Poucos escritores europeus da atualidade têm sido mais assombrados pela história da França durante a 2ª Guerra Mundial - e principalmente a dos judeus que viviam no país - do que o escritor francês Patrick Modiano. Aos 69 anos, ele é o 15º francês a ganhar o Nobel de Literatura.

Em seus livros, Modiano aborda com frequência um lado negro da história da França com o qual muitos franceses lidam com dificuldade e desconforto: o papel desempenhado pelos franceses durante o Holocausto, inclusive sua participação na deportação de judeus para campos de concentração nazistas.

A ocupação nazista, a vida judaica sob o regime colaboracionista de Vichy e a perda de identidade são temas recorrentes nas obras de Modiano. Para ele, escrever sobre esse período e o colaboracionismo francês não é mero interesse histórico ou filosófico, mas uma forma de lidar com seu legado familiar, de digerir o passado sombrio de sua família, pois seu pai, Albert Modiano, judeu de origem sefaradita, sobrevivera à Guerra e ao Holocausto atuando no mercado negro e negociando com os nazistas. Ao anunciar o nome de Patrick Modiano como o vencedor do Prêmio Nobel de Literatura de 2014, em Estocolmo (Suécia), Peter Englund, secretário permanente da Academia Nobel, afirmou que a Academia escolhera o escritor “pela arte da memória com a qual evocou os destinos humanos mais incompreensíveis e descortinou ao mundo a vida sob a Ocupação”.

O peso de uma herança sombria

Considerado por alguns críticos o mais importante escritor francês vivo, Patrick Modiano nasceu em Boulogne-Billancourt, nos arredores de Paris, em 1945. Seu pai, Albert Modiano, era um homem de negócios oriundo de uma família sefaradita, vinda de Salônica. A mãe, a atriz belga Louise Colpeyn – futura intérprete de filmes de Becker, Autant-Lara e Goddard –, trabalhava como tradutora na Paris ocupada pelos nazistas quando conheceu Albert. O casal se divorciou quando ele ainda era criança.

Muitas das informações que temos sobre o pai e a família do escritor estão em sua obra, principalmente através da mais autobiográfica de todas, Un Pedigree (2004).

Durante a ocupação, Albert não se registrou como judeu e se recusava a usar a Estrela de David obrigatória para toda a população judaica. Acabou sendo preso pela polícia francesa, que trabalhava em estreita parceria com a Gestapo, mas graças à influência de um francês que colaborava com os nazistas e atuava no mercado negro, foi solto logo em seguida. Este episódio aparece, sob diferentes ângulos, em inúmeras obras de Modiano. Trabalhando com o setor de compras da Gestapo na França, o pai do escritor, que sobreviveu à Guerra sob a falsa identidade de Henri Lagroux, conseguiu acumular uma fortuna.

A sombra de um passado indigno, vergonhoso, esteve presente durante toda a infância e adolescência do escritor. Aos 13, Modiano lembra que vivia em um apartamento que pertencera a pessoas detidas e, provavelmente, mortas nos campos nazistas. Um dos moradores anteriores fora o escritor François Vernet (nascido Albert Sciaky, de uma família de Tessalônica), que teria sido assassinado em Dachau; e Maurice Sachs, um escritor judeu francês colaborador dos nazistas que se tornou protagonista de um de seus livros.
Na realidade, Patrick via muito pouco os pais – o pai, levando sua vida bem escusa e a mãe, atriz, geralmente em turnês, fora de casa. A quase total ausência da mãe na sua infância e adolescência o aproximou ainda mais do irmão Rudy, dois anos mais novo.

A morte deste último, com apenas seis anos, afetou-o profundamente.
Tendo que se virar praticamente sozinho, era enviado de um internato deplorável a outro. Mais velho, porém, frequentou o ginásio mais conceituado da França e, por fim, a Sorbonne. Na sua conturbada adolescência, ele encontrara um apoio fundamental num amigo da mãe, o célebre escritor Raymond Queneau, que, entre outros, dava-lhe aulas particulares. A literatura foi sua salvação e foi Queneau, então membro do conselho da mais conceituada editora do país, a Gallimard, quem o introduziu no mundo das letras.

Sua obra

Ocupação, abandono, perda, solidão, ausência de raízes, pais ausentes, Paris, tudo isso Modiano colocou em seus livros. Suas obras são sobre a vida sem pontos fixos, na qual os personagens de sua literatura de ficção vez por outra têm que recorrer a velhas agendas telefônicas para confirmar a existência e os endereços de pessoas que conheceram no passado.

Os principais personagens são, muitas vezes, jovens sós no mundo, que estão sob a proteção de pessoas mais velhas, com fonte de renda e passado misterioso. O personagem central geralmente está em busca de pessoas que fizeram parte de seu passado e se perderam no tempo.
Mas, não há duvida de que a obra de Patrick foi profundamente marcada pelo colaboracionismo de seu pai, as ambiguidades e a degradação daquele estilo de vida. Em várias entrevistas que concedeu, o escritor costuma dizer que sua memória começou antes de seu nascimento, diretamente ligada à história de seus pais, que se conheceram durante a ocupação nazista da França, e aos fatos vividos por ambos.

Não por acaso seu primeiro romance, La Place de L’Étoile, de 1967, tem como um de seus personagens principais Maurice Sachs, judeu colaboracionista, simpatizante da Gestapo morto a tiros pelos nazistas quando estava sendo evacuado do campo ao qual havia sido finalmente enviado.

O título da obra se refere a uma piada praticamente intraduzível: Um transeunte em Paris pergunta a um judeu onde fica a Place de l’Étoile (uma das mais célebres praças europeias); e o judeu aponta a seu peito, entendendo “place de l’étoile” como sendo o lugar de colocação da Estrela de David que os judeus eram obrigados a usar em suas roupas – e não a grande intersecção viária em Paris. Essa referência à estrela amarela que os judeus eram obrigados a usar durante a ocupação nazista tem um significado doloroso para Modiano.

Seu primeiro conto, que escreveu aos 21 anos, fala de um campo de concentração no qual jovens na década de 1960 (denominados “children of Himmler and Coca-Cola” – filhos de Himmler e Coca-Cola) são, supostamente, presos por “kapos charmosos”, incluindo cantores populares como Mireille Mathieu e Françoise Hardy.

Nos últimos anos, alguns autores franceses abordaram em sua obra a questão do colaboracionismo e a obra de Modiano. No início de 2014 foi lançado pelo advogado e escritor, Christian Gury, o livro “The Bloody Barge: Violette Morris, Cocteau, Modiano” (A Barcaça Sangrenta: Violette Morris, Cocteau, Modiano), que aborda diretamente a questão do colaboracionismo. Em seu livro, Gury analisa os dois notórios colaboradores nazistas (Morris e Cocteau), que aparecem em vários romances de Modiano. Em Under the Skin of Patrick Modiano (Sob a pele de Patrick Modiano), o jornalista Denis Cosnard mostra como a ocupação francesa durante a 2ª Guerra afetou a criação literária de Modiano. Para Cosnard, o fato do vencedor do Prêmio Nobel de Literatura desse ano de 2014  ter muitas vezes mentido sobre a data de seu nascimento – dizendo ter sido em 1947 e não em 1945 – foi uma tentativa de se afastar da “pilha de cadáveres e ruínas” da guerra.

Em entrevista concedida em 2007, o vencedor do Nobel confessou que se sentia “estressado e atormentado” por ter nascido em 1945. Em outra entrevista, em 2010, referiu-se a si mesmo como “um produto do estrume da Ocupação, um tempo bizarro quando pessoas que nunca deveriam ter-se encontrado se encontraram e, por acaso, geraram um filho”.

Nos dias de hoje

Em 1972, Modiano casou-se com Dominique Zehrfuss, filha do arquiteto Bernard Zehrfuss, com quem tem duas filhas, a produtora de cinema Zina Modiano e a cantora e escritora Marie Modiano.

O escritor vive em Paris, cidade que serve de cenário a quase todos os seus trabalhos. É muito popular na França, sendo considerado por alguns críticos o mais importante escritor francês vivo. Em 1972, Modiano recebeu o Grande Prêmio de Romance da Academia Francesa com Les Boulevards de Ceinture e, em 1978, o prestigiado Goncourt, principal prêmio literário do país. Ele recebeu o prêmio pelo livro Rue des Boutiques Obscures, lançado no Brasil como “Uma Rua de Roma”. Esta obra conta a história de um detetive que perdeu a memória e precisa descobrir quem realmente é. Em junho deste ano de 2014 ele ganhou o prestigiado Prêmio da Biblioteca Nacional da França pelo conjunto de sua obra.

Seu portfólio de sucessos de público e de crítica é amplo; Modiano escreveu cerca de 30 livros, sendo a maioria romances. Entre outros a “Vila Triste”, “Meninos Valentes”, “Ronda da Noite” e “Do Mais Longe do Esquecimento”, lançados no Brasil. A maioria de seus livros são obras muito curtas que se constituem de “variações de um mesmo tema, a lembrança da perda, a relação entre identidade e memória”, disse o escritor e historiador sueco Peter Englund, secretário da Academia Sueca, em entrevista após o anúncio do prêmio.

A literatura não é o único talento de Modiano, que também se aventurou pelo universo do cinema, tendo feito o roteiro de filmes como “Viagem do Coração” (2003), de Jean-Paul Rappeneau, “Lacombe Lucien” (1974), de Louis Malle, “Le Parfum d’Yvonne” (1994), de Patrice Leconte, e “Une Jeunesse (1983”), de Moshé Mizrahi, os dois últimos adaptados de obras suas. Atuou, também, como ator, ao lado de Catherine Deneuve, em “Genealogias de um Crime” (1997), de Raoul Ruiz.

A escolha de Modiano surpreendeu o mundo da literatura, pois seu nome não fazia parte da lista de candidatos favoritos ao Nobel deste ano. Surpreendeu o próprio escritor que, em sua primeira entrevista após a divulgação do prêmio, concedida ao site da Academia Sueca, contou que estava na rua quando soube da novidade. Modiano revelou, ainda, “Nunca pensei que isto me pudesse acontecer, estou muito tocado, cheio de emoções”.