Não é necessário que eu diga a vocês quão bizarro o ano de 2001 foi de fato, um ano tão perturbador e com tantas perturbações. Em 11 de setembro, aconteceu o ataque às torres gêmeas do World Trade Center e ao Pentágono.

Logo depois, a situação em Israel começou a se deteriorar virtualmente semana após semana, quase a ponto de uma guerra abertamente declarada.

Como se não bastasse, vimos a partir desta data renascer o anti-semitismo na Europa e no restante do mundo, em uma escala não vista desde a década de 1930, e não sob a forma de críticas à política de Israel, nem mesmo de um certo mal-estar contra com Israel, mas na forma de um cruel e diabólico anti-semitismo, bem ao estilo nazista: a destruição de uma sinagoga de 500 anos, na Tunísia; a violação de cemitérios na França, Alemanha, Itália e Polônia; acusações vis e totalmente desvairadas de envolvimento judeu no ataque ao World Trade Center, tidas como verdade por pessoas aparentemente inteligentes; o seqüestro intelectual de uma conferência das Nações Unidas sobre o Racismo, em Durban, na África do Sul, fazendo-a virar uma orgia de ódio aos judeus e ao judaísmo; exaltados discursos peçonhentos tolerados pelo liberalismo reinante na Universidade da Califórnia, em Berkeley. E o que dizer do tão condescendente, tão politicamente correto preconceito anti-Israel da BBC e da Emissora Nacional Pública de Rádio?

Foram anos difíceis para nós que amamos Israel e amamos o judaísmo. Foram, a bem da verdade, anos difíceis para qualquer um que ame a decência e odeie a violência.

Os meses que seguiram o 11 de setembro me forçaram a chegar a conclusões às quais não queria chegar. Durante todos os meus anos como rabino, sempre acreditei e ensinei que os judeus não eram diferentes dos outros povos, que o judaísmo era diferente do cristianismo e do islamismo, mas que os judeus tinham os mesmos sentimentos, as mesmas forças e as mesmas fraquezas, os mesmos medos e os mesmos sonhos que têm os cristãos e os muçulmanos. 

Sempre lutei ferrenhamente contra os casamentos entre diferentes religiões, tentando desestimulá-los, não por acreditar que os judeus fossem melhores do que os não judeus, mas porque uma família com duas religiões muito provavelmente criaria os filhos sem religião alguma, para evitar discussões e problemas.

No entanto, os meses que seguiram o atentado de 11 de setembro me convenceram que os judeus são, de fato, diferentes. Vi-me forçado a ter que admitir que o judeu, para o mundo, faz o mesmo papel que os canários para os mineiros nas minas de carvão, no passado. Todos já leram alguma vez que os mineiros levavam canários para o interior das cavas, pois esses pássaros eram extremamente sensíveis a gases venenosos. Reagiam ao perigo antes que um ser humano o pressentisse. Quando os mineiros viam os canários perdendo as forças e a vida, era o sinal de que o ar estava contaminado e escapavam a todo vapor, antes que fosse tarde demais.

E é isto o que nós, judeus, fazemos para o mundo. Somos o sistema de alerta antecipado para o mundo. Onde reina a maldade, onde há ódio, somos os primeiros a sofrer seus impactos. 

Ser judeu, queiramos ou não, é ser um ímã para o ódio, a inveja, o ressentimento ainda que injustificado, ainda que irracional. Se houver ódio em qualquer parte do mundo, este sentimento maligno nos encontrará. Se houver iniqüidade em qualquer parte do mundo, seremos nós o seu alvo. As pessoas que transbordam de ódio pelo que for, mesmo se for ódio por si próprias, fazem-nos objeto desse ódio. 


Timothy McVeigh, que fez explodir o Federal Building, em Oklahoma City, odiava os judeus sem jamais ter conseguido explicar o porquê. Leo Felton, que foi condenado em um tribunal de Boston, por tentativa de deslanchar uma guerra racial explodindo monumentos e edifícios importantes, afirmou odiar os judeus apesar de não saber, ao certo, se conhecia algum. Os brancos, com complexo de supremacia, que odeiam negros, odeiam judeus, também. E os extremistas negros que têm ódio aos brancos, têm ódio ainda mais fervoroso aos judeus não porque haja algo de errado conosco, mas porque há algo de terrivelmente errado com eles. Os semi-analfabetos camponeses em países tão diferentes como a Rússia ou a Malásia culpam os judeus por arruinar sua economia, enquanto os desempregados apesar dos títulos universitários, do Egito ao Paquistão, culpam os judeus por arruinar sua carreira.

É este o papel que nos toca, neste mundo, não por opção, mas por imposição dos outros sermos os canários dos mineiros, fazer com que saiam de suas tocaias os fanáticos, os odientos, aqueles que serão uma ameaça a suas comunidades se alguém não os detiver a tempo e nós os identificamos precocemente em virtude de seu ódio declarado por nós.

Hitler atacou os judeus antes de atacar a civilização ocidental e isso deveria ter alertado o mundo sobre que tipo de pessoa ele era, mas o mundo interpretou o sinal como quis. Os fanáticos muçulmanos praticavam suas aptidões terroristas contra os israelenses bem antes de direcionar tais habilidades para o resto do mundo, mas o mundo nunca entendeu os alertas. Quando vejo o que Pat Buchanan ou James Traficant tem a dizer sobre os judeus, ou Jean Marie LePen, na França, e Jorg Haider, na Áustria, não preciso ir adiante na análise de suas respectivas filosofias políticas. Já sei tudo o que preciso saber para considerá-los desqualificados para qualquer cargo público. 

Bem nos primórdios da epopéia judaica, D’us disse a Abraão, "... Vai-te de tua terra e da casa de teu pai, para a terra que te mostrarei,... e abençoar-te-ei e serás uma bênção para todas as nações do mundo. E abençoarei os que te abençoarem e aqueles que te amaldiçoarem, amaldiçoarei..." Por que haveria alguém de amaldiçoar Abraão se ele é um ser tão especial, que será uma bênção para toda a humanidade? Aqueles que dedicam sua vida ao estudo das doenças da alma humana apresentam três teorias para tal pergunta, nenhuma das quais, no entanto, fará qualquer israelense sentir-se mais seguro ao entrar num ônibus. Mas talvez sirvam para nos ajudar a entender as origens do problema. 

Uma das interpretações é captada pelo comentário de Maurice Samuel de que "ninguém gosta de seu relógio despertador". Não gostamos de ser lembrados de que certas coisas tentadoras e atraentes são erradas. Irritamo-nos com as restrições da moralidade e nos ressentimos com os descendentes de Abraão que nos fazem lembrar do que D’us espera de nós. Esta é a única maneira pela qual posso tentar entender a determinação de Hitler de exterminar todos os judeus da Europa, ainda que isso significasse perder a guerra e ver sua Alemanha destruída ao longo do processo. Devotado à causa da morte acima da vida, comprometido com o ódio ao invés da tolerância, ele tinha que destruir o povo que, em sua mente, simbolizava a moralidade, a tolerância e a vida.

Uma segunda teoria é a de que muitos inte-lectuais alemães, embaraçados diante do que europeus instruídos fizeram no Holocausto, estão desesperadamente ávidos para exagerar o comportamento talvez inadequado dos israelenses, pois isto lhes permite dizer: "Vêem, eles não são melhores do que nós. Podemos parar de nos sentir culpados pelo que fizemos a eles".

E, por último, os especialistas nos diriam que há pessoas que odeiam a si próprias e geralmente têm motivo para tal. Não se sentem à vontade por se auto-odiar, por isso procuram alguém que seja extremamente diferente deles, projetando nessa outra pessoa tudo aquilo que desprezam em si próprios. Acreditam que é essa outra pessoa, e não eles, quem tem aquelas idéias e hábitos desprezíveis. Ás vezes, definem esse "outro" racialmente, sejam afro-americanos ou asiáticos. Às vezes por gênero ou orientação sexual, odiando as mulheres ou os homossexuais. E, outras vezes, por religião e grupo étnico, odiando os judeus como alternativa para não ter que odiar a si mesmos.

Bem, chega de análises. O que fazemos contra isso? Como devemos reagir a essa relutante conclusão de que, queiramos ou não, estamos destinados a ser o sistema de alerta antecipado do mundo, alvos eternos dos mensageiros do ódio e da iniqüidade, neste nosso mundo? 

Meus amigos, rezemos por um ano melhor do que os últimos. Há razões para otimismo? Ao longo de minha vida vi a derrota de Hitler, a queda do comunismo, a criação do Estado de Israel, a anulação da segregação racial, o empoderamento das mulheres, o aumento da longevidade, a erradicação de tantas enfermidades. Há, sim, razões para se ter esperança.

No início da guerra no Afeganistão, um jornalista perguntou a um general americano se ele jamais seria capaz de perdoar Osama bin Laden pelo que ele nos fizera. O general respondeu: "Cabe a D’us perdoar a bin Laden. A nós, cabe providenciar esse encontro".

Parafraseando, podemos dizer que cabe a D’us causar a derrocada final dos intolerantes e dos terroristas. A nós cabe viver como os judeus foram ensinados a viver. Não porque isso vá tornar nossa vida mais fácil, mas porque dará maior significado à nossa vida; porque isso fará com que o mundo seja abençoado, assim como o comportamento de Abraão abençoou o mundo, mostrando ao mundo o que significa viver de acordo com o Mandamento Divino. E só D’us sabe o quanto este nosso mundo se beneficiaria com essa bênção...

Cabe-nos viver da forma como nós, judeus, fomos ensinados a viver, pois não podemos fugir ao destino de ser judeus. Gerações que nos precederam, tentaram fazê-lo e fracassaram... Mas nós podemos, sim, defender nosso destino de ser judeus pois se o fizermos, descobriremos quão plena e satisfatória uma vida verdadeiramente humana pode ser.

Harold Kushner 
foi Rabino do Temple Israel,em Natick, no estado de Massachusetts, nos EUA, durante 25 anos,e é o autor dos best-sellers Quando coisas ruins acontecem com pessoas boas e Quando as crianças fazem perguntas sobre D’us. 
Tradução: Lilia Wachsmann