, da Reforma ao Sionismo, sentiam a necessidade de apelar para o aval da história". Numa aparente contradição, o interesse judeu pela histó­ria florescia exatamente quando a "memória" judaica conhecia um circunstancial ocaso. Numa época tingida pelo ceticismo de fundo racionalista, para muitos judeus a história parecia oferecer a única oportunidade de retomar o contato com a tradição e a herança judaica. A história tornava-se, assim, o instrumento do resgate da "memória". Em contrapartida, para os tradicionalistas, a historiografia - enquanto narrativa secularizada e cientificista - era adversária da "memória"; as tradições e os ritos se sentiam ameaçados pela pesquisa crítica do passado. As reflexões do Prof. Yerushalmi nos colocam, finalmente, diante de uma questão fundamental: qual o papel da história para a edificação e preservação da "memória" dos povos?

Examinemos em primeiro lugar, a visão reducionista e erroneamente tida como científica do Positivismo, que buscou fazer da his-toriografia uma mera enumeração exaustiva do maior número possível de eventos. A História torna-se, então, uma simples faculdade de conservar o passado. A "memória" social, por sua vez, degrada-se num vasto depositório de fatos e processos, arranjados numa hierarquia ditada pelo chamado "rigor científico". Nesse caso, a história, ao preencher não seletivamente a consciência dos povos, mata a "memória". Mais hábil e ardiloso, o Historicismo - cuja expressão máxima é o pensamento de Hegel - faz da História o cenário da "marcha triunfal" da Razão.

Formado pela tradição humanista inerente ao judaísmo, o professor Yerushalmi recusa a estreita bitola do Positivismo e escapa das falácias do Historicismo. Ele afirma que não compete ao historiador definir aquilo que deve ser lembrado e o que precisa ser esquecido. Ao historiador cabe levantar os fatos: à memória social cumpre selecionar os eventos dignos de rememoração. Os valores éticos de um povo, consubstanciados na Lei, devem ser o fator básico de toda e qualquer definição da "memória". O termo hebraico "Halach" - que significa "caminho" - gerou o substantivo "Halachá", o conjunto de ritos e crenças que dá a um povo seu sentido e seu propósito. Cabe a este complexo de normas, baseadas na moralidade, criar e preservar a "memória" social. Só os fundamentos éticos podem explicitar o que deve ser retido e aquilo que, por irrelevância, precisa ser olvidado. Esta lição é, sem dúvida, um dos maiores legados do povo de Israel a todas as nações deste planeta.

Extraído do artigo do Prof. Luiz Cesar Barreto "O esquecimento, astúcia da memória" publicado na Revista Morashá n0. 1, maio de 1993