Fim de regimes que duravam há séculos, a iminência da unificação da Itália e a forte influência do Iluminismo e dos ideais da Revolução francesa: este foi o pano de fundo para o Caso Mortara.

Por que um caso tão importante, ocorrido em Bolonha, Itália, em 1858, é pouco divulgado até os dias de hoje? Por que o seqüestro de um menino judeu, de sete anos, por inquisidores, envolveu o papa Pio IX, mobilizou países da Europa e os Estados Unidos, envolveu personalidades políticas de peso, como sir Moses Montefiore, o conde Cavour e Napoleão Bonaparte III? Por que o Caso Mortara, como ficou conhecido, afetou tanto o governo pontifício e provocou indignação de entidades como a Alliance Israelite?

Enfim, por que esse drama com lances de suspense chamou a atenção do professor David I. Kertzer que, há alguns anos, decidiu escrever "O seqüestro de Edgardo Mortara", um fascinante livro-documento? Essas e muitas outras perguntas encontram explicações ricas e envolventes em uma trama que analisa detalhadamente a situação dos judeus na Itália do século passado.

Segundo o autor do livro, o Caso Mortara tem muitas ligações com acontecimentos da época, permitindo que se detecte muitas das importantes forças em ação em um dos pontos decisivos da história italiana. Reflete, claramente, o conflito entre a Santa Sé, que queria domínio total sobre as idéias e as crenças, e a nova ideologia secular e liberal que se espalhou pela Europa no século 19, quando era forte a influência do Iluminismo e da Revolução Francesa.

A Igreja já sofrera derrotas em alguns países europeus, que anunciavam o fim dos estados papais, e a Inquisição já não tinha a força do passado em algumas regiões. Os conceitos de Liberdade, Igualdade e Fraternidade, pregados pela França de Napoleão III, já se faziam sentir, tornando compreensível o envolvimento de muitos dos principais protagonistas da luta pela unificação da Itália no Caso Mortara.

Por trás do seqüestro de um garoto de sete anos, sob justificativa religiosa, estava a manutenção de uma ordem que via suas raízes enfraquecerem.

Início da tragédia

O primeiro capítulo, "Batidas na porta", já antecipa a tragédia. Quarta-feira, 23 de junho de 1858. A empregada de Momolo (Salomono) Mortara abre a porta para dois policiais dos estados papais. O sargento explica que tem ordens para ver cada um dos sete filhos de Momolo. Mariana, sua esposa, treme. O sargento informa: "Seu filho Edgardo foi batizado, e tenho ordens para levá-lo comigo ".

Na casa dos Mortara é o começo da agonia. Enlouquecidos, os pais pedem para ver o padre Felleti, inquisidor impassível que lhes diz que seu filho havia sido batizado secretamente, era católico e não podia ser criado em casas de judeus. Em Reggio e Módena, onde cresceram Momolo e Mariana, não era raro a polícia aparecer à noite e exigir que uma criança judia batizada lhes fosse entregue. Os pais de Edgardo demoraram a compreender o motivo alegado para o seqüestro: uma antiga empregada, Anna Morisi, teria batizado o menino com a intenção de curá-lo de uma doença supostamente grave.

Época de restrições

Naquela época, os poucos judeus de Bolonha estavam sob o domínio do papa Pio IX. Eles não tinham sinagoga e viviam em pequenos guetos. Entre as restrições impostas aos judeus, desde 1814, estava a proibição de terem empregados cristãos. Porém, mesmo com medo, as famílias judias continuavam a ter serviçais para ajudá-los, como por exemplo, no Shabat.

Procurada por Momolo, Anna Morisi confirma que teria pegado água de um balde e batizado Edgardo, quando bebê. Desesperado, ele começa a escrever cartas para o secretário judeu de Roma. As notícias de seu infortúnio correm rápidas pelas cidades italianas. Se o Caso Mortara se transformou rapidamente em causa célebre internacional, isto se deveu à capacidade dos judeus de se organizar rapidamente através das fronteiras nacionais. A ideologia do Iluminismo, segundo a qual os cidadãos tinham certos direitos básicos, alastrava-se rapidamente pela Europa.

Segundo o autor, havia duas narrativas para o Caso Mortara.

"A narrativa judaica falava de uma família amorosa levada à ruína pelo fanatismo religioso do regime papal. Pela narrativa da Igreja, a história era de redenção, pois o menino Edgardo seria colocado ao lado do mais santo e reverenciado líder de todo o mundo, o próprio papa". Momolo dá a sua versão para a visita a seu filho, em agosto daquele ano, na Casa dos Catecúmenos, em Roma, um lugar conhecido pelos "convertidos", onde um judeu podia entrar como tal e sair católico, sendo motivo de grande orgulho para a Igreja. Segue o autor:

"Edgardo disse que quando foi levado de casa chorava e pedia por sua mezuzá, que sempre usava no pescoço. Em vez disso, foi-lhe oferecido um medalhão – uma cruz – que ele recusou". Uma outra versão afirma que o menino, entrando na igreja pela primeira vez na vida, foi um "prodígio", logo se interessando pelos ritos católicos, aprendendo a rezar e a fazer o sinal da cruz.

Destaque na imprensa

O Caso Mortara começa a ser divulgado com destaque pela imprensa francesa. Napoleão III havia tentado, sem sucesso, persuadir o papa a modernizar seu Estado. As notícias do seqüestro do menino judeu em Bolonha deixam-no enraivecido. Também os Rothschild se mobilizam para tentar apressar o retorno do menino à casa dos pais. Na Sardenha, o conde Camillo Cavour, primeiro-ministro e idealizador da Itália unificada pelo rei Vittorio Emanuelle II, começa a escrever cartas condenando o seqüestro. Sir Moses Montefiore, chefe dos representantes da comunidade judaica britânica, decide ir a Roma interceder junto ao Papa. No entanto, fracassa nessa missão.

A partir de 1858, começam os problemas no reinado do papa. Em 1859, o levante de Bolonha proclama a vitória de Vittorio Emanuelle II. Finalmente, em janeiro de 1860, o padre inquisidor Feletti é preso – sob suspeita de incentivar o seqüestro. Este se defende, dizendo ter apenas seguido ordens, e usado somente meios de persuasão "suaves". A empregada Anna Morisi também foi chamada a depôr, mas não foi condenada. O padre Feletti, mesmo depois de julgado culpado, é posto em liberdade.

Enquanto isso, Momolo se havia mudado para Turim, continuando a lutar pela volta do filho. Após dois anos, encontra-se envelhecido e sem esperança. A Alliance Israelite Universelle escreve uma carta de apoio a Momolo. Mesmo assim, os esforços foram inúteis. Passaram-se os anos... Em 1870, finalmente, depois de muitas lutas, aproxima-se o fim do governo papal. A família Mortara, então vivendo na Toscana, ainda espera o regresso de seu filho.

Em outubro, Edgardo e um guia fogem de Roma, atravessam a fronteira austríaca e se refugiam em um convento. Derrotado, Momolo volta para sua mulher. Durante anos tinham rezado pela volta do filho ao seio da família e à religião. "Todo o tempo, nutriram o temor de que o menino seria vencido pelos captores". A vida dos Mortara continuou em tragédia. Momolo é acusado de assassinar uma empregada de sua casa, Rosa Tognazzi, e é preso injustamente. Em 1871, quando é finalmente inocentado, morre.

E Edgardo? Em 1873, é ordenado com grandes honras. Embora sua mãe tenha se reconciliado com ele, o mesmo não aconteceu com seus irmãos. O papa Pio IX sempre considerou Edgardo como seu filho, até sua morte em 1878. Edgardo viveu até 1940, na Bélgica.

A lembrança do Caso Mortara pode ser dolorosa sob muitos pontos de vista, mas o mérito do livro de David Kertzer é inegável: traz à tona fatos pouco conhecidos da chamada Inquisição italiana e de seus métodos cruéis contra aqueles que não abraçavam a sua fé. O livro O seqüestro de Edgardo Mortara foi indicado para o prêmio Pulitzer de 1997.

Bibliografia

David I. Kertzer, O seqüestro de Edgardo Mortara