No despertar do século XX, na Rússia czarista, um drama macabro, medieval se abateu sobre a comunidade judaica. Mendes Beilis, judeu de Kiev, foi preso e falsamente acusado de matar um jovem cristão por motivos religiosos, foi julgado em 1913.

A prisão e o julgamento de Mendel Beilis tumultuaram a Rússia e escandalizaram o mundo moderno durante três anos. O governo czarista queria "provar" que esse homem matara uma criança inocente para usar seu sangue em práticas religiosas. Segundo tão terrível acusação, de ranço medieval, o "verdadeiro culpado" era o judaísmo, pois eram suas práticas que levavam os judeus a "cometer crimes hediondos". O libelo de sangue, a absurda e irracional acusação lançada contra os judeus principalmente na Idade Média, nunca levou em consideração o fato de ter sido o judaísmo a primeira religião que, desde seus primórdios, proibira terminantemente sacrifícios humanos. Muito menos que as leis judaicas proíbem o uso e consumo de qualquer tipo de sangue animal, por mais ínfima quantidade que seja.

Mas apesar de todas as pressões e manipulações, a verdade saiu vitoriosa, por unanimidade. Um júri popular, composto em sua maioria de camponeses, declara Beilis inocente. Milhares de páginas foram escritas por juristas e historiadores sobre o caso Beilis, que se tornou símbolo do antijudaísmo russo, do ódio milenar contra os judeus. Símbolo também da luta dos homens de bem contra as forças da escuridão que logo engolfariam o mundo.

Os acontecimentos

Menachem Mendel Beilis nasceu em 1874. Na época de sua prisão, trabalhava como superintendente em uma olaria, em Kiev, pertencente ao judeu Zaitsev. Honesto e bom chefe de família, era respeitado por sua integridade. Vivera grande parte de sua vida longe da comunidade judaica, pois passara a juventude no exército russo e, nos 15 anos em que trabalhou na olaria, era o único judeu da vizinhança. Apesar disso, durante toda sua agonia permaneceu absolutamente fiel a suas raízes e a seu povo, respondendo ao interrogatório de seus algozes com uma frase: "Sou judeu!" - a mesma que usara no início de seu julgamento. 

O drama de Beilis teve início em 20 de março de 1911, quando o corpo de um garoto de 12 anos, Andrei Yushchinsky, foi encontrado mutilado em uma caverna, nos subúrbios de Kiev. 

Um "prato cheio" para as forças reacionárias, que aproveitaram a ocasião para lançar sobre os judeus a milenar acusação de assassinato ritual. Imediatamente os jornais publicaram que não se tratava de um assassinato comum: a criança havia sido morta por judeus. No funeral do jovem Yushchinsky, as Centúrias Negras, grupo paramilitar organizado após a revolução de 1905, distribuiu panfletos sobre o "Libelo de sangue".

Enquanto isso, a investigação policial indicava que o assassinato fora cometido por membros de uma gangue de ladrões associados a uma mulher, Vera Cheberiak, conhecida por seus crimes. Com provas na mão, a polícia os prendeu. No entanto, as forças reacionárias, lideradas pelas Centúrias Negras, pressionaram o então ministro da Justiça, I.G. Schcheglovitov, para declarar que o assassinato havia sido perpetrado por "razões religiosas". "Por conveniência", o procurador chefe do distrito de Kiev desprezou as informações da polícia e publicamente acusou Beilis e todo o povo judeu pelo crime hediondo. 


Havia anos que o governo do Czar Nicolau II e seus aliados preparavam o terreno. Encurralados pela revolta popular de 1905, queriam desviar a frustração das massas, convencendo o povo de que todos os "males da Rússia" eram causados pelos judeus e não pelas políticas dos czares. A imprensa de direita orquestrara uma intensa campanha difamatória contra os judeus. Entre as acusações lançadas, a mais terrível era o libelo de sangue. Não era a primeira vez que as autoridades russas (e não só as russas) usavam os judeus como bode expiatório. Nem era a primeira vez que uma acusação havia sido usada para fins políticos. Mas nunca antes uma campanha de difamação atingira tamanha intensidade. 

Para acusar Beilis, o único judeu que trabalhava na olaria, foi montada uma conspiração terrível que envolveu polícia, justiça e testemunhas perjuradas. A única "prova" contra Beilis era o depoimento de um acendedor de lampiões e sua esposa. O marido contara à polícia que, no dia em que o jovem desapareceu, tinha-o visto brincando com outros dois meninos nas dependências da olaria. Alegou também que outro judeu aparecera repentinamente, seqüestrara Yushchinsky, puxando-o para a olaria. (Durante o julgamento o casal desmentiu tais declarações).

Baseada nesse testemunho e subornando outras testemunhas, além de forjar provas, a procuradoria montou a acusação. O próprio Czar expressara em várias ocasiões o seu "grande contentamento" em saber que um judeu fora acusado. Para agradá-lo e conseguir a condenação de Beilis, nenhum esforço foi poupado. Documentos descobertos após a Revolução Bolchevique de 1917 nos arquivos particulares do Czar revelaram que, desde o início, as autoridades sabiam quem eram os verdadeiros culpados. Só que a verdade não convinha a seus interesses... 

Assim, em 21 de julho de 1911, no dia de Tisha B’Av, dois meses após o corpo do menino ter sido encontrado, Mendel Beilis é interrogado pela polícia. No dia seguinte é preso, enquanto os verdadeiros assassinos são libertados. A notícia da prisão de Beilis é levada ao conhecimento de Nicolau II, que publicamente demonstra, uma vez mais, sua profunda satisfação. 

Os anos à espera de um julgamento

Os trâmites do processo arrastaram-se por mais de dois anos, pois a procuradoria sabia que não havia provas para sustentar a acusação. Durante este período, Beilis ficou trancafiado em uma cadeia, sofrendo torturas e abusos. Todo tipo de estratagema foi usado pelas autoridades para descobrir algo "incriminador", algo que "provasse" que Beilis cometera o crime para "cumprir" suas obrigações religiosas. Quando era interrogado, as perguntas não diziam respeito ao suposto crime, mas giravam em torno de sua religiosidade, dos costumes de Pessach, se em sua família havia algum rabino ou algum parentesco com o Baal Shem Tov ou com a família Schneerson de Liadi. Um general russo visitou Beilis para alertá-lo de que o Czar poderia perdoá-lo. Se ele quisesse reconquistar sua liberdade, precisava entregar os "verdadeiros culpados", mas se teimasse em proteger a Nação Judaica, continuaria a sofrer. Beilis rechaçou a proposta afirmando que não queria ser perdoado, só queria sair da prisão quando sua inocência, bem como a de seu povo, fossem provadas.

O caso atraiu a atenção internacional. Milhares de pessoas ao redor do mundo, inclusive dentro da própria Rússia, expressaram sua repulsa. O Caso Beilis abalou todos aqueles judeus que haviam acreditado que, num mundo moderno e racional, acusações absurdas até podiam ser feitas, mas jamais supuseram que teriam crédito. 

Judeus do mundo todo se movimentaram a favor de Beilis. Nas congregações, orações diárias especiais foram instituídas, rezou-se por ele diante do Kotel. Na Rússia, líderes comunitários, rabinos ortodoxos e chassídicos uniram forças para enfrentar as acusações. Sua defesa foi montada pelos mais competentes advogados, judeus e não-judeus, dos foros de Moscou, São Petersburgo e Kiev. 

O advogado que encabeçava a defesa era o lendário Oscar Grusenberg. Ao se encontrar com Beilis pela primeira vez disse-lhe: "Seja forte. Venho até você em nome do povo judeu. Pedimos que nos perdoe por estar sendo obrigado a sofrer por nós todos". 

Grusenberg sabia que o ataque da promotoria seria direcionado para o Talmud e as obras dos sábios. Portanto, cabia aos rabinos o conteúdo da defesa. Autoridades rabínicas e chassídicas ajudaram ativamente, aconselhando o rabino Jacob Mazeh, Rabino-Chefe de Moscou que fora escolhido para instruir os advogados de defesa. O objetivo era ambicioso não só iam defender Beilis das acusações, como pretendiam derrubar para sempre a idéia do libelo de sangue. 

O julgamento

No dia 8 de outubro de 1913, logo após Yom Kipur, teve início em Kiev o julgamento de Beilis. A acusação lida no tribunal afirmava que Menachem Mendel Beilis havia assassinado "juntamente com outras pessoas, até então não descobertas, por motivos religiosos, o jovem Andrei Yushchinsky". O júri escolhido era composto por simples camponeses russos. A promotoria acreditava que seria mais fácil convencê-los das acusações. O promotor chefe, AI. Vipper, fez colocações contra os judeus em seu discurso e defendeu a gangue de Cheberiak do assassinato de Yushchinsky. 

No tribunal, várias testemunhas atestaram a integridade e a honestidade de Beilis. Outras depuseram apontando Vera Cheberiak como a culpada. O acendedor de lampiões e sua esposa, cujo testemunho tinha causado a prisão de Beilis, quando questionados pelo juiz sobre o que haviam visto, responderam: "Nada sabemos". Confessaram que, na ocasião, estavam embriagados e foram confundidos pelos policiais. 

Como a acusação contra Beilis era de assassinato por "motivos religiosos", para comprová-la a promotoria precisava apresentar testemunhas confiáveis que atestassem que os judeus usavam sangue em seus rituais. Duas autoridades russas sobre a Bíblia e o Talmud, os professores Glagoliev e Troyitzky, ao serem indagados sobre os rituais judaicos, responderam que segundo a lei judaica era proibido o derramamento de sangue de um ser humano, assim como ingerir sangue animal. Ambos atestaram sobre a honra dos valores judaicos, rechaçando as acusações da promotoria. Somente um padre católico, com antecedentes criminais, Justin Pranaitis, testemunhou a favor da promotoria sobre os fundamentos "científicos" para o libelo de sangue. 

Pranaitis afirmou que o assassino de Yushchinsky tinha todas as "características" de um assassinato "orientado" pela religião judaica. Seus argumentos foram facilmente rechaçados pelo Rabino Jacob Mazeh, que provou, entre outros, que Pranaitis desconhecia as citações dos textos talmúdicos.

Grusenberg encerrou a defesa com as palavras que o Rebe de Lubavitcher lhe dissera. "Beilis não deverá ser condenado e não será condenado. Mas se por alguma terrível injustiça ele vier a ser condenado, como muito outros judeus o foram no decorrer da história, ele deveria permanecer forte e proclamar o Shemá: "Ouve Israel, o Eterno é nosso D’us, o Eterno é Um". 

A promotoria estava certa de que Beilis iria ser condenado, mas o júri, depois de várias horas de debate, declarou Beilis "inocente", por unanimidade. Um membro do júri revelou que no início a maioria estava votando a favor da condenação, quando de repente, o menos instruído entre eles se ajoelhou e disse: "Não posso condenar um inocente". Foi o suficiente para todos os outros jurados mudarem seu voto. 

Beilis, que ainda permaneceu em perigo, ameaçado pelas Centúrias Negras, mudou-se para Israel com sua família. Em 1920, mudou-se para os Estados Unidos onde fixou residência. Veio a falecer em 1934, após um longo período doente.