Diante dos últimos acontecimentos, fica cada vez mais perceptível que a discussão sobre os conceitos de tolerância e intolerância está na ordem do dia deste novo século.

Paradoxalmente, o convívio social e a tolerância ao outro partem do ato de “não tolerar o intolerável”. É necessário que também não sejamos passivos diante de uma perseguição étnica, religiosa ou política, diante da opressão das minorias e diante dos genocídios, para garantirmos a aceitação do diferente e das regras democráticas de convívio social.

A intolerância é natural ao homem e, acrescidos de nossas posições sociais (religiosas, políticas, econômicas), podemos tornar-nos daninhos, criando ou permitindo que se desenvolvam grandes tragédias como a Inquisição ou o Holocausto (Shoá).

Podemos arriscar dizer que essa intolerância religiosa persecutória, que prega a aniquilação do outro e de tudo aquilo que possa parecer ameaçador, é um conceito ocidental. Embora também exista intolerância em sociedades politeístas, a crença em um único D’us, em uma verdade única e absoluta, excluindo todo aquele que não participa ou compartilha da mesma visão, talvez propicie, mais do que todas as outras, a institucionalização da perseguição, a despeito da ética que é inerente às três grandes religiões monoteístas.

O holocausto foi o grande câncer do século XX, no qual o ódio atingiu dimensões imensuráveis; mas já tínhamos aprendido a conviver com a intolerância institucionalizada, homeopaticamente, ao longo dos cinco séculos de perseguição promovida pelo Santo Ofício da Inquisição.

Como compreender, hoje, com nossas cabeças pós-modernas, que esse fenômeno que transformou a geografia do mundo e entranhou preconceitos e práticas intolerantes, de modo tão profundo que não mais nos permite enxergar sua raiz, seja tão atual?

Hoje, com os nossos estados laicos e democráticos, a Inquisição do séc. XV nos parece um triste capítulo de tempos remotos e menos civilizados, e a perseguição que emana de Estados religiosos, como acontece com alguns países islâmicos, é fruto do subdesenvolvimento e do primitivismo destas sociedades. Mas se partirmos da premissa de que a intolerância é inerente ao homem e de que seu oposto, a fraternidade e a solidariedade, mais até do que a tolerância condescendente, é o aprendizado, poderemos ver como o Poder se utiliza das virtudes e defeitos humanos para a manutenção de seu status.

“Cujus regio, ejus religio”, a religião do rei é a religião do povo. Essa era a máxima que norteava os Estados europeus na Idade Média, quando o poder real representava uma unção divina, negando ao indivíduo a escolha pessoal de sua confissão. A Igreja e o Estado foram, por um longo tempo na história ocidental, intrinsecamente ligados. O cerceamento de escolhas religiosas e a imposição de uma verdade são limitadores da criatividade e da liberdade na busca de novos conhecimentos. O siglo de oro espanhol encerra-se com o advento da Inquisição, por exemplo.

A religião usada para estimular o ódio coloca D’us na sombra. Como reconhecer a fé, embalada na face de D’us, repleta de negativas junto ao diferente?

Durante o período inquisitorial, o pretexto das atrocidades era a manutenção da “fé verdadeira”, o que cooptava a massa ignorante e empobrecida, tornando a sociedade cúmplice das fogueiras e punições, seja por religião, seja por medo. Mas a “máquina” Inquisição, era destituída de fé. A crença era apenas o revestimento do instrumento político de extorsão e eliminação de um povo; foi a forma encontrada pela Igreja para se manter no poder nos últimos bastiões católicos da Europa: Espanha e Portugal.
O surgimento dos cristãos-novos, também chamados de “o povo do livro”, “gente da nação” ou marranos, é uma corrente forte de fatos, com elos claros e definidos, que se misturam com o surgimento do Estado. Os primeiros elos surgiram e foram elaborados nas raízes do catolicismo europeu, enquanto a Igreja tentava se firmar como doutrina e instituição. A conversão dos príncipes feudais imediatamente convertia os servos e vassalos, tornando os feudos intrinsecamente ligados à Igreja. Os primeiros concílios – reuniões de bispos e doutores em teologia que decidem questões de doutrina e de disciplina eclesiásticas e que estabeleceram as regras segundo as quais a Igreja Católica funciona até hoje – se utilizaram do preconceito e da ignorância do povo, lançando as sementes do sentimento antijudaico que tomou a Europa, preparando o caminho para que, dez séculos depois, o Holocausto pudesse existir.

Em 1206, Dominic de Guzmán criou o primeiro abrigo para frades itinerantes, em Prouille, na França. Os frades de Dominic tinham características únicas para a época: viajavam descalços, viviam com simplicidade e, acima de tudo, eram educados, capazes de qualquer debate erudito ou teológico; podiam andar descalços, mas deveriam sempre portar livros no combate contra a heresia. Estava criada a Ordem de São Domingos, ordem essa que formaria a base do que o papa Gregório IX inauguraria em 1233: o tribunal da Inquisição. A primeira versão da Inquisição foi criada para combater heresias cristãs, ou seja, perpetradas por cristãos como os cátaros, albigenses, valdenses e bugomilos. Apenas em sua reedição, no final do séc. XV, na Espanha, tomou sua forma mais aterradora, na perseguição de judeus e muçulmanos. Os inquisidores tinham a autorização de prender, julgar, torturar, interrogar sem que ninguém se metesse em seu caminho. Século após século, concílio após concílio, uma frase, um cânone, um dogma, iam sendo acrescentados. Um exemplo: no terceiro concílio de Latrão, em 1179, o cânone 27 convoca os príncipes para ajudar na repressão da heresia. Isso significou envolver o poder leigo nas decisões eclesiásticas, transformando o crime contra a fé em um crime contra o estado. Já em 1215, menos de quarenta anos depois, o quarto concílio de Latrão estabeleceu punições para os hereges e impôs que judeus e muçulmanos usassem a roseta, primeira versão da estrela amarela, para os diferenciar dos cristãos. Em 1939, Hitler repetiu o mesmo ato, criando algo similar para as raças que considerava inferiores. Outras declarações, como a culpabilidade dos judeus na morte de Jesus e a utilização de sangue na Páscoa judaica, foram sedimentando o preconceito através dos anos.

A Cristandade torna-se uma “sociedade de perseguição”. Beneficiada por um grande desenvolvimento demográfico, econômico, militar, político e cultural, quer defender suas conquistas contra aqueles que parecem ameaçá-las e passa a adotar os instrumentos da repressão e da agressão. A separação dos conceitos de tolerância e intolerância torna-se mais visível dos séculos XI ao XIV; a Igreja vai tomando atitudes mais radicais em relação aos heréticos, denominação dada aos judeus convertidos que continuavam a praticar as leis de Moisés, segundo a descrição feita pela Igreja. É importante ressaltar que a inquisição não tinha jurisdição sobre não-católicos e a política da Igreja em relação ao judaísmo era o proselitismo; por esta razão, havia necessidade da conversão, caracterizando desta forma a heresia cometida pelos criptojudeus.

A intolerância descrita foi a mais duradoura e cruel da história do homem. Duradoura porque perdurou por sete séculos e cruel porque foi a matriz inspiradora e geradora de outras tantas desumanidades de que temos conhecimento: o Tribunal do Santo Ofício da Inquisição, transformado, a partir de 1967, em Congregação para a Doutrina da Fé, nome que carrega até hoje, sob a prefeitura do Cardeal Joseph Ratzinger.

A Inquisição tem duas fases distintas: a medieval, iniciada no séc. XIII, no quarto concílio de Latrão, em 1215; e a moderna, que foi retomada com força brutal pelos reis católicos da Espanha, Fernando e Isabel.

O Tribunal Medieval da Inquisição visava primordialmente combater os inimigos daquela Igreja que começava a se desenhar como braço místico e religioso do recém-nascido conceito de Estado, que precisava se estabelecer.

Quando foi reeditada, no séc. XV, como tribunal de exceção, por Fernando de Aragão e Isabel de Castela, os motivos não foram muito diferentes.

E as fogueiras começaram a arder.

Quando Fernando de Aragão e Isabel de Castela juntaram seus reinos, o ideal político era reconquistar todos os territórios ocupados pelos árabes muçulmanos e transformar a Espanha em uma grande potência, através de uma guerra santa de católicos contra “infiéis”. Após alguns anos de guerra, Granada, o último bastião mouro na península ibérica, foi retomado. Com isso, o fortalecimento do catolicismo e da monarquia espanhola tornou-se imperativo para que os territórios reconquistados fossem mantidos. Em 1492, um édito real expulsa todos os judeus do território espanhol.

Muitos dos que quiseram ficar, ou não tiveram recursos para ir embora, foram consumidos pelas chamas inquisitoriais ou pela fúria do povo, incitada pelos padres mais fanáticos. A maior parte dos que conseguiram fugir se dirigiu a Portugal.

Ainda nessa época, Portugal era um oásis de tolerância. Os judeus ocupavam altos cargos no governo, inclusive no círculo íntimo do rei, faziam parte de sociedades científicas, como a famosa Escola de Sagres, freqüentavam universidades; enfim, participavam da so-ciedade portuguesa, protegidos pelas leis do país.

Mas, com a imigração maciça decorrente da expulsão da Espanha, os ânimos começaram a se acirrar. Por uma infeliz coincidência, Portugal, essencialmente rural, passava por uma terrível seca e a peste se alastrava. Responsabilizar os recém-chegados pelas desgraças não era uma coisa muito difícil, dado à ignorância e ao fanatismo religioso que aumentam em épocas de crise. E, por último, para agravar este quadro, d. Manuel, o rei, havia firmado casamento com a mais fanática das filhas de Isabel e Fernando, a Infanta Isabel. Como condição para o casamento, a noiva exigiu a expulsão dos judeus também de Portugal.

Precisando fortalecer sua posição política e as finanças do país, D. Manuel acedeu e, em 1496, promulgou o édito de expulsão. E foi esse mesmo rei, D. Manuel, o responsável por uma das maiores violações da identidade de um povo, convertendo, à força, todos os judeus de Portugal e transformando-os em cristãos-novos, então chamados de “batizados em pé”, por serem adultos, e não batizados ab infantia, no colo dos padrinhos, como era o hábito. Enquanto os cristãos-velhos tinham todos os direitos civis, aos novos quase tudo era negado. Não podiam ter cargos públicos ou políticos, seus impostos eram maiores e, com o tempo, até o direito à universidade lhes foi proibido. Eram perseguidos pela população ignorante, ofendidos e insultados nas ruas. Em 1506, ocorreu um episódio conhecido como a Páscoa Sangrenta, quando, no decorrer de três dias, centenas de cristãos-novos foram massacradas pelo povo, durante a comemoração da Páscoa católica, inflamados por uma pregação de dois frades dominicanos. Tamanho foi o morticínio, que exigiu inclusive a intervenção do Estado.

Enquanto viveu, D. Manuel criou leis que protegiam os novos conversos. Entretanto, seu filho e sucessor, D. João III, não foi da mesma condescendência e em seu reinado foi cunhada a bula papal “Cum ad nihil magis”, que estabeleceu a Inquisição em Portugal.

A maior parte dos cristãos-novos realmente assumiram sua nova fé e se tornaram católicos exemplares. Mas a partir do momento em que os judeus passaram a ser cristãos, qualquer manifestação da sua antiga fé passou a significar heresia. Muitos ainda praticavam o judaísmo secretamente, vindo daí o termo “criptojudeu”. Isso tornou essa nova classe o alvo principal da sanha dos inquisidores.

Os chamados “judaizantes” eram denunciados, presos, julgados, tinham seus bens confiscados pela Igreja, a título de custear o processo, sentenciados e repassados ao poder secular para que suas sentenças fossem executadas. A Igreja não tinha o poder de derramar sangue, portanto cabia ao Estado prender e executar as condenações.

A expulsão dos judeus e a posterior instauração do Tribunal do Santo Ofício, em Lisboa, coin-cidiram com a época áurea das descobertas portuguesas. Beneficiados pelas distâncias alcançadas nas empreitadas em busca de novos territórios, muitos cristãos-novos tomaram parte nas grandes navegações, quer como investidores, quer como capitães, marinheiros, astrônomos ou pilotos. A costa da África, a Ásia e as Américas foram os seus novos lares. Citando: Gaspar da Gama, piloto da esquadra de Cabral; Fernando de Noronha, o primeiro donatário do Brasil, Diogo Fernandes, dono de engenho; Bento Teixeira, poeta, autor de “Proso-popéia”; os padres José de Anchieta e Manuel da Nóbrega. Fora os engajamentos voluntários, a partir de 1535 tornou-se uma prática a deportação de judaizantes para o Brasil.

Durante quase um século, os cristãos-novos aqui viveram com relativa tranqüilidade. Estabeleceram-se como donos de engenhos e comerciantes e participaram dessa sociedade nascente de forma muito efetiva.

O Brasil não possuía um Tribunal da Inquisição, mas pelo final de 1580, o Bispo da Bahia passou a ter poderes inquisitoriais, para preparar processos e extraditar os heréticos para Lisboa. Em 1591, houve a primeira Visitação do Santo Ofício em terras brasileiras. Foi feita, internamente, a mesma rasura cultural posteriormente exercida pelos colonizadores do Novo Mundo aos povos colonizados, em uma exportação da mão-de-ferro da intolerância religiosa às terras recém-descobertas.

O visitador, o licenciado Heitor Furtado de Mendonça, causou grande pânico entre os judaizantes da Bahia e de Pernambuco. Houve poucos processos devido à falta de provas, apesar do grande número de denúncias. A segunda visitação, em 1618, feita por Marcos Teixeira, também apresentou resultados ínfimos, mas muitos dos judaizantes fugiram para Buenos Aires, Peru e outros lugares da América Latina.

Os processos no Brasil ocorriam da seguinte maneira: publicava-se o édito da graça, conclamando os fiéis a fazer as denúncias. A seguir, uma mesa de denunciação era montada e, durante 30 dias, os representantes do Tribunal esperavam pela população. Invariavelmente, as denúncias apareciam; muitos tinham medo de serem associados à heresia caso não fizessem nenhuma delação. Terminado o período da graça, os denunciados eram chamados e interrogados. Se o número de denúncias fosse muito grande ou o crime muito grave, o suspeito era preso, seus bens confiscados e ele, encaminhado para a jurisdição do tribunal de Lisboa, sob a qual estava o Brasil. Lá era julgado, sentenciado e repassado ao Estado para que a sentença se cumprisse. Segundo os arquivos da Torre do Tombo, em Lisboa, cerca de 45.000 processos foram instaurados de 1536 a 1767. Só no Brasil do séc. XVIII, 1.819 processos foram concluídos.

As mulheres foram de grande importância neste período da história do Brasil e dos judeus. Os ambientes íntimos, o interior da casa, eram domínios femininos. A manutenção dos rituais judaicos, a alimentação e o luto eram prerrogativas das mulheres, como ocorre no judaísmo tradicional. Num momento de perseguição e medo, foram elas que fizeram com que a tradição fosse passada adiante, embora envolta em segredo, sobrevivendo até hoje como idiossincrasias familiares.

Conta-se que, na segunda metade de 1700, o rei de Portugal estava pensando em reativar a lei que obrigava os judeus a usarem chapéus amarelos para que fossem diferenciados dos cristãos. José de Carvalho e Melo, Conde de Oeiras, Marquês de Pombal e ministro de Estado português, entrou no gabinete real portando dois chapéus amarelos. O rei imediatamente perguntou o que significava aquilo, ao que Pombal replicou: “Ora, um dos chapéus é para a minha pessoa, já que não se pode afirmar que nenhum português não tenha sangue judeu. E, por via das dúvidas, o outro é para Vossa Majestade.” Em 25 de maio de 1773, convencido pelo Marquês de Pombal, o rei assinou uma lei que acabava com a distinção entre cristãos novos e velhos.

Apesar do fim da distinção e, mais de um século depois, da extinção do Tribunal do Santo Ofício da Inquisição, nada pode devolver o que foi arrancado de um povo de forma tão violenta e perturbadora – um povo acostumado a sobreviver, que tem como maior mandamento a conservação da vida e, como maior qualidade, a capacidade de se adaptar sem perder a identidade e seus valores éticos, mas que sucumbiu diante da perseguição ininterrupta e institucionalizada por 5 séculos promovida pela Igreja Católica.

Hoje em dia, como identificar de forma concreta o que desses judeus conversos ficou misturado à nossa cultura? A impossibilidade de estabelecer uma organização de direitos dos judeus, devido à perseguição, ao medo e às distâncias, contribuiu para que, com o tempo, as tradições se fossem transformando. Mas, numa estimativa, apenas, quanto da Lei Mosaica não está em nossos hábitos, em nosso sistema de justiça, em nosso cotidiano? A destilação das tradições amalgamadas daria um capítulo à parte. Existe um grupo de pessoas que gostaria de retornar. São descendentes de criptojudeus.

De algum tempo para cá, o interesse sobre o fenômeno da Inquisição e suas conseqüências tem aumentado substancialmente. Talvez porque estejamos fazendo 500 anos e queiramos passar a limpo a nossa história. Por qual razão não aprendemos na escola a verdadeira história deste grande país chamado Brasil? Nossa história não é nem mais terrível nem mais bela do que qualquer outra história dos países do mundo. Mas é nossa e devemos pesquisá-la e contá-la, para que nossos descendentes não se vejam tentados a repetir os erros do passado, pelo fato de estarem prisioneiros da ignorância. O caminho da liberdade é o conhecimento.