Nova tradução do livro que deu origem ao filme “Bambi”, da Walt Disney, traz à tona aspectos que revelam a percepção do seu autor em relação ao aumento do antissemitismo na Áustria e na Alemanha, antes da 2ª Guerra Mundial, que culminaria na Shoá.

Em 8 de agosto de 1942, Walt Disney lançou nos cinemas dos Estados Unidos um filme que encantou o mundo, conquistando o público infantil e adulto. Bambi conta a vida de um cervo desde o seu nascimento até crescer e continua com sua luta pela sobrevivência após a morte de sua mãe, vítima de caçadores. Era a quinta animação do estúdio; recebeu três indicação ao Oscar e é considerado, até hoje, um dos filmes de animação que mais comoveu o público, fazendo chorar crianças e adultos.

Esse clássico da Disney foi baseado na obra Bambi, a Life in the Woods, do judeu austríaco Felix Salten, escrita em 1922 e publicada em Viena no ano seguinte. Em meados da década de 1930, o autor vendeu os direitos do filme por US$ 1 mil a um produtor da MGM, Sidney Franklin, que, posteriormente, os revenderia ao estúdio americano. O filme já faturou centenas de milhões de dólares, porém como Salten havia vendido os direitos, ele e sua família nunca se beneficiaram do enorme sucesso de Bambi.

Se o mundo inteiro o conhece, o mesmo não se pode dizer de seu autor. Importante escritor da chamada “época de ouro” em Viena, tinha em seu círculo de amizade personalidades como Sigmund Freud, o músico Richard Strauss e o pai do Sionismo moderno, Theodor Herzl, tendo inclusive contribuído com artigos no jornal por ele publicado, Die Welt, desde sua primeira edição, em 1897.

Uma nova visão sobre Bambi, a Life in the Woods deve chegar ao público em breve em uma tradução de Jack Zipes, professor emérito de alemão e literatura comparada na Universidade de Minnesota, com ilustrações de Alenka Sotler, com o selo da Princeton Press University.

Segundo Zipes, Salten não escreveu uma história para crianças, mas uma obra adulta com o objetivo de alertar o mundo sobre o que aconteceria com os judeus em um mundo cada vez mais fascista. Ele corretamente previu que os judeus seriam perseguidos, desumanizados e assassinados. Bambi, a Life in the Woods é uma parábola sobre o tratamento dado aos judeus e a outras minorias. A obra foi banida pelos nazistas por a terem considerado uma alegoria sobre o tratamento dado aos judeus na Europa e foi queimada sob a acusação de “propaganda contra o nazismo”. Segundo o Prof. Zipes, Salten previu o Holocausto.

Sensível aos acontecimentos ao seu redor e tendo sido vítima de antissemitismo na adolescência, Salten, através de Bambi, revela sua percepção sobre o aumento do preconceito em relação aos judeus na Áustria, a perseguição que acabou levando ao Holocausto e o sentimento de solidão que o invade. O pequeno cervo é ameaçado pelos caçadores desde o momento em que nasce. Ele acaba sozinho, aterrorizado e antecipando um destino sombrio. Bambi seria, na compreensão de Zipes, o próprio judeu.

Na adaptação da Disney, em vez de ser uma história sobre perseguição, Bambi se tornou o defensor da conservação ambiental. “A obra da Disney, que tanto sucesso fez, está muito distante da mensagem que Salten queria dar ao mundo. De certa forma, mascarou o seu verdadeiro significado”, diz o Prof. Zipes.

Para o estudioso da Universidade de Minnesota trata-se de um livro sobre a luta pela sobrevivência em seu próprio lar, pois, desde que nasceu, Bambi é perseguido pelos caçadores que invadem a floresta matando os animais a seu bel-prazer. Em seu próprio habitat, os animais passam a viver constantemente amedrontados pela presença dos caçadores.

O sentimento de Bambi quando morrem sua mãe e seu primo e, depois, quando morre o Grande Príncipe da Floresta que o havia acolhido, é de profunda solidão, a mesma solidão que vivenciaram os judeus e as outras minorias na Europa nas décadas de 1930 e 1940, ressalta Zipes. Para ele, nas entrelinhas da obra está presente a sensação de que Bambi e os outros animais sabem que apenas nasceram para ser mortos, sabem que serão caçados e morrerão em mãos de seus algozes. O uso de animais como personagens é um recurso comum no universo literário, pois permite aos autores reproduzir com mais liberdade a visão de seus leitores sobre determinados temas. No caso de Bambi, Salten quer mostrar os preconceitos da sociedade que o cerca em relação aos judeus e a perseguição da qual eram vítimas e, quem sabe, despertar sua solidariedade em relação à população judaica. Através da figura de Bambi, os leitores são encorajados a sentir empatia pelos oprimidos e perseguidos e a questionar a crueldade dos opressores.

Sua vida

Felix Salten nasceu em 6 de setembro de 1869 em Budapeste, quando a região ainda fazia parte do Império Austro-húngaro. Quando adolescente mudou seu nome para Siegmund Salzmann, para não ser imediatamente identificado como judeu pela sociedade austríaca.

Neto de um rabino, poucos meses após seu nascimento a família se mudou para Viena, que era o berço de uma grande e florescente comunidade judaica, em fins do século 19. O fluxo de judeus para essa cidade cresceu com a garantia da cidadania concedida em 1867.

Ainda adolescente, em função das dificuldades econômicas da família, trocou a escola por um emprego em uma companhia de seguros. Já nessa época demonstrava seu talento para a escrita com pequenos textos e poemas. Aos 18 anos começou a trabalhar em jornais. Casou-se em 1902 com a atriz Ottilie Metze (com a qual teve dois filhos – Paul e Anna Katharina), um ano após a publicação de seu primeiro livro, uma coletânea de histórias, sob o pseudônimo Felix Salten. Bambi, a Life in the Woods não fez muito sucesso na época de seu lançamento, mas a mudança de editora tempos depois acabou consagrando a obra.

Salten fez parte do movimento Jung Wien – “Jovem Viena”, que se reunia por horas no Café Croensteidl debatendo ideias com intelectuais como Hugo von Hoffmannsthal e Arthur Schnitzler. Ao longo dos anos colaborou com jornais na Alemanha e na Áustria, tornando-se um conhecido crítico de teatro, além de autor de livros, peças de teatro, roteiros e outros estilos literários. Respeitado pela opinião pública e por seus pares, Salten assumiu o cargo de diretor da seção austríaca do Pen Club Internacional, associação mundial de escritores, substituindo Arthur Schnitzler.

A vida judaica na Áustria iria mudar com a ascensão de Adolf Hitler, na Alemanha. O antissemitismo se fazia sentir desde o início da década. Já em 1936 seus livros foram proibidos e sua contribuição literária apagada gradativamente da vida cultural. Com a anexação da Áustria pelos alemães, em 1938, tornou-se evidente para o escritor que precisava partir, pois o futuro seria sombrio para quem continuasse no país.

Escolheu como destino a Suíça, levando consigo centenas de livros e continuou a escrever em seu novo lar. Em 1939 lançou Bambi’s Children, The Story of a Forest Family. Dois anos depois da partida, Hitler o destituiu da cidadania austríaca.

Salten morreu em 6 de outubro de 1945, em Zurique, passando seus últimos anos “sozinho”, assim como o “seu” Bambi, sem nenhum lugar para chamar de lar.Em junho de 2021, Salten foi tema de uma exposição no Museu de Viena cujo objetivo, segundo Ursula Storch, curadora da mostra, foi resgatar a memória e o legado do autor, que não se resumem à conhecida história do cervo. Sobre a exposição disse a neta de Salten, Lea Wyler, que não teve oportunidade de conhecer o avô: “É lamentável que um homem tão dotado, tão cheio de humor e de sagacidade, quando é lembrado, seja apenas pelo Bambi”.

Bibliografia

Bambi: cute, lovable, vulnerable...ou a dark parable of antisemitic terror, artigo publicado em 25 de dezembro no jornal The Guardian.

New translation of Bambi showcases tale as allegory on early Austrian Antisemitism, artigo publicado em 26 de dezembro de 2021 pelo jornal Times of Israel.