Aclamado pela revista Newsweek como o 'rei do cartoon', autor e ilustrador de inúmeros best-sellers infantis, William Steig criou milhares de cartuns, além de desenhos e aquarelas. Entretanto, sua criação mais famosa é Shrek, que inspirou o personagem principal da famosa trilogia de filmes do mesmo nome.

Nova-iorquino filho de imigrantes judeus da Polônia, Steig criou 1.600 cartuns e mais de 10 mil desenhos. Criou, também, 120 capas e 1.676 desenhos para a famosa revista The New Yorker, para a qual trabalhou durante 73 anos. Mas seu talento não parou aí; sua alma de criança o fez criar e ilustrar 41 livros infantis, muitos dos quais lhe valeram importantes prêmios. William costumava dizer: "Meus desenhos são o que há de melhor em mim".

Crianças nos quatro cantos do mundo são fascinadas pelo universo onde se situam suas histórias. Um mundo onde as princesas preferem monstros a cavaleiros, onde ratos de bom coração são mais espertos do que as raposas, onde cães heróicos tentam melhorar o mundo e as crianças quebram garrafas para libertar seus pais - que estavam presos dentro das mesmas.

Quando morreu, aos 95 anos, Steig deixou, além do legado acima descrito, mais de 10 mil desenhos, aquarelas, esboços e rascunhos, muitos dos quais ainda não haviam sido publicados. Para o crítico Joshua Hammer, os livros de Steig conquistaram rapidamente o coração das crianças porque elas conseguem captar facilmente sua visão, tão humana, aberta e criativa quanto a de seu público infantil. Entre os livros traduzidos e publicados no Brasil estão: Silvestre e o Seixo Mágico, Doutor de Soto: o Rato Dentista, e Shrek!

Para marcar o centenário de nascimento do artista, em 2007, o Museu Judaico de Nova York organizou uma exposição intitulada "Do The New Yorker a Shrek!: A arte de William Steig". A mostra incluiu mais de 190 desenhos originais, anotações de livros, cartas e algumas reproduções cujos originais não puderam ser localizados. Depois de Nova York, foi a vez de São Francisco, que exibiu a mostra entre 8 de junho e 7 de setembro de 2008, no Museu Judaico Contemporâneo.

Primeiros passos

Joseph Steig, pai do cartunista, nasceu em Lvov, na Polônia, em uma família judaica religiosa. Ainda jovem, trocou sua cidade natal pelos Estados Unidos, onde chegou em 1903. Pouco depois, conseguiria trazer para a América sua esposa, Laura, e o filho Irwin. O jovem casal estabeleceu-se no Brooklyn, bairro nova-iorquino onde viviam muitos judeus. Foi lá que nasceu William, em 14 de novembro de 1907. Anos mais tarde a família se mudou para o Bronx, onde o jovem passou sua infância.

Enquanto Joseph Steig trabalhava como pintor de casas, Laura conseguia aumentar a renda familiar costurando para fora. A música e a arte faziam parte do cotidiano do casal, que transmitiu esta paixão para os filhos. Socialista convicto, a exemplo de inúmeros imigrantes judeus da Europa Oriental, seu pai trouxera em sua bagagem a tradição de ativismo político e trabalhista. Não via o capitalismo com bons olhos, e não queria que seus filhos estivessem sujeitos a empregos com horários pré-determinados. Assim, via a arte como a melhor opção de trabalho para eles.

William, chamado por todos de Bill, cresceu estimulado pelo pai, principalmente, a desenvolver seu talento artístico. Seu primeiro professor foi o irmão mais velho, Irwin, artista profissional. Além de pintar, Bill amava a leitura e sua imaginação foi rapidamente capturada pelos contos dos irmãos Grimm, pelos personagens de Daniel Defoe em Robinson Crusoé, de Howard Pyles, em Robin Hood, pelos filmes de Charlie Chaplin, pelas lendas do Rei Arthur e seus Cavaleiros da Távola Redonda.

Desenhou seu primeiro cartoon para o jornal da escola onde cursava o ensino médio. Posteriormente, freqüentou por dois anos o City College; durante outros três a Academia Nacional de Artes e, por cinco dias apenas, o Instituto de Belas Artes de Yale, conceituada universidade norte-americana, que abandonou por falta de interesse. O sucesso, no entanto, provou que seu talento natural era suficiente para transformá-lo em cartunista, ilustrador e escritor de grande sucesso.

Certa vez, em uma conversa com David Allender, da Publishers Weekly, Steig afirmou: "Quando eu era adolescente, o Taiti era o paraíso para mim; sonhava em um dia viver lá, para sempre. Eu seria um homem do mar, como Melville, mas a Grande Depressão forçou-me a trabalhar para ajudar no sustento de minha família". O ano de 1930 foi, de fato, um momento marcante em sua vida, como contou, certa ocasião: "Meu pai faliu durante a Depressão. Meus irmãos mais velhos já estavam casados e o mais novo tinha apenas 17 anos. Papai então, me disse: 'Agora é com você, Will'".

Começou a vender seus desenhos para a The New Yorker, como free-lance, recebendo US$ 40 por desenho. Na época, os cartunistas da revista não escreviam suas próprias legendas, mas ele insistia que seu trabalho era um todo, composto por desenho e legenda. E, assim, lançou uma nova era na The New Yorker , que transformou radicalmente a forma como eram criados os cartuns, que, aliás, até hoje constituem ponto alto na conceituada revista.

Durante a Depressão, editores de jornais e revistas estavam atrás de humor, uma commodity escassa naquele período sombrio. Não tardou para que Will estivesse trabalhando para outras revistas, como Judge, Life e Collier's, já ganhando o suficiente para manter a família. Era o início de uma carreira quer se tornaria internacionalmente reconhecida.

Steig completava sua renda com trabalhos publicitários e, na década de 1940, o cartunista descobriu mais uma faceta de seu talento: a escultura em madeira. Vários de seus trabalhos podem ser vistos na histórica casa de Franklin D. Roosevelt, em Hyde Park, no estado de Nova York, e em museus de estados vizinhos, na região de New England.

Sua arte

Os temas dos primeiros trabalhos de Steig foram moldados por sua infância, no Bronx, e pela dificuldade de ser judeu naquele tempo. Em seus cartuns que retratam crianças de rua - principalmente na famosa série, Small Fry, publicada no período de 1930 até o começo de 1950 - Will lembra o mundo de sua infância judaica, no Bronx.

São poucos, no entanto, os cartuns onde faz alusão direta à sua origem judaica. O mundo de Steig era o do judeu aculturado, nascido e educado na América, e seu humor é universalista, retratando arquétipos que resumem a condição humana. Na representação de Will Steig, as vicissitudes dos imigrantes judeus, a ascensão social e o orgulho que sentiam por ver seus filhos se graduarem em escolas e universidades representavam as esperanças e temores de muitos imigrantes, judeus ou não.

Mesmo durante a 2ª Guerra Mundial, não retratou especificamente a tragédia vivida pelos judeus europeus. Ele acreditava que o mundo precisava de heróis e só acharia salvação pela mão de garotos - "porque os adultos haviam perdido o controle" dizia. Na série "Sonhos de Glória", que iniciou em 1944, desenha meninos que abatem aviões de guerra alemães ou mantêm Hitler na mira de seu revólver.

Em alguns cartuns, Steig faz referência direta às suas raízes judaicas. Na capa da New Yorker de 18 janeiro de 1964, por exemplo, dois casais de personagens, roliços e felizes, fazem um brinde para festejar o Ano novo dizendo, "To Life!", ou, em outras palavras, o nosso conhecido Lechaim! Em outro, uma menina toca piano sob o olhar do busto de um compositor que murmura, "Gevalt" (algo como, "ó, Céus", em iídiche).

Steig não foi artista de um só estilo, o que dificultava aos críticos defini-lo. Sua arte estava em constante transformação, passando de um estilo para outro, sempre atrás de uma forma criativa mais espontânea.

È inegável sua paixão pelo desenho. Não importava muito o material utilizado - podia ser sobre uma simples folha de rascunho, o verso de uma lista de compras ou um papel profissional. Começava seus desenhos por um rosto e daí partia para criar um mundo rico em temas e cores. Tinha a habilidade de ver o mundo através dos olhos de um único personagem e, através dele, conseguia envolver o público nas peripécias dos demais protagonistas.

Tinha um fino sentido da harmonia das cores, expressa no tratamento que dava às vestimentas que compunham seus pequenos dramas, nos quais predominavam os suaves lilases e verdes. Nos últimos anos de sua carreira, descartava os trabalhos que exigissem traçados ou rascunhos preliminares, dizendo que somente o desenho livre lhe trazia alegria.

Se ao desenhar conseguia transmitir sua visão de mundo, o mesmo acontecia com o ato de escrever. Não foram poucas as vezes, em entrevistas, em que Steig dizia que gostava de escrever apenas pelo que o ato de escrever representava. Para ele, a escrita era uma forma de desenho. "Aprecio o ato físico de escrever. Quando era garoto, antes mesmo de aprender a soletrar, eu pegava papel e lápis e passava horas 'escrevendo' uma história". Steig era um "artista que escrevia", como suas inúmeras obras infantis o demonstram.

Novos desafios

Em 1967, aos 60, quando muitos colegas já pensavam na aposentadoria, Steig aceitou a sugestão feita por um companheiro na revista, Bob Kraus, e se lançou a um novo desafio - escrever histórias para crianças. Mais uma vez, provou seu grande talento, imprimindo ao trabalho a mesma seriedade, o mesmo humor e a mesma linguagem simples que se tornaram marca registrada de seus desenhos para adultos.

Os personagens centrais de seus livros infantis são geralmente animais, porque, como Steig costumava dizer, os bichos conseguem dar maior amplitude aos temas e também porque as crianças gostam de vê-los se comportando como as pessoas que conhecem. "Acho que a utilização de bichos enfatiza o fato de que a história é uma simbologia sobre o comportamento humano. E as crianças percebem imediatamente que não é apenas uma história, mas sim algo sobre a vida na terra".

Seu primeiro lançamento para o público mirim, em 1968, foi CDB, uma mistura de livro e quebra-cabeças. No mesmo ano veio Roland, the Minstrel Pig, que conta a história de um porquinho cantor. Em 1972, Dominic, sobre um cachorro com um coração de ouro e nervos de aço, rendeu-lhe o prêmio Christopher. Com o livro Sylvester and the Magic Pebble (lançado no Brasil com o título de Silvester e o seixo mágico), que narra a história de um burrinho que coleciona seixos, ele recebeu um dos mais importantes prêmios da literatura infantil do país, a Medalha Caldeccot. Para muitos críticos, é sua obra mais representativa. Com mais de 2 milhões de livros vendidos, em todo o mundo, ele também foi laureado por outros trabalhos, entre os quais Abel's Island; Doctor de Soto, o famoso ratinho-dentista que angariou milhares de fãs nos EUA e em outros países, inclusive no Brasil; Farmer Palmer's Wagon Ride; Brave Irene e Zeke Pippin.

O ogro verde chamado Shrek, que, em iídiche, significa medo, já divertia as crianças quando era apenas um personagem do livro publicado por Steig, em 1990, com o mesmo nome Shrek!. Com este herói às avessas, o estúdio DreamWorks, de Steven Spielberg, criou o desenho animado que é sucesso no mundo inteiro. Shrek, o filme, arrecadou mais de US$ 100 milhões nas bilheterias norte-americanas, quando foi lançado, em 2000. Foi o primeiro vencedor do Oscar de Melhor Desenho Animado, instituído no mesmo ano, e, também, o primeiro filme de animação a concorrer à Palma de Ouro, no Festival de Cannes, desde O Mundo Selvagem, de 1974.

Sobre a obra de William Steig, escreveu James E. Higgins, em Children's Literature in Education: "Steig é um escritor de livros para crianças cujos trabalhos ultrapassam os limites do público infantil. Ele tem a singular capacidade de, como as crianças, apresentar situações inusitadas e se maravilhar com elas como se fossem situações do dia-a-dia". Para Higgins, Steig tem a capacidade de trazer à tona a essência da infância, o que torna seus trabalhos especiais, sempre carregados de temas positivos, com forte presença do universo, da natureza, da segurança do lar, da família e, sobretudo, da importância da amizade.