Nos anos 1930, militares e funcionários do governo japonês imaginaram um projeto para colonizar áreas da china ocupada com judeus que fugiam da perseguição na Europa. A idéia ficou conhecida, informalmente, como ‘Plano Fugu’, numa referência a um peixe venenoso, que, não preparado adequadamente, pode matar quem o consome.

O projeto foi descrito num livro de autoria dos norte-americanos Marvin Tokayer, um rabino, e Mary Swartz. Segundo os japoneses idealizadores do "Plano Fugu", a criação dessas colônias de judeus na Manchúria, região ao nordeste da China, poderia representar um impulso econômico nas áreas ocupadas e significar uma aproximação com a comunidade judaica norte-americana. Por conseqüência, melhoraria a imagem do Japão em países ocidentais. Mas os defensores do projeto também viam um lado perigoso na idéia, pois acreditavam em teorias conspiratórias e anti-semitas, o que resultava na crença de que judeus instalados em áreas controladas pelo militarismo japonês poderiam acabar "influenciando e dominando o próprio governo em Tóquio".

Nas décadas de 1920 e 1930, surgiram no Japão os chamados "especialistas em questões judaicas", alguns dos quais acabaram arquitetando o "Plano Fugu". Foram influenciados por panfletos anti-semitas, como o infame Protocolos dos Sábios de Sião, que fala de uma suposta conspiração judaica para "controlar o mundo". A origem exata dessa peça é motivo de polêmica, mas sabe-se que ganhou notoriedade quando publicada na Rússia czarista, no começo do século 20.

No início dos anos 1920, o panfleto anti-semita chegou ao Japão. Uma série de publicações, em 1921, sob o título O Perigo Judaico mostrava a influência de Protocolos dos Sábios de Sião, conforme relatou David Goodman, especialista em estudos japoneses da Universidade de Illinois, nos Estados Unidos. Autor do livro Judeus na mente japonesa: a história e os usos de um estereótipo cultural, o professor Goodman descreveu a maneira como se deu o acesso a esse tipo de texto anti-semita, por meio do contato de soldados enviados por Tóquio para combater na Guerra Civil russa, ao lado dos inimigos da Revolução Bolchevique.

O panfleto Os Protocolos dos Sábios de Sião circulava entre as "tropas brancas", anticomunistas, que combateram o Exército Vermelho de 1918 a 1921. O Japão imperial, com medo da ameaça oriunda da Rússia, enviou mais de 70 mil militares à Sibéria, onde seus soldados entraram em contato com adeptos do antigo regime czarista. O grupo de "especialistas em questões judaicas" que concebeu o "Plano Fugu" incluía, por exemplo, os capitães Koreshige Inuzuka e Norihiro Yasue, que, em 1922, voltaram de sua missão em território siberiano. Junto com outros militares e funcionários do governo, eles alimentaram a idéia de criar, na década de 1930, colônias judaicas na China ocupada, com a intenção de atrair know-how em áreas como indústria e infra-estrutura e também atrair investimentos de judeus de outros países, que, na visão de Inuzuka e Yasue, estariam dispostos a financiar o projeto.

Segundo o professor David Goodman, Koreshige Inuzuka escreveu vários artigos baseados no panfleto Os Protocolos dos Sábios do Sião, mas, em vez de propor a perseguição aos judeus, o militar defendeu que o Japão usasse o suposto "poder judaico" em seu benefício. Em 1931, um ataque do expansionismo japonês atingiu a Manchúria, e foi anunciada então a criação do Manchukuo, um estado-fantoche. O território, com sua importância estratégica por conta da localização próxima à URSS e reservas de matérias-primas como carvão e ferro, atraía estrategistas e militares do Japão que, após a conquista, se deram conta da dificuldade para levantar investimentos que viabilizassem a exploração econômica da área sob ocupação.

Militares como Inuzuka e Yasue passaram a receber apoio de empresários japoneses que acreditaram na possibilidade de atrair investimentos de judeus, em particular dos Estados Unidos. Planos para as colônias passaram a ser rascunhados, escolhendo locais na Manchúria e até mesmo em áreas próximas a Xangai, onde já havia uma presença judaica. Os idealizadores do "Plano Fugu" sustentavam que essas comunidades teriam "liberdade de religião e autonomia cultural e educacional", mas "precisariam ser controladas" para evitar que, de acordo com as teorias conspiratórias, se tornassem uma "ameaça" ao governo japonês.

Segundo o livro do rabino Marvin Tokayer e de Mary Swartz, o Plano Fugu nasceu em 1934 e, em 1938, chegou a ser discutido na "Conferência dos Cinco Ministros", quando alguns dos principais personagens do governo japonês mergulharam no debate sobre o projeto. Os críticos da idéia apontavam como prioridade a aliança com a Alemanha nazista, que se fortalecia às vésperas da 2a Guerra Mundial. O fluxo de judeus rumo ao Extremo Oriente, em especial a Xangai, também prosseguia, num trajeto para escapar da perseguição em solo europeu.

Em 1939, o ataque nazista contra a Polônia marcou o início da Segunda Guerra Mundial e, em 1940, o "Plano Fugu" estava completamente descartado. O alinhamento de Tóquio a Berlim, com a assinatura do tratado tripartite (Alemanha, Itália e Japão), eliminava o projeto. E, em dezembro de 1941, foi a vez de o militarismo japonês, que cometia atrocidades e levava violência a diversos pontos da Ásia, golpear os Estados Unidos, com o ataque a Pearl Harbour.

O rabino Tokayer, em seu livro, relata conversas de seu trabalho de pesquisa, com destaque especial para o encontro que teve com Chiune Sugihara. Cônsul japonês na cidade de Kaunas, na Lituânia, entre novembro de 1939 e setembro de 1940, ele salvou mais de 6 mil judeus ao ignorar ordens de Tóquio e emitir vistos de trânsito para que eles pudessem seguir viagem pela URSS, rumo ao Extremo Oriente, fugindo do Holocausto.

Chiune Sugihara, com a ajuda de sua mulher, emitiu milhares de vistos de 31 de julho a 28 de agosto de 1940, o que permitiu fugas para o Japão, China e outros destinos. Tokayer perguntou a Sugihara se ele sabia do "Plano Fugu". "Soube apenas quando você me contou. Se eu soubesse, teria sido muito mais fácil para mim. Eu não teria sentido sozinho o fardo da responsabilidade de emitir os vistos". A conversa prosseguiu. O rabino Tokayer quis saber os motivos que levaram Sugihara a assumir aquela opção heróica e arriscada. "Fiz apenas o que os seres humanos devem fazer", respondeu. Sugihara foi afastado do serviço diplomático japonês em 1945 e morreu em 1986.

Um ano antes de sua morte, Sugihara foi homenageado por Israel. O rabino Tokayer entrevistou o responsável por salvar milhares de judeus em meio ao seu intenso trabalho de pesquisa no Japão. Ele relata que a história de sua investigação começou em 1968, quando de sua mudança a Tóquio, para trabalhar com a pequena comunidade judaica local, que ele descreveu como um grupo de "livros falantes". O norte-americano se disse impressionado com as histórias que lhe contavam, sobre a vida no gueto de Xangai, durante a ocupação japonesa na China, ou sobre experiências de vida em outros rincões da distante Ásia. Marvin Tokayer, que também tinha morado na Coréia do Sul, decidiu começar a colher depoimentos sobre a vida judaica no universo asiático. No começo dos anos 1970, chegaram às suas mãos os chamados "Documentos Kogan", uma série de cópias de textos do Ministério das Relações Exteriores, encontrados num "sebo" em Tóquio, para serem em seguida levados a Michael Kogan, um integrante da comunidade judaica da capital japonesa.

Kogan mostrou os documentos, que falavam de "colônias judaicas na Manchúria", ao rabino. Começava então a pesquisa que resultaria na publicação, em 1979, do livro O Plano Fugu, em co-autoria com Mary Swartz. E, com a publicação, a história finalmente chegou ao grande público.

O jornalista Jaime Spitzcovsky é editor do site www.primapagina.com.br. Foi editor internacional e correspondente em Moscou e em Pequim.